Passava das 20 horas. Em Parintins, pouca gente havia ido à missa naquele domingo. No bumbódromo, milhares de pessoas vestidas de azul, em frenesi, aguardavam atentas aquelas três palavras:
– Olha o boi! – anuncia Jr. Paulain, apresentador do boi Caprichoso.
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– Tum! – explode o surdo em meio à multidão.
– Olha o boi!
Tambores e repiques aceleram a marcação e se misturam aos gritos da “galera”. Assim começou a última noite da maior ópera a céu aberto do folclore brasileiro, o Festival Folclórico de Parintins. De festa de rua a espetáculo midiático, o boi-bumbá percorreu uma trajetória marcada por reinvenções. Em 2008, o “boi” passou por mais uma delas. Esse foi o primeiro ano em que o festival foi transmitido nacionalmente pela TV aberta (TV Bandeirantes), feito dificilmente imaginado pelos fundadores de Garantido e Caprichoso que, no início do século passado, só queriam brincar e reverenciar Santo Antônio e São João. O futuro do boi de Parintins parece tão incerto quanto seu passado, mas igualmente instigante.
Pé nordestino
O boi-bumbá nasceu nordestino e se chamava bumba-meu-boi. Chegou ao Amazonas trazido pelos maranhenses durante o ciclo da borracha (final do século XIX e início do XX). Digerido pela cultura cabocla, se transformou e hoje existem poucas referências comuns às duas manifestações folclóricas. “Não sei se pela condição de ilhéu, mas o parintinense tem uma capacidade incrível de absorver o que vem de fora e transformar isso numa coisa completamente nova. Foi o que aconteceu com o boi maranhense. O nosso boi é totalmente diferente”, diz o jornalista e escritor Allan Rodrigues, de Manaus.
Rodrigues diz que foi a partir da década de 1980 que o boi começou a se profissionalizar. Em 1988, o bumbódromo de metal e concreto foi construído substituindo as arquibancadas de madeira. “Transformaram o boi num show e o fato de ser feito na Amazônia chamou a atenção do Brasil e do mundo”, diz.
A ilha
Cidade de ruas estreitas e pitorescas, Parintins fica sobre a Ilha Tupinambarana, na margem direita do Rio Amazonas. Antiga morada dos índios tupinambás, é difícil não encontrar um ângulo fotogênico por lá. Ao norte, o Rio Amazonas corre nervoso e barrento. Ao sul, a várzea alagada convida a um mergulho nas águas escuras e mornas. Em suas construções, resquícios da arquitetura do início da belle époque, no século XX.
Durante a maior parte do ano, a maioria de seus 100 mil habitantes vive da pecuária, da pesca e dos contracheques do funcionalismo público. Mas em junho, por uma semana, todas as atenções se voltam para os “bois de pano”. Há uma verdadeira invasão. Os organizadores do evento calculam que aproximadamente 100 mil pessoas visitem a ilha durante o festival.
É tanta gente que a pequena rede hoteleira da cidade entra em colapso. Nos barcos, os armadores de redes ficam lotados. Nativos alugam suas casas para turistas que não querem dormir. Querem apenas um lugar para guardar as roupas e tomar banho.
O final das apresentações na arena é a senha para o início de uma festa que só termina quando os corpos não resistem mais ou quando a Polícia Militar manda desligar as caixas de som que tocam toadas (ritmo que embala os bois), forró e até música eletrônica. Ironicamente, a parte mais profana da festa em Parintins acontece entre a Praça da Catedral e o cemitério da cidade. Há alguns anos, a diocese local mandou cercar a igreja para evitar que “pecados” fossem cometidos nos muros da “casa de Deus”.
Oportunidade
Lázaro Machado, 47 anos, é inventivo e habilidoso, como todo bom parintinense. Durante 16 anos, trabalhou na confecção das alegorias do Caprichoso, mas há 12 virou autônomo. Comanda 13 artesãos numa oficina que fabrica pequenos “boizinhos” vendidos como suvenires. Chega a faturar R$ 6 mil na semana do festival.
– É uma forma de a gente sobreviver. Tem boi meu na Europa inteira – vangloria-se.
O que Lázaro comemora, o pescador Cledemilton Souza, 36 anos, lamenta. Nos dias de festa, não consegue trabalhar.
– As fábricas de gelo não me vendem nada. E, sem ele, eu não posso pescar. O gelo da cidade vai todo para os bares. Aqui, o povo bebe muito! – diz.
Devoção
Reduzir a festa dos bois de Parintins a um evento meramente turístico é um erro tão grave quanto querer entendê-lo a partir do que se conhece do Carnaval do Rio de Janeiro, embora as semelhanças sejam grandes. Ao parintinense, a escolha de um boi é quase tão sagrada e definitiva quanto a escolha de um time de futebol ou de uma religião.
Que o diga Maria Ângela Albuquerque, 85 anos. Filha da pequena burguesia da ilha, ela se transformou numa das figuras mais emblemáticas e procuradas do boi Garantido. Sua casa pintada de vermelho e sua aversão ao azul do boi “contrário” (os parintinenses sequer pronunciam o nome do rival) a transformaram numa “celebridade bovina”. Visitá-la é obrigatório aos turistas.
– A minha família ajudou muito o Garantido. O boi vinha brincar aqui no meu quintal. Como era pobre o meu Garantido! Eu fico muito feliz agora que o Brasil todo está vendo a nossa festa. Meu boi agora é internacional – comemora Maria.
A poucas ruas dali, na Cordovil, as paredes azuis de um casebre de madeira revelam que estamos diante de um lar Caprichoso. Entretanto, conversar sobre o boi, aqui, é quase proibido.
– O Caprichoso é meu, mas ninguém me dá importância! – diz Luiz Pereira dos Santos, 79 anos.
“Luizinho do Caprichoso”, como é chamado, foi o último “dono” do boi nos moldes clássicos do início da manifestação folclórica. No início dos anos 1980, Garantido e Caprichoso se transformaram em associações folclóricas e hoje são comandados por diretorias eleitas de tempos em tempos. Figuras históricas de ambos os lados ficaram à margem dessa “modernização”.
– A minha esposa tinha umas 300 reses de gado. Na minha época, eu vendia os bois dela para colocar o dinheiro no boi Caprichoso – diz o aposentado, que sobrevive consertando estofados.
Empolgação
Na arena, cada boi tem duas horas e meia por dia para se apresentar. Ambos têm de encenar o “auto do boi”, uma lenda antiga que fala sobre o desejo de Mãe Catirina de comer a língua de um boi que pastava pela fazenda. Pai Francisco, seu marido, mata o dito-cujo para atender à exigência da esposa, mas sua filha, a Sinhazinha da Fazenda, não aceita a morte de seu boizinho e começa a chorar. Arrependido, Pai Francisco pede ajuda ao Pajé para que ressuscite o boi com suas danças ritualísticas. O Pajé atende ao pedido e o boi renasce.
Vistas dessa forma, as apresentações poderiam parecer enfadonhas, não fosse pela genialidade parintinense. A cada ano, os artesãos da ilha se superam e encontram formas fantásticas de encenar essa história. A criatividade do povo é tamanha que muitos desses artistas são presença garantida nas melhores escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo. Bois voadores, árvores de 30 metros que se movem, demônios indígenas com olhos brilhantes e pajés que parecem flutuar são apenas alguns dos engenhos criados por ali.
Milhares de pessoas se espremem no lugar destinado às “galeras” (torcidas). Dos 35 mil lugares, pelo menos 24 mil são gratuitos e, por isso, disputados em filas que começam até sete horas antes do início das apresentações.
O casal Francisco,73 anos, e Maria Lúcia de Jesus, 62 anos, morador de Manaus, enfrentou 20 horas de barco pelo Rio Amazonas e mais outras tantas horas na fila da galera do Garantido para assistir ao boi do coração. Em meio aos pulos dos mais jovens, Francisco não escondia a alegria de estar ali.
– Isso aqui é a minha única alegria. É o jeito que a gente tem para se divertir – diz o aposentado.
Talento sem fronteiras
Francenildo Dias, 27 anos, é apenas um entre vários artistas parintinenses que se dividem entre o boi e o Carnaval de São Paulo. Desde 1999, ajuda os carnavalescos da terra da garoa a dar movimentos às alegorias que desfilam pelo sambódromo paulistano.
– Eles não conseguiam fazer as alegorias se mexerem. Aqui em Parintins, a gente desenvolveu uma técnica muito boa nisso. Por isso que todo ano tem um monte de artista que vai pra lá – conta Francenildo. Cada trabalho em São Paulo rende até R$ 20 mil.
A ópera da selva
Encenada numa arena para quase 40 mil espectadores, as proporções do boi-bumbá impressionaram o
maestro Marcelo de Jesus, regente-adjunto da Amazonas Filarmônica.
– Eles têm um palco de 40 metros de largura. Qualquer um gostaria de reger uma ópera num palco desses.
Marcelo diz que as semelhanças entre o boi-bumbá e a ópera clássica estão na forma plástica e musical de contar uma história. Para ele, a “galera” exerce uma dupla função.
– Eles são espectadores e atores. São um coral – diz.
Até quem tem experiência em grandiosidade se empolga ao falar do boi-bumbá. Maria Augusta Rodrigues, carnavalesca dos áureos tempos da Império Serrano, conheceu Parintins em 1997 e diz que, de lá para cá, os bois evoluíram bastante.
– Hoje a gente vê bons acabamentos. As alegorias são um show à parte. Eles têm uma tecnologia ousada. Os bois chegaram a um nível de profissionalismo muito grande – avalia a carnavalesca.
Mas é justamente esse profissionalismo que deixa alguns baluartes do movimento “bovino” preocupados. Os parintinenses estão diante do desafio de manter as raízes do boi-bumbá intactas apesar das pressões mercadológicas.
– Os patrocinadores são gente forte. Tem Coca-Cola, operadora de telefonia celular, cerveja. Todo mundo quer colocar dinheiro no boi – diz o antropólogo e compositor manauense Ronaldo Barbosa. Com mais de 80 toadas e 20 anos de Caprichoso, ele teme que a “espetacularização” do boi-bumbá o afaste de suas origens.
Caminhando com a malandragem que só os cariocas e os parintinenses têm, o compositor Chico da Silva, autor de músicas como “Sufoco” e “Garoto Maroto”, cantadas por Alcione, olha com tristeza para um telão localizado a pouco mais de 50 metros da entrada do bumbódromo.
– Tem mais gente lá fora assistindo ao boi pelo telão do que aqui dentro. O boi não pode ficar longe do povo. É o povo que faz o boi ser o que é. Sem o povo, o boi não é nada! – filosofa o trovador.
Na segunda-feira, dia 30 de junho, boa parte dos barcos atracados na orla de Parintins já havia partido levando bêbados e casais desfeitos. À tarde, a cidade silenciosa aguardava a abertura dos envelopes dos jurados. Horas depois, os azuis comemorariam o bicampeonato. Metade da cidade em festa. A outra metade amuada. Por mais um ano.
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