“Complexo do impostor”, inseguranças, sexismo e menores salários. A medicina não passa incólume pelas diferenças dadas a homens e mulheres em nossa sociedade – mas, finalmente, o mainstream médico começa a perceber a importância de dar voz a essas demandas.
Agora em maio, o prestigiado New England Journal of Medicine publicou artigo de médica Suzanne Koven, da Harvard Medical School, em que ela mostra as agruras passadas em sua vida profissional. Na forma de carta, Suzanne escreve para si mesma, quando jovem. “Eu queria dizer, particularmente para as mulheres, o que eu queria que alguém tivesse me dito quando eu era mais nova. Então, escrevi uma carta.”
Nós traduzimos a carta da médica – que pode ser lida abaixo ou aqui, em inglês.
Cara jovem médica:
Eu sei que você está animada e também apreensiva. Esses sentimentos têm um porquê. As horas que você vai trabalhar, o conhecimento que você terá que dominar, a responsabilidade que você tem sobre a vida das pessoas e seu bem-estar são assustadores. Eu estaria preocupada se você não estivesse pelo menos um pouco preocupada.
Como mulher, você enfrenta um conjunto adicional de desafios, mas você já sabe disso. Em seu tempo na urologia na escola de medicina, você foi informada de que sua presença era inútil, já que “nenhum homem de respeito iria se consultar com uma senhora urologista”.
Haveria ainda mais sexismo, alguns horrendos, outros simplesmente irritantes. Como residente grávida, perguntei sobre a política de licença de maternidade do meu hospital para os funcionários da casa e me disseram que era uma ótima idéia – eu deveria elaborar uma.
Mesmo após décadas de profissão, quando eu peço por uma prescrição para um farmacêutico, ainda pedem o nome do médico responsável. E há discriminações mais sérias e mais prejudiciais. Dói-me dizer-lhe que em 2017, quando você estará no final da sua carreira, as mulheres médicas ganham em média US$ 20.000 menos do que os nossos homólogos masculinos (mesmo incluindo fatores como o número de publicações e horas trabalhadas).
As mulheres estão sub-representadas em posições de liderança, mesmo em especialidades como ginecologia e obstetrícia, em que somos maioria. Somos submetidas a assédios que vão do humor “brincalhão” em sala de cirurgias a abusos tão graves que algumas deixam a medicina completamente.
Mas há também um obstáculo mais desafiador que você terá de lidar – o da sua própria cabeça. Na verdade, um dos maiores obstáculos que você enfrenta é o da sua própria criação. Pelo menos foi assim comigo. Eu fui perseguida por toda a minha carreira pelo medo de ser uma fraude.
Esse medo, às vezes chamado de “síndrome do impostor”, não é exclusivo das mulheres. Seus colegas homens também têm muitos momentos de insegurança, quando estão convencidos de que são os únicos incapazes de entender a via da coagulação, ou os únicos a não poderem dar um nó cirúrgico perfeito ou os únicos incapazes de detectar um sutil sopro cardíaco.
Acredito que o medo das mulheres de fraudulência é semelhante ao dos homens, mas com uma característica adicional: nós não só insistimos nos nossos defeitos, mas também denegrimos nossas forças.
Um estudo de 2016 sugeriu que pacientes de mulheres médicas têm melhores resultados no tratamento. A publicação desse achado especulou sobre o porquê disso: talvez as mulheres sejam mais intuitivas, mais empáticas, mais atentas aos detalhes, melhores ouvintes ou até mais gentis?
Não sei se alguma dessas generalizações é verdadeira, mas a minha experiência pessoal e as observações me asseguram disso: quando as mulheres possuem essas características positivas, tendem a considerá-las fraquezas. Nós assumimos que qualquer um pode ser um bom ouvinte, ser empático – que essas habilidades não têm nada de especial e são o mínimo a oferecer aos nossos pacientes.
Eu desperdicei muito tempo e energia em minha carreira procurando a garantia de que eu não era uma fraude e, especificamente, que eu tinha mais a oferecer aos meus pacientes.
No início, eu acreditava que exibindo conhecimento médico – quanto mais obscuro melhor – eu seria mais digna da minha profissão. Essa crença era um estímulo útil para a aprendizagem, mas, em última instância, só proporcionava conforto superficial. Durante meu curso de segundo ano de habilidades clínicas, um oncologista me pediu para identificar uma erupção cutânea. “Micose fungoide!”, exclamei. Era uma das poucas erupções que conhecia e a única associada ao câncer. Minha resposta acabou sendo a correta, fazendo com que três mandíbulas caíssem imediatamente – a do oncologista, a da paciente e a minha – mas o brilho da validação durou apenas o resto do dia.
Um pouco mais adiante no treinamento, eu pensei que a competência significava saber como fazer as coisas. Eu fiz avidamente punções lombares e inseri linhas centrais, e me candidatei para treinamento especializado em gastroenterologia – um campo em que eu tinha pouco interesse – pensando que eu poderia “endoscopizar” meu caminho para a autoconfiança.
Nos meus primeiros anos na prática, eu tinha certeza de que ser um bom médico significava curar as pessoas. Senti-me animada por cada radiografia de tórax, por toda pressão sanguínea normalizada. Infelizmente, o inverso também era verdade: eu tive recorrências de câncer. Quando o departamento de emergência me ligava para me alertar de que um de meus pacientes tinha chegado inesperadamente, eu assumia que algum erro de minha parte precipitara a crise.
Agora, no final da minha carreira clínica, entendo que não fui nem tão fraca, nem tão poderosa. Às vezes, mesmo depois de estudar ao máximo e tentar o melhor possível, meus pacientes adoeceram e morreram de qualquer maneira. Como eu gostaria de poder poupar-lhe anos de auto-flagelação e transportá-la diretamente para este estado de humildade!
Agora eu entendo que eu deveria ter passado menos tempo me preocupando em ser uma fraude e mais tempo apreciando as coisas que meus pacientes mais apreciam sobre mim: as minhas piadas, os meus abraços. Todo médico tem seu próprio armamento pessoal, tão terapêutico como qualquer droga.
Minha cara colega, você não é uma fraude. Você é um ser humano falho e único, com excelente treinamento e um admirável senso de propósito. Seu treinamento e objetividade vão ser bons. Mas sua humanidade vai ser ainda melhor para seus pacientes.
Atenciosamente,
Suzanne Koven, M.D.
Faculdade de Medicina de Harvard
Hospital Geral de Massachusetts
Boston, MA
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