Laurent Bili frequentava a Escola Nacional de Administração, que forma quadros para o alto escalão do governo francês, quando trabalhou no Brasil por seis meses. Tinha 28 anos, dois mestrados (em História e em Ciências Políticas), ambos pela Universidade Paris I-Sorbonne, e começava uma promissora carreira diplomática. Mais 28 anos, agora à frente da embaixada da França no Brasil, Bili conta à Brasileiros como se surpreendeu com as transformações do País no período, a começar pela explosão do agronegócio. Assim como fez na primeira temporada no País, ele acompanha de perto os altos e baixos do cotidiano nacional, no qual aponta uma “continuação da densidade do debate político”.
A agenda de Bili no Brasil é multitemática. Vai de eventos culturais, como a futura exposição sobre a rainha Maria Antonieta, a projetos tecnológicos de ponta, como os quatro submarinos em construção na base de Itaguaí (RJ) e o satélite de comunicação prestes a ser lançado em Kourou, na Guiana Francesa. Isso para não citar um negócio bilionário da empresa Total com a Petrobras e o trabalho conjunto entre institutos de pesquisa no combate à dengue e à zika. “Tivemos uma queda do comércio bilateral, mas o fator positivo é que o fluxo de capital francês no Brasil continua num patamar importante. A confiança das nossas empresas na economia brasileira é contínua”, afirma o embaixador.
Ele também expressa confiança na democracia, em que pese cenários em direção oposta, tanto no campo nacional quanto internacional. Sobre a eleição de Donald Trump, Bili diz que é muito cedo para avaliar, recorrendo à fala do líder chinês Mao Tsé-Tung, que no século XX afirmou estar cedo para avaliar a Revolução Francesa, do século XVIII. Sobre as eleições francesas, polarizadas nas últimas semanas entre a candidata de extrema-direita Marine Le Pen e o sócio-liberal Emmanuel Macron, o embaixador lembra que a escolha em dois turnos é um fator regulador da democracia: “No primeiro turno, se escolhe. No segundo, se elimina”.
Brasileiros – O senhor viveu no Brasil há quase 30 anos. De lá para cá, na sua percepção, o que mudou?
Laurent Bili – Muitas coisas. O que me impressionou mais foram as viagens que fiz em Goiás, no centro-oeste. Voltei nas mesmas fazendas que visitei 28 anos atrás e vi a explosão do agrobusiness. Eram fazendas de gado. Houve mudança de cultura, da condição de vida do trabalhador rural. A presença da soja é impressionante. Tem coisas positivas, claro, mas também tive uma pequena lágrima para lugares que eram puro cerrado e se tornaram campo de soja. Vi lá uma revolução agrícola bem impressionante. Voltei no Brasil no final de agosto de 2015, um momento político bem animado. Em 1989 também era um período politicamente interessante. Nesse sentido, vejo uma continuação da densidade do debate político no Brasil.
Ou da crise política.
Da crise política. Estamos também num momento econômico particular, mas com o papel da Justiça muito mais assertivo do que naquela época. Isso também me impressionou.
O senhor acredita que o processo de impeachment, com o apoio da Justiça, está condizente com um processo democrático?
Estou pensando mais no combate contra a corrupção, com a força da Justiça para investigar casos, como a Lava Jato, a Operação Calicute. Muitas operações que mostram uma determinação da Justiça de ir até o fim. O caso do impeachment tem uma coisa de diferente. Um caso jurídico, que teve uma dimensão política muito importante.
Como o senhor vê a crise político-econômica que o Brasil está atravessando? Em 1989, consolidava-se a transição da ditadura para a democracia. Hoje não se sabe para onde o Brasil está caminhando.
Sim, mas, com noção de longo prazo, é também um amadurecimento da democracia. É um processo contínuo, que talvez possa ter problemas pontuais, mas o fato é que o cidadão está muito mais presente no debate político. Tem um olhar sobre o que está acontecendo no Congresso, na Justiça, na Presidência. Isso é um elemento da força da democracia brasileira. Só pode ser bom no longo prazo.
Nos últimos tempos, o que se nota também no Brasil é um crescimento acentuado da direita. Como o senhor analisa esse fenômeno?
Bom, isso também é um clássico da vida política. Em todas as sociedades tem um movimento. Em um momento, o público vai mais para a esquerda. Em outro, para a direita. Está insatisfeito por alguns resultados de um lado, vai para o outro. O mais importante é saber se essa tendência marca uma melhora no funcionamento da democracia, do Estado. Nesse sentido, estou confiante.
E as relações entre a França e o Brasil, como andam?
Temos uma relação especial. A França é dos poucos países que fazem parte da história do Brasil desde o começo. Talvez até antes da descoberta. Às vezes gostamos de pensar que talvez pescadores da Normadia ou da Bretanha estiveram na costa do Brasil antes de Cabral. É fofoca, não vamos fazer uma briga sobre o assunto.
Bem que tentaram se instalar no Rio de Janeiro em 1555.
Gostamos tanto do Brasil que às vezes tentamos nos instalar. Não deu certo, mas há um gosto recíproco. Temos artistas, intelectuais brasileiros que gostavam muito de Paris, da França. Temos sobretudo uma relação cultural, que no âmbito da educação é muito forte. Há pouco estava no Nordeste e descobri que, sem que a embaixada soubesse, um ano atrás 40 filósofos franceses estiveram lá, com ligações diretas com a universidade.
Isso no Recife?
Esse caso foi em Salvador, mas pode existir no Recife, em Fortaleza, em muitas cidades. Sabemos que no começo da USP teve a participação de Lévi-Strauss (Claude Lévi-Strauss, antropólogo e filósofo) e de Braudel (Fernand Braudel, historiador). Então, é quase um século de relação. E se volto ao Rio de Janeiro, com a Missão Artística Francesa de 1816, é ainda mais tempo. Esse contínuo de relação tem tanta riqueza que, mesmo para a embaixada, às vezes é difícil seguir tudo o que acontece na relação cultural, universitária, entre os dois países.
E há algum projeto em especial em andamento?
Temos vários projetos que estão em discussão. No ano passado tivemos a exposição impressionista e a exibição Picasso. Este ano se fala de uma exibição de Toulouse-Lautrec. E estamos também em discussão sobre Marie-Antoinette à Versailles, que poderia ser um projeto bem simbólico da cultura francesa tradicional. Estivemos falando também com o Sesc sobre a exibição Soulèvements, que esteve no Jeu de Paume (leia reportagem Levantes e Insurreições na Praça da Concórdia, publicada na edição 6 da Cultura!Brasileiros: brasileiros.com.br/R58XO).
E no mundo dos negócios? Houve uma queda forte do comércio entre os dois países.
No âmbito econômico, tivemos uma queda do comércio bilateral, mas o fator positivo é que o fluxo de capital francês no Brasil continua num patamar importante. A confiança das nossas empresas na economia brasileira é contínua. No final de 2015, houve um momento que deixou um pouco de expectativa, mas já em 2016 se tornou positivo e em 2017 vai continuar. Tivemos uns meses atrás um acordo entre a Petrobras e a Total (empresa francesa do setor petroquímico e energético), para fazer exploração conjunta, não só no Brasil, com parceria tecnológica para exploração no deep offshore (em águas profundas).
Na África?
Em todos os territórios em que as duas empresas atuam. Esse acordo foi assinado uns meses atrás, um investimento de US$ 2,2 bilhões da Total. Então é realmente uma parceria estratégica. Tenho que mencionar ainda a cooperação no âmbito militar, porque temos o Prosub, o programa de submarinos brasileiros, em parceria com a DCNS (empresa francesa especializada em energia e defesa naval).
A tecnologia para construção do casco do submarino nuclear já foi transferida? O projeto está parado, não é mesmo?
Não, o projeto está em andamento. São duas coisas. O nosso projeto é para fazer quatro submarinos clássicos. Tudo está em andamento. A partir dessa experiência, o Brasil está também com o projeto de fazer um submarino nuclear, que pode utilizar essa tecnologia do casco. Mas, de um certo modo, nossa responsabilidade é entregar os quatro submarinos, com transferência total de tecnologia, com construção dos estaleiros, com construção da base naval. E ajudar na capacitação, para o Brasil continuar esse programa sozinho, com outra dimensão, se quiser. Pode ser que tenha uns meses de atraso, mas o nível de andamento do projeto está muito bom.
O senhor já visitou Itaguaí, onde fica a base de submarinos da Marinha?
Sim, é impressionante. Era uma zona um pouco isolada. De repente, tem estaleiros completamente novos, tem esses monstros do mar que são os submarinos oceânicos, tem toda a organização da base naval. Estamos lá no nível mais elevado que se pode encontrar no mundo.
Na sua opinião, qual o impacto da Lava Jato no atraso da construção do submarino nuclear? A Odebrecht, que executaria o projeto, está praticamente paralisada, por causa das investigações.
Entendo que não houve realmente um impacto da Lava Jato sobre o projeto. O problema é mais das dificuldades orçamentárias do País. Mesmo assim, como é uma prioridade do Ministério da Defesa brasileiro, não tenho a impressão de que foram problemas financeiros que tiveram impacto sobre o ritmo de trabalho. Me parece mais que, como são coisas muito complexas, às vezes é difícil ajustar o ritmo de trabalho, as diferentes dimensões. É aí que temos que encontrar a responsabilidade pelos pequenos atrasos que tiveram. Mas, pelo que entendo, não estamos contemplando realmente uma dificuldade.
Embaixador, a escolha do caça sueco, em detrimento do Rafale francês, afetou a relação entre o Brasil e a França?
Houve um momento, na época dos presidentes Sarkozy e Lula, em que o negócio parecia quase feito, que faltava só trabalhar os detalhes. Assim, foi uma decepção, talvez importante naquele momento. Mas são escolhas soberanas, todo mundo tem que respeitar a decisão do País amigo. E depois o Rafale teve muitos êxitos no exterior, o que faz esse fato agora menos importante do que foi naquela época. E temos muitos outros projetos importantes no setor militar, como com a Helibras, com a transferência de tecnologia para fazer o SuperCougar (helicóptero para transporte de tropas).
Onde mesmo?
Em Itajubá, Minas Gerais. E, entre os projetos, temos também o SGDC, um satélite de comunicações, com previsão de lançamento para 21 de março, da base de Kourou, na Guiana Francesa. Tem ainda o projeto do Supercalculador, com transferência de tecnologia, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Então, são tantos projetos que se você perde um, mesmo que muito importante, tem que deixar passar e continuar. São coisas da vida. Nossa relação de confiança com o Exército e com a Marinha brasileiros é tão forte que isso passou.
Falando na Guiana, a França enfrentou o drama da zika tanto na Polinésia Francesa quanto na Guiana. Como foi? E como o Brasil e a França podem atuar juntos nesse campo?
A epidemia mais forte que tivemos foi na Polinésia Francesa. E depois, ao mesmo tempo da epidemia no Recife, tivemos um alerta na Guiana Francesa e também na Martinica e em Guadalupe. Oferecemos uma cooperação com o Instituto Pasteur, que está andando. A Fiocruz já tem uma relação histórica com o Instituto Pasteur. Além disso, a Sanofi (empresa farmacêutica francesa) desenvolveu a primeira vacina aprovada pelas autoridades sanitárias brasileiras e começou uma vacinação contra a dengue no estado do Paraná.
Ainda em relação à zika, o problema está controlado nos territórios franceses? Neles não teve o problema da microcefalia, não é mesmo?
Parece que tivemos menos casos, mas precisamos ter um pouco mais de distância para confirmar. Podem aparecer casos não reportados no começo. Então é uma questão que merece uma vigilância muito elevada das autoridades sanitárias. No momento, parece que o surto ficou para trás, mas não quero falar besteira, entrar em detalhes sobre um assunto que não conheço bem.
Uma especialização sua é a Turquia, onde foi embaixador antes de assumir a representação diplomática da França no Brasil. O senhor acompanhou o começo da crise dos refugiados lá. Como foi?
No começo de 2011, a primeira onda de refugiados era de pessoas perseguidas por ter se expressado pela democratização, por mais respeito do governo sobre a sua existência. Eram vítimas do regime. Depois, se tornou um movimento que reagiu também com as armas. Tivemos uma radicalização por partes dos movimentos, porque as pessoas que sofreram também tinham essa tentação do arsenal militar. Vimos então grupos radicais tomando mais força, mas, no começo do movimento, a maioria das lideranças estava em favor de uma democracia pluralista.
E hoje, como o senhor vê o problema? Qual a saída?
Temo estar um pouco longe do terreno para ter uma visão muito atual, mas acho muito difícil sair do conflito depois de tantos mortos, da utilização sistemática da tortura sobre a oposição, da utilização de armas químicas contra a própria população. Por outro lado, existem massas de grupos radicais. Qualquer que seja a solução política, se existir uma solução política, vai demorar para reconstruir o país.
E as massas de refugiados chegando à Europa?
Tem a dimensão dos refugiados políticos. A Turquia fez um esforço para acolher as pessoas em condições muito razoáveis. As Nações Unidas falaram muitas vezes que eram condições de alto padrão, mas um campo de refugiados é sempre um campo de refugiados. Chega o momento de procurar a saída. Tivemos então essas ondas migratórias, que não são só um problema de refugiado político. São também um problema dos desequilíbrios econômicos do mundo. Muitos refugiados estão chegando da Eritreia, do Sudão, de outros países africanos. O fato de vários países do Magreb (região noroeste da África) estarem com problema contribui para a porosidade das fronteiras, da saída da Líbia para a Itália.
O candidato à Presidência Emmanuel Macron comparou recentemente o processo de colonização com a barbárie. Como essa migração em massa está vinculada à colonização?
O fato de ter uma língua em comum favorece o movimento dessa população para uma terra que é familiar, onde às vezes estão pessoas conhecidas. Uma cidade como Montreuil parece que é uma segunda cidade do Mali. Nesse sentido, tem uma ligação histórica. Não vou entrar em polêmicas francesas, mas tem ligações históricas fortes entre a França e a África.
Existe uma chance concreta de uma mulher ser eleita presidente da França. Não é um paradoxo que seja uma mulher de posições de ultradireita, que defende medidas como o fim do direito de solo?
A expressão que ela utiliza é globalistas contra patriotas. Ela quer talvez parar o relógio do mundo, tem uma angústia sobre o movimento de população, essa abertura das fronteiras. Bom, vimos o que aconteceu nos Estados Unidos. O sistema francês é muito diferente, então vamos observar como a democracia funciona. O fato de ter dois turnos é um fator regulador da nossa democracia. No primeiro turno se escolhe, no segundo se elimina. No primeiro turno você expressa a sua escolha. No segundo você tem que escolher o que sobra e eliminar aquele que de jeito nenhum você quer. Vamos ver o resultado. A democracia tem que funcionar. Temos de ter confiança na democracia.
Confere a informação de que o governo francês está preocupado com a possibilidade de ciberataques, de interferência russa nas eleições a favor de Marine Le Pen, de modo similar ao que teria ocorrido nos Estados Unidos?
Eu vi essas informações. Não tenho informações particulares sobre o assunto, mas essa dimensão da ciberproteção já é um assunto de interesse, de preocupação, há pelo menos uns 15 anos. Todo um sistema de proteção foi desenvolvido. Então imagino que, se houver essas informações, vai ter uma vigilância extrema para proteger os resultados. Mas não tivemos informações particulares aqui. (O cônsul da França em São Paulo, Brieuc Pont, que acompanha a entrevista, comenta que o presidente da França, François Hollande, havia feito comentário similar ao do embaixador). Na verdade, vamos fazer tudo o que for necessário para proteger as eleições.
Até porque a França deve estar investindo muito nesse tipo de monitoramento, por conta da ameaça terrorista.
Participei desse trabalho porque passei dois anos no Ministério da Defesa. Uma economia moderna, com a utilização das redes de comunicação para transações financeiras, está muito exposta a possível ataque. Então já faz mais de dez anos que temos uma agência que aumentou as condições de proteção contra um possível ataque. É um trabalho contínuo. A questão terrorista é mais uma questão de observação de certos modos de comunicação, como o Telegram (aplicativo de mensagens instantâneas), muito utilizado pelos grupos terroristas.
Em termos de geopolítica mundial, qual o impacto da eleição de Donald Trump?
Eu gostei muito da fórmula de Mao Tsé-Tung, mesmo que não seja verdade, sobre a Revolução Francesa (o líder chinês, em pleno século XX, afirmou que era muito cedo para dizer se o resultado da Revolução Francesa, do século XVIII, era positivo ou não). Eu diria que é muito cedo para dizer.
Pela primeira vez, a vida sexual de um candidato entrou no debate eleitoral francês. Recentemente, o candidato Macron convocou a imprensa para dizer que não era gay nem estava tendo um caso com o presidente da Radio France. O que está acontecendo na França?
Na verdade, é uma evolução progressiva. Não temos ainda uma cultura dos tabloides da Inglaterra, mas teve uma mudança. Antigamente, mesmo os jornais mais cheios de fofocas não mencionavam a vida privada dos líderes. Esse limite mudou. No caso do candidato de centro, do Macron, foram pequenos artigos. Ele pensou que era necessário falar para matar a fofoca sobre o tema.
Elas aconteciam também nas redes sociais?
Sim. Na Inglaterra há muito tempo houve casos bastante documentados. Isso não vimos na França, mas nesses últimos anos se percebe uma mudança. É a ideia de que a vida privada do dirigente político não é tão privada. É uma mudança, mas ainda estamos um pouco protegidos. Não sei como vai evoluir.
E com relação às mulheres? Como o senhor analisa a posição das mulheres na França nos últimos anos?
Para alguém de minha geração, de barba branca, se pode ver uma mudança muito importante. Quando eu era estudante, o fato de todas as mulheres conseguirem participar de todos os âmbitos da vida social e profissional já existia. Mas houve um momento que passamos para uma política mais afirmativa. No Ministério, por exemplo, agora temos regras de promoção de mulheres para o que chamamos de parité (paridade). Então, passamos realmente de um processo que era histórico, com as mulheres cada dia mais presentes em todos os setores da sociedade, para uma política de aceleração desse movimento, com novas regras no Parlamento, nos ministérios. Desde o ano passado, ministérios sem parité no alto escalão têm de pagar multas. A mesma coisa para os conselhos de administração de grandes empresas. Uma lei de 2012 introduziu um mínimo de 40% de nomeação de mulheres no alto escalão da função pública até 2017, para depois chegar a uma parité total.
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