A Tok&Stok ainda não inventou um mobiliário específico para colecionadores de zines, publicações independentes e similares. Mas pode apostar que tem muita gente precisando de um canto para guardar tipos esquisitos de publicações sem lombada e de baixa tiragem, daquelas que, em vez de folhear, a gente dobra e recorta ou cujas páginas podem ser destacadas, descartadas, virar aviãozinho.
Enquanto não aparece o modelo certo de mobiliário ou uma parede sofrida onde aquele cartaz de um show que marcou sua vida possa ser colado, as velhas e boas estantes vão ficando cada vez mais cheias. Colecionar publicações independentes voltou a ser uma atividade do momento – as feiras do gênero trouxeram frescor àquela mesma mania que os punks transformaram em um fenômeno sujo dos anos 1980.
O crescimento da Feira Plana, que chega a sua quinta edição (17 a 19 de março), se alimentou desse mercado de identidade múltipla e independente tanto quanto o impulsionou. Depois de passar pelo Museu da Imagem e do Som, o evento anual ocupa o prédio da Bienal de São Paulo com 250 expositores, incluindo editoras internacionais, dos Estados Unidos, da Colômbia e da Coreia, entre outros. Além desta, o calendário paulistano conta com as feiras Miolo e Tijuana.
A idealizadora da Plana, Bia Bittencourt, está formando uma coleção que, em breve, pode se tornar um recorte preciso desse período de efervescência gráfica e literária. “Tenho de zines com 1cm x 1cm a livros pesados que trouxe de viagens e quase abandonei no aeroporto. Eu deixo minha coleção na Casa Plana (espaço cultural que fica no centro da cidade). Todos estão acessíveis e disponíveis aos visitantes. Muita gente inclusive liga querendo achar livros para pesquisas”, conta.
O perfil do cliente da Plana, ela diz, é variado. “Tem designers, artistas e gente do universo gráfico. Tem colecionadores e aficionados, jovens que vão para paquerar. Senhores e crianças. Pesquisadores, professores, estudantes.” Bittencourt conta ainda que sua coleção cresceu com presentes que ganha de pequenas editoras e de amigos. “Assim, pude focar minhas aquisições nas viagens e nas raridades”, diz.
A atriz Livia Prestes reporta outro comportamento que acabou surgindo com a expansão do mercado independente, que é a interatividade entre colecionadores e amigos de colecionadores. Prestes conta que tem em casa um livro de entrada e saída dos itens que empresta (ela tem preferência por graphic novels). Dos mais novos de sua coleção, ela destaca um trabalho do coletivo amordepica.com, com histórias que seus autores classificam como “de amor, putaria e bad vibe”.
A editora Júlia Ayerbe conta que separa suas publicações “mais pelo tipo e formato do que pelo conteúdo”, o que nos dá também a medida de que as questões estéticas têm sido mais centrais do que as questões de conteúdo. Itens pequenos ou mais frágeis acabam empilhados juntos, porque podem ficar escondidos ao lado de livros de grande formato e de capa dura, por exemplo. “Percebo que existe um predomínio da imagem e não do texto”, diz. “Acho que agora o design e o projeto gráfico são fatores que têm mais importância.” Ayerbe refuta a possibilidade de fetichização de seus itens tal qual acontece com obras de arte. “Essa produção vai na contramão do que as galerias querem; a ideia não é de que aquele seja um objeto único, mas sim algo que muita gente pode ter ou comprar”, analisa.
Só que, inevitavelmente, a baixa tiragem e as edições limitadas acabam agregando valor a acervos mais antigos, ainda que esse valor nem sempre seja econômico mas sim documental. O professor de Literatura Iuri Pereira tem em casa os originais de uma edição do Jornal Dobrabil, um folheto satírico em formato A3, assinado por Glauco Mattoso nos anos 1970 e que ele mandava pelo correio para artistas da Tropicália e do Concretismo. Pereira adquiriu as folhas soltas (algumas delas publicadas pela editora Iluminuras por R$ 43) pelo valor de R$ 500.
Sua coleção é vasta e mistura artigos históricos (dos anos 1970 em diante) a produtos comprados nas atuais feiras de zines e independentes. Rato de sebos, o professor tem a edição em que a companhia Teatro de Arena documenta o processo de criação da peça Arena Conta Tiradentes. Tem também o livro Atlas e Kataloki, duas produções independentes de Arnaldo Antunes, híbrido gráfico-literário de autoria coletiva. Para Pereira, o mercado editorial de produtos independentes estava adormecido desde os anos 1980. Ele aponta que coleções como a sua são capazes de sintetizar ideias em torno de movimentos ideológicos, como aconteceu com a produção punk.
Há uma coleção específica que se tornou notável porque seu criador, o artista Fábio Morais, há sete anos, começou a digitalizar os itens que adquire há mais de 20 anos, para exibi-los no blog Bacanas Books (bacanasbooks.blogspot.com.br/) e também compor textos analíticos (saborosos e com impressões bem subjetivas) sobre os trabalhos. Vale a pena visitar o site, que Morais classifica como “diário de um artista” e passar algumas horas consultando o acervo, com publicações assinadas por Lucia Mindlin Loeb, Emily Dickinson e Roni Horn.
Morais relaciona a prática a outro momento da nossa história recente, anterior ainda à febre punk, que foi o fortalecimento da arte conceitual nos anos 1960 e, nesse contexto, o surgimento, como maneira de “atuar fora do mercado”, da chamada arte-postal (com itens enviados pelo correio). Coincidência ou não, o recifense Paulo Bruscky, um dos maiores expoentes do gênero, estará na próxima Bienal de Veneza. Ele também criou com o uso de máquinas de Xerox.
Ao escrever sobre a Revista Obstáculo n° 1, editada por Pedro Zylbersztajn e comprada na feira carioca Pão de Forma, Morais faz uma análise interessante sobre o ambiente das feiras, destacando a oferta e o clima de vale tudo. “Feira é isso, uma quantidade absurda e caótica de informação que cabe a cada um burilar. Para quem diz que ‘acha as feiras muito confusas, muito babélicas’, ando com a resposta na ponta da língua, suruba: se não aguenta pra que veio?”
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