Cinéma du réel: a realidade pede socorro

Foto: Reprodução/Cena do filme "Martírio"
Foto: Reprodução/Cena do filme “Martírio”

O mais importante festival de documentários independentes de Paris, se não da França, é o Cinéma du Réel (“cinema do real”). O Brasil, este ano, esteve muito bem representado. Além dos dois filmes de que trato logo adiante, havia uma retrospectiva completa da obra de Andrea Tonacci e uma sessão que reunia “Mato Eles” de Sérgio Bianchi e “Triste Trópico” de Arthur Omar.

Houve uma greve dos seguranças do Centro Georges Pompidou, onde de hábito acontece o festival, o que perturbou completamente a organização do mesmo, numa irônica incursão do real no festival de mesmo nome.

Foi então na sala do Luminor, um cinema no coração do Marais, que tive o privilégio de assistir dois imensos filmes brasileiros.

O primeiro foi Martírio, assinado por Vincent Carelli, Tita e Ernesto de Carvalho. Trata-se de um gigantesco afresco que parte de 1988, ano em que Carelli filmou a luta dos Guarani-Kaiowá pela restituição de suas terras. Ancorado neste ponto da história, o filme vai e volta no tempo, perscrutando as raízes do conflito, desde a guerra do Paraguai, o uso das terras para a plantação do mate, a criação mais tarde da SPI, instância de regulamentação das questões territoriais, ainda mais tarde a guarda indígena na qual índios eram treinados militarmente para manter seus semelhantes sob pressão (como os “kapos” dos campos de concentração), e a Funai, com suas contradições e mazelas. Assistimos à continua usurpação das terras para o plantio latifundiário, a eterna luta e as conquistas dos povos indígenas no final dos anos 80 e o atual retrocesso pregado pela bancada do agronegócio, estrelando uma Kátia Abreu totalmente possessa por seu discurso fascista.

O filme vai fundo na demonstração da má-fé que anima o conflito em sua fase atual, mostrando como o agronegócio inverte os papéis em seu discurso, acusando os índios de invasores que impedem o progresso do Brasil e o crescimento do PIB. Pasmem ! Uma cena me marcou em especial. Um vídeo mostra um policial amarrado pelos índios em súplicas para que lhe deixem viver. Este vídeo chega na bancada do Senado e é mostrado por um dos senadores como prova da injusta violência dos índios. Carelli e sua equipe vão até a o acampamento (não se pode mais chamar os pobres barracos em que vivem os índios à beira das BRs de “aldeias”) para entender melhor a história e provam que aquela cena é apenas o final do episódio em que o policial quase mata 6 mulheres e crianças e, se está assim amarrado, é por razões de legítima defesa. Como então este vídeo foi parar nas mãos de um senador ? Uma índia que gosta de dinheiro, bijus e espelhos é apontada por outra como a “mensageira”. Maldita corrupção.

Passei o filme todo pensando: é a história do Brasil vista pelo avesso, vista por quem a  sofreu. É a oposição entre o colono branco, arrogante e violento e a coragem impressionante dos Guarani-Kaiowá que sabem estar em seu legítimo direito e não arredam pé. Morrem, mas não se entregam. E de maneira não violenta. Sustentados por sua maneira de ver o mundo, em harmonia com o meio-ambiente, eles colocam seu grãozinho de sal na mecânica avassaladora do plantio colonialista. A Terra terá que morrer para que a sua voz faça sentido ? Surdamente, avançamos. No final do filme, uma frase de Carelli resume a mensagem : é no trato com os índios que a sociedade brasileira se revela. Posso dizer que saí da sala com vergonha de ser brasileira.

No dia seguinte, pela manhã, me sento na mesma sala e me entrego à delícia de ser conduzida por João Moreira Salles e seu magistral montador, Eduardo Escorel, pelos meandros do ano de 1968. Começa uma imensa viagem, que nos leva dos sorrisos da Tchecoslováquia à declaração de ano novo do General de Gaulle, passando pela China de Mao Zedong filmada pela mãe de João no ano de 1967. Interrogando cada uma das imagens, numa conversa entre literatura e cinema, No Intenso Agora, assim se chama lindamente o filme, vai tecendo um colar de contas, formando os desenhos de um caleidoscópio, onde o engajamento político, os eventos de maio de 1968, o desejo de se mudar o mundo aparecem como fulgurâncias que iluminam intensamente a tela e a história para se apagarem como se apagam as estrelas. O filme é uma reflexão sobre o belo, a juventude, a justiça e a injustiça, a luta e o sonho, as classes e a luta de classes, o desejo e a desilusão. E sobre o cinema. A força do presente na tela revisitada pelo olhar do cineasta sobre este presente já passado, cria um jogo que nos projeta em uma dimensão ao mesmo tempo crítica e poética, que é o olhar que todos deveríamos ter. Ele nos tira do imediatismo em que vivemos, nos abre portas, faz flutuar.

Os espectadores parisienses se reconheceram nos arquivos de maio de 1968, riram, choraram, e devem ter se surpreendido com a vastidão da pesquisa que o filme abrange. No Intenso Agora ganhou merecidamente o prêmio Internacional da Scam no 39° Cinéma du Réel. O filme avança com liberdade e profundidade, e também com imensa melancolia. Uma quase desfeita. É difícil hoje, e todos reconhecemos, continuar a luta pela liberação do jugo que encerra os mais fracos. Mas se você abandona, então eles ganham. O último plano do filme é a nossa arma. Sua sutileza, João.

Estes dois filmes deveriam fazer parte do programa de ensino dos nossos jovens. O cinema do real tem seu papel na educação crítica de nossos filhos. O trabalho destes dois cineastas é titânico, merecem nossa atenção. Por anos demais abandonamos a noção de política e hoje pagamos o resultado. Chega agora.

 

 

 


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