Exposição revela modernista transbordante e talentoso

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A exposição de José Antônio da Silva, em cartaz até 26 de março na Galeria de Arte Almeida e Dale, traz à luz um trabalho chave para a arte brasileira de meados do século XX. Nosso “primitivo” por excelência, Silva tornou-se a partir da década de 40 uma figura capaz de condensar algumas questões fundamentais para a produção nacional do período. Artista prolixo, transbordante e talentoso, desempenhou papel importante no modernismo de segunda geração, cujas bases fundamentais se apoiavam nas noções de nacionalidade e espontaneidade. Sua origem humilde, sua pulsão criativa – que o fez superar a censura dos familiares, que viam como desajuste, senão loucura a obsessão em pintar – e o fascínio pela polêmica, que o levava a atacar com ironia e mordacidade aqueles que o criticavam, acabaram por moldar um personagem fascinante e cheio de atrativos.

Há no entanto em sua obra, como é possível ver nesse belo recorte curatorial, uma potência que vai muito além da mítica imagem que Silva moldou de si mesmo. A exposição, concebida por Denise Mattar com a consultoria de Roberto Rugiero, não pretende ser uma retrospectiva. Mas desde a grande retrospectiva de sua obra, inaugurada em dezembro de 1998 em meio às celebrações da reforma da Pinacoteca do Estado, ele não tinha uma exposição tão ampla. Trata-se de uma seleção cuja organização interna se dá por “analogia de linguagem”, como explicita a curadora logo no texto inicial. Dentre as mais de cinquenta obras selecionadas, preponderam as paisagens, como era de se esperar, graças a importância do gênero na sua produção, e uma menor participação de pinturas de gênero, retratos e cenas sacras.

Logo na abertura da exposição há uma tela paradigmática, na qual estão sintetizadas várias das questões que acompanharam José Antônio da Silva em toda sua trajetória. Trata-se de uma paisagem rural com uma família de lavradores, pintada em 1956, que apresenta características típicas de outros trabalhos do pintor como as pinceladas grossas, o desenho um tanto tosco, o contraste potente de cores e uma construção espacial que o caracteriza: o uso dos renques de plantação para criar uma sensação de perspectiva e a ocupação de quase toda a tela para representar a terra, deixando apenas uma nesga estreita para o céu. Pouco a pouco a paisagem vai se revelando um potente esforço de denúncia da exploração do trabalho rural e violência racial, inclusive com o uso de potentes alegorias. No meio da tela, vê-se uma série de trabalhadores negros, calcinados e esguios como os troncos de árvore que pontuam aqui e ali a campo de plantio. Eles  caminham desolados, tocados por um capataz – o único personagem branco – que brande um chicote. Caminham em direção a outra ameaça, tão peçonhenta quanto o homem que os conduz: uma cobra já preparada para o bote. Lá também estão também os urubus, pássaros quase onipresentes nas paisagens de Silva e que já estavam presentes nas obras inaugurais, dos anos 40.

Sem Título (1956). Foto: Divulgação
Sem Título (1956). Foto: Divulgação

A exposição tem como destaque trabalhos das duas primeiras décadas, período mais fértil e inovador do artista, no qual ele consolida seus principais temas e seu estilo marcante. E no qual descobre e incorpora elementos chave da arte moderna internacional, como Picasso e Van Gogh. Mas a seleção ilumina também momentos de experimentação posteriores, como o belo conjunto de paisagens oníricas, um tanto surreais, do Rio de Janeiro, com suas cores contrastantes e formas psicodélicas.

Foi em 1946 que o artista autodidata e compulsivo tornou-se visível. Silva, que vivia na miséria e desempenhou mais de 20 ofícios – dentre eles o de trabalhador rural – para sustentar a si e a família, decidiu neste ano inscrever-se num salão que se realizava em São José do Rio Preto, cidade em que vivia. Suas telas mal acabadas, feitas de flanela, tecido mais barato, contrastavam com o padrão acadêmico vigente e teriam sido largamente rejeitadas não fosse a presença no júri de Lourival Gomes Machado e Paulo Mendes de Almeida, que identificaram seu talento e o casamento entre a temática social e o caráter “cru” de sua pintura com o projeto nacionalista encabeçado por Mário de Andrade e continuado por eles. Não conseguiram, como pretendiam, dar o primeiro prêmio a Silva. Mas o quarto lugar no concurso veio acompanhado de uma introdução bastante enfática na cena paulistana, com realizações de exposições, participação em diversos eventos, dentre eles a primeira Bienal de São Paulo (na qual o artista foi agraciado com o prêmio aquisição do Museu de Arte Moderna de Nova York). A possibilidade de vender seus trabalhos e ter seu talento reconhecido foi um bom combustível para o artista, que passou a produzir tão intensamente que, em determinado momento da vida, chegou a adotar a pintura em série: alinhava várias telas e trabalhava-as em sequência.

Após participações exitosas nas três primeiras bienais, teve sua inscrição negada na IV edição do evento, o que acabou fazendo com que ele expressasse nas telas seu profundo desagrado e uma grande mágoa em relação à cultura elitista: “odeio as bienães de São Paulo”, escreve sobre um  autorretrato de 1968. “Sou analfabeto só por fora”, afirma ele, explicitando de forma clara como é preconceituosa a ideia de artista “primitivo” como alguém que apenas se expressa intuitivamente, sem um desenvolvimento interno da própria produção, incapaz ou desinteressado em incorporar novas descobertas e pesquisas.

Há nas obras selecionadas inúmeros exemplos na contramão deste lugar comum, que corporificam esse anseio permanente por novos desdobramentos, de exploração das possibilidades de organização interna, formal da pintura, demonstrando um claro interesse do artista em encontrar formas de representar elementos extremamente desafiantes, como a água em movimento. Telas de grande experimentação formal, como “Moça no Banho”, de 1953, e “Na Tarde Chuvosa”, de 1968, estão entre os destaques da exposição.

O fogo, com seu poder de destruição, também é tema recorrente em sua obra, considerada por muitos como uma das primeiras obras a denunciar de forma persistente os efeitos perversos da agricultura sobre o meio ambiente. Ao colocar lado a lado duas versões de “Queimada”, uma de 1950 e a outra de 1977, a curadora parece indicar simultaneamente a persistência de alguns temas centrais na obra do artista, bem como explicitar uma evolução interna em sua prática pictórica, num tipo de aproximação que só se torna possível em exposições mais densas e que há muito não era possível na obra de Silva.


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