A relação entre o grafite e seus espectadores tem algo que o torna singular no campo das artes: criadas para locais públicos, intervenções urbanas quase sempre nos pegam no pulo. Quem vai a uma galeria ou a um museu prepara antes o seu olhar. Quem anda pelas ruas, não. O sujeito pode estar bêbado, estressado, pode estar carregando as sacolas do supermercado.
Este texto que o leitor tem em mãos foi, porém, escrito a partir de uma proposta menos incisiva sobre a vocação mais inequívoca do grafite. Se Fernando Pessoa nos alertou que navegar é preciso, o grafite agora desloca esse belo verbo do léxico náutico para o mar de asfalto. Por que não sair de casa para visitar a cidade e prestar atenção ao que, nela, é dito?
A experiência que resultou neste texto parte de um roteiro de cinco trajetos, nas quatro regiões da cidade e também no centro. Há a marca de grafiteiros por todos os cantos de São Paulo, em becos e grandes avenidas, nas empenas cegas dos edifícios, sob as pontes, nas linhas de trem. É um exército numeroso e disposto a enfrentar a lei e o poder público.
Uma regra parece ser fundamental para delimitar os territórios preferidos pelos artistas. Onde os olhares passam com mais frequência, há mais grafites, como se nessa troca estivesse contida uma espécie de sinalizador: “aqui passa gente”. Centro e Vila Madalena tornaram-se lugares cheios de obras pela densidade demográfica e a vocação para o turismo e o lazer. Cambuci e Grajaú, na zona sul, são casos específicos: distantes do centro, acabam povoados de desenhos por razões mais afetivas, ou simplesmente porque são berços e residências de expoentes da arte urbana paulistana. Desses dois bairros saíram importantes artistas: do primeiro, veio a dupla osgêmeos; do segundo, Mauro Neri e Thiago Noise, entre outros.
Quando escreve em muros “o que escolhemos ver na cidade”, Mauro Neri propõe “olhar para as peculiaridades políticas de ocupação artística da paisagem”, como ele próprio explica em vídeo que integra seu projeto Cartografitti, uma documentação de natureza geográfica.
Neri é também autor da frase-palavra-poema “veracidade”, que inscreve em muros desde 2007 e que contém em si um verbo, um artigo e um substantivo (ver a cidade).
No Cartografitti, foram mais de 300 intervenções em toda a capital, incluindo áreas periféricas ou delimitações com outros municípios, todas elas feitas entre 2010 e 2015, ele conta à ARTE!Brasileiros. O projeto subverte o critério de escolher lugares com maior visibilidade, pois não é o local que torna o desenho mais visível neste seu trabalho; é o desenho que chama a atenção para áreas abandonadas ou que passam por algum processo de degradação.
O exercício da arte no espaço público, para ele, também é disparador de situações políticas diversas, resultando no encontro de artistas com outros artistas, com pedestres e, mais conflitante, de artistas com a polícia. O diálogo, para ele, parece tão fundamental quanto as intervenções que propõe, conforme pode ser visto nos vídeos do projeto Cartografitti.
A incidência de grafites em uma região pode, também, revelar que aquele local faz parte do trajeto de um artista – ou de um grupo de artista. As caminhadas pelas ruas do Cambuci, hoje, revelam a presença marcante de Thiago Noise em suas ruas e mesmo na fachada de prédios e casas. Ele residiu naquele bairro por apenas um ano. Foi há um mês que retornou ao Grajaú, onde seus trabalhos também são bastante frequentes.
Para Noise, uma das proposições do exercício do grafite é “redesenhar o espaço onde ele é criado” e também “explorar a cidade para conhecê-la”, além de estimular o convívio. Ele nos apresenta conceitos de território bastante familiares para quem estuda arte contemporânea. Acha, por exemplo, que o trânsito por territórios é fundamental no processo de criação de uma obra.
“Grafite muitas vezes é um encontro de amigos, é um momento de socialização”, diz. Desenhos e murais feitos em parceria são uma constante. “E acontece também que o desenho que um artista não acabou acaba sendo completado por outro”, ele exemplifica. Noise diz que já copiou trabalhos de amigos, assinou com o nome que não era seu, fotografou o desenho depois de pronto e mandou para seu suposto criador. Partilhar e compartilhar desestabiliza possíveis buscas por autoria – como se todos os autores fossem um.
Bem próximo ao metrô Carrão há um exemplo emblemático da potência social do grafite. No muro de uma residência, há um desenho com pelo menos três assinaturas: ABL (um jogo com Academia Brasileira de Letras), VIP (Vai i Pinta) e TK (todo canto crew). São assinaturas não de artistas mas de coletivos. Nick Alive, grafiteiro que participa dos dois últimos deles, conta que “crews representam ideias”, tanto no que se refere a temas quanto a linhas estéticas.
O trabalho de Nick foi registrado no projeto Entre Linhas Urbanas, plataforma de mapeamento do trabalho de grafiteiros por regiões de São Paulo no Instagram e que vai virar livro. O projeto divulga 96 grafiteiros de 96 bairros e é assinado pela produtora de arte independente Sê-Lo. Para ver, pesquise na Internet. Ou vá para as ruas!
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