“Sou venezuelana, vivo em Medellín, então achei que entendia de complexidade, mas vejo que aqui a situação é muito mais complexa”, disse, em tom de espanto, Nydia Gutierrez, curadora-chefe do Museu de Antioquia, na Colômbia. No fim de janeiro passado, por quatro dias, ela e outros 15 curadores e diretores de museus participaram do Episódio Museal, uma imersão em 13 instituições culturais de Joanesburgo e da Cidade do Cabo, na África do Sul.
O programa foi tão intenso que muitos debates ocorriam no ônibus que transportava o grupo de um local para outro. Foi lá, aliás, que Gutierrez fez a constatação, com a qual possivelmente a maioria concordou. Era o terceiro dia de viagem e, na mesma manhã, o grupo visitara duas instituições em Pretória: o Monumento Voortrekker (dos pioneiros) e, logo depois, o Parque da Liberdade (Freedom Park). “Não tenho o que dizer, estou chocado”, comentou no debate, com o ônibus em movimento, o curador brasileiro Marcelo Rezende.
Todos estavam de fato chocados. O tal monumento dos pioneiros, uma edificação fálica de granito cinza com 40 metros de altura e que levou 12 anos para ser construído (1937-1949), foi criado para celebrar, basicamente, a vitória do invasor branco sobre o império zulu. A narrativa é clara no friso com 27 baixos-relevos que circunda o monumento por dentro e foi contada por um guia branco. “Antes de chegarmos, não havia nada aqui”, disse o senhor com a voz mais natural do mundo, como se os milhares de africanos da tribo zulu nada significassem. “Como assim?”, reagiu prontamente alguém do grupo. “Eu quero dizer: alguém que não fosse nômade”, respondeu, sem dar muita importância à pergunta. A partir daí, por 20 minutos, ele falou sem parar, explicando toda uma versão da história da África do Sul recheada de preconceitos e que culmina no dia 16 de dezembro de 1838 com a Batalha do Rio de Sangue, quando 464 pioneiros venceram mais de dez mil zulus. Por causa dessa data, até 1994, em 16 de dezembro comemorava-se o feriado do Dia do Juramento – já que os “pioneiros” prometeram a Deus que construiriam uma igreja se vencessem a batalha. Com o fim do regime do Apartheid (1948-1994), o feriado foi renomeado para Dia da Reconciliação.
O choque, contudo, não veio apenas da existência de um “monumento ao invasor”, mas do contraste dele com o Parque da Liberdade, apenas algumas centenas de metros dali. “Ele foi construído exatamente para ser uma oposição clara ao monumento dos pioneiros”, explicou, ainda no ônibus, a escritora sul-africana Tracy Murinik, encarregada de mediar a visita do grupo ao seu país e que também tinha a função de contextualizar e motivar os diretores e curadores a discutirem o que tinham visto.
Inaugurado em 2004, dez anos após o fim do Apartheid, o parque se constitui de fato como uma antinarrativa ao monumento dos pioneiros, elencando 85.200 lideranças mortas no Painel dos Guerreiros – um muro de 697 metros com os nomes dos que lutaram pela liberdade no país. Contudo, mesmo entre os que lutaram por liberdade se cria uma diferenciação, já que apenas três dezenas deles têm direito a aparecer na galeria dos líderes, com retrato, e após terem sido aprovados por um comitê.
Detalhes assim não passavam despercebidos dos diretores e curadores: eles questionavam até que ponto esse tipo de gesto, mesmo que simbólico, também não resultava em castas privilegiadas. Se alguém morreu por uma causa, como é possível medir quem é mais herói do que outro?
Questões assim surgiram durante o almoço, no restaurante do parque, instigadas novamente por Murinik. Foi no banheiro de lá que Matthias Mühling, diretor do Lenbachhaus, o mais antigo museu de arte moderna alemão, em Munique, fez uma fotografia que seria tema de sua fala em um debate no Instituto Goethe de Joanesburgo, no dia seguinte.
Ele retratou um desses potes baratos com sabonete líquido, colocados na pia quando o acessório similar instalado na parede não funciona, mostrando depois uma imagem semelhante do banheiro da Tate. Com isso, Mühling apontava para a importância de se atentar aos detalhes e àquilo que escapa da narrativa oficial.
Ele não falava em nome do grupo, mas de certa forma indicava de fato um procedimento comum nessa que era a terceira etapa do Episódio Museal, um dos segmentos dos Episódios do Sul, projeto de três anos (2015-2017) organizado pelo Instituto Goethe de São Paulo (ARTE!Brasileiros, edição 36).
Iniciado em Salvador, em outubro de 2015, e tendo como anfitrião o Museu de Arte Moderna da Bahia, o Episódio Museal reúne basicamente sempre o mesmo grupo de diretores e curadores de museus latino-americanos e alemães, além da grega Marina Fokidis (diretora da Kunsthalle Athena e parte do time curatorial da Documenta 14), da sul-africana Gabi Ngcobo (que foi uma das cocuradoras da 32ª Bienal de São Paulo) e da eslovena Zdenka Badovinac, diretora do Museu de Arte Moderna de Ljubljana.
O Episódio Museal, que tem como subtítulo “Sobre o futuro global dos museus”, um dos eixos temáticos dos debates, conta com o apoio da Fundação Cultural Federal Alemã. O projeto não possui um objetivo prático específico, o que em tempos de eficácia neoliberal já se apresenta como um projeto anti-hegemônico.
A segunda reunião do grupo foi na Bolívia, tendo como anfitrião o Museu Nacional de Etnografia e Folclore, sob direção de Elvira Espejo, também parte do grupo desde o início. “Fiquei tocada pela forma como Elvira envolve as comunidades no museu, e isso tem sido inspiração para meu trabalho em Dresden”, comentou Marion Ackerman, diretora-geral dos museus públicos de Dresden, cargo que ocupa há quatro meses – no início dos Episódios, ela era diretora do Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen, em Dusseldorf.
Apesar de não ter um objetivo específico, não há dúvida de que as experiências dos Episódios, ao reunir agentes culturais em museus do chamado Sul global e propiciar o franco diálogo entre eles, têm transformado práticas e atitudes, como a afirmação de Ackerman, no primeiro dia da viagem à África do Sul, na Cidade do Cabo. Outro exemplo é a fala de Mühling, no vídeo sobre a imersão na Bolívia: “Nós começamos com a questão de como descolonizar ou democratizar os museus e terminamos pensando em como descolonizar a nós mesmos”.
Como o episódio na África do Sul era o terceiro encontro, havia um clima fraterno no grupo, que a intimidade dos outros dois encontros ajudara a criar. Contudo, era claro que o objetivo ali não era turismo, mas de fato vivenciar o contexto da forma mais aberta possível. Outro bom exemplo dessa experiência foi quando o grupo visitou um novo museu em construção, o Zeitz MOCAA, espaço dedicado à arte contemporânea que será aberto ainda neste ano no porto da Cidade do Cabo. Trata-se de uma dessas típicas empreitadas que usam a cultura como forma de alavancar empreendimentos imobiliários. “Nossa coleção será constituída a partir de obras criadas a partir do ano 2000”, disse o diretor da instituição, Mark Coetzee, na visita ao museu em construção. Para o grupo, logo se tornaria claro que constituir uma coleção só a partir do século XXI era uma forma de não tratar do passado traumático do século XX da África do Sul.
Esse trauma seria de fato tema da visita no dia seguinte, o segundo da viagem, ao Museu Robben Island, a antiga penitenciária onde estiveram presos os insurgentes contra o Apartheid, entre eles Nelson Mandela, que passou lá 18 dos 27 anos em que esteve encarcerado.
A visita foi guiada por Lionel Davis, ele mesmo um ex-recluso, o que mostra como a instituição procura manter viva a história do lugar. “Todos os guias aqui possuem alguma relação viva com Robben Island”, contou Davis.
“Foi o momento mais emocionante da visita, quando vimos como um lugar histórico pode manter viva sua memória”, afirmaria depois Pablo Lafuente, curador espanhol radicado na Bahia, um dos responsáveis pela 31ª Bienal de São Paulo. Além de Mandela, outros dois presidentes da África do Sul ficaram lá presos, incluindo o atual, Jacob Zuma.
“Esse projeto surgiu a partir das solicitações de muitos dos membros desse grupo”, disse Katharina von Ruckteschell-Katte, diretora do Instituto Goethe de São Paulo, explicando que a ideia de rede é inerente à concepção do Episódio Museal. Durante seis anos, aliás, ela foi diretora do Goethe em Joanesburgo.
A responsável pela programação na África do Sul foi Gabi Ngcobo, que durante o período abriu a nova sede do espaço cultural NGO – Nothing Gets Organized (“nada está organizado”), com um show do grupo Vocal Museum, que canta canções históricas da África do Sul, do jazz ao gospel. Lá, com público diversificado – jovens e idosos, negros e brancos –, ficou clara uma das questões defendidas por Marina Fokidis em um dos debates do grupo: “Todo o sul é diferente, todo museu é diferente, todo indivíduo é diferente”.
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