Vários acontecimentos indicam que nossos vizinhos e parceiros ao sul estão passando por um período de preocupante instabilidade.
As origens dos conflitos são diversas, mas acabam muitas vezes se expressando na arena econômica. Os mais ruidosos enfrentamentos têm envolvido organizações de produtores rurais – em sua maioria representando grandes produtores e com posições tradicionalmente conservadoras – e o governo, que impôs restrições e impostos sobre as exportações de produtos primários como elemento de resposta à elevação dos preços.
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As dimensões assumidas por esses enfrentamentos extrapolaram qualquer espaço de negociação em uma sociedade democrática. O clima esquentou a partir do mês de março, quando os agricultores realizaram bloqueios de estradas e interrupção do abastecimento. A coisa se agravou muito quando, em meados do mês de abril, uma densa nuvem de fumaça cobriu os céus de Buenos Aires, arredores e províncias próximas. Eram os efeitos de mais de 500 focos de incêndios criminosos em cerca de 70 mil hectares de pastos, principalmente no delta do Rio Paraná.
Durante as comemorações do feriado da Independência argentina, em 25 de maio, um grande ato convocado por várias organizações agrárias reuniu multidões em Rosário.
Esses eventos trazem para o centro do debate os rumos da política econômica do governo. Ao mesmo tempo, tomou-se conhecimento da invasão de uma das sedes da organização das Mães da Praça de Maio, com severos danos às instalações e roubo de símbolos desse movimento de direitos humanos. Na mesma ocasião, a líder da organização recebeu ameaças.
Existe alguma relação entre os fatos? Enfim, o que estará acontecendo por lá? Pelo menos no campo da economia, podem-se propor algumas linhas de reflexão.
Nossas histórias econômicas em muitos momentos andaram por rotas paralelas. Para não buscar muito longe no tempo, basta lembrar que Argentina e Brasil fizeram planos de estabilização e reformas monetárias na primeira metade da década passada, que foram bem-sucedidas para erradicar a inflação crônica. Estavam baseadas em uma estratégia de câmbio fixo e não poderiam durar para sempre, por levarem a altos déficits nas transações com o exterior e ampliarem a dependência com relação ao ingresso de capitais de fora.
A Argentina sempre teve indicadores sociais muito melhores do que os nossos, nada de analfabetismo, mão-de-obra bastante qualificada. Enquanto o Brasil, no início dos anos 1980, tinha pouco mais de 40% de sua população abaixo da linha de pobreza, na Argentina 6% das pessoas
estavam nessa situação. Com o aumento da inflação e a seqüência de crises e planos de estabilização malogrados, a pobreza chegou a 34% em 1990 na Argentina e no Brasil foi a 42% no mesmo ano. A estabilização das duas economias derrubou esses valores, pois a inflação é muito mais nefasta para os grupos de renda inferior.
O Plano de Convertibilidade na Argentina foi lançado em 1991 e durou dez anos, com a economia crescendo entre 1992 e 1998. A média do PIB per capita em 1998-1999 foi de US$ 8 mil, e era cerca de US$ 3 mil dez anos antes. No Brasil, em 1999, o mesmo indicador ficava um pouco abaixo de US$ 4,5 mil. Naquele ano, o Brasil adotou o câmbio flutuante e começou um programa de redefinição da política econômica. As exportações argentinas foram afetadas e a intensificação de alguns desajustes macroeconômicos – como a elevada dívida pública e o desequilíbrio externo – trouxe a certeza de que o modelo da conversibilidade estava esgotado.
A transição monetária foi muito penosa: pela conversão de recursos em dólar para pesos e as perdas decorrentes dela, pela necessidade de renegociação de todos os contratos, com a instalação de expectativas desfavoráveis por parte de empresários e investidores, pelos efeitos da moratória da dívida externa, isso para mencionar apenas uma parte do desastre. Os indicadores sociais comprovaram um aumento do desemprego e da pobreza, que chegou a 58% em 2002, tornando a se reduzir desde então.
A partir de 2003, a economia argentina voltou a crescer forte. Mas não se pode dizer que isso aconteça sobre bases sólidas. Dado o estado de emergência instaurado pela crise, foram impostos controles sobre preços e sobre o comércio exterior, o Banco Central perdeu parte de sua autonomia, a carga tributária se elevou sem esforço concomitante de diminuição dos gastos públicos, cessaram os investimentos em infra-estrutura, aumentou a informalidade no emprego dos jovens.
Com a retomada do consumo e a falta de controle dos gastos públicos, a inflação aumentou em ritmo preocupante. No lugar da disciplina macroeconômica, o governo escolheu uma trilha mais dirigista, aproveitando o estado de emergência: impôs restrições sobre alguns preços, expurgou parte dos aumentos dos índices oficiais de inflação, limitou exportações de determinados produtos agrícolas e criou um imposto sobre exportações. Há mais de um ano, as exportações de trigo da Argentina para o Brasil foram suspensas, dentro da mesma lógica.
O governo argentino não está disposto a abrir mão das prerrogativas de uma política de crescimento a qualquer preço, apesar dos riscos e dos elevados custos em termos de estabilidade. Muitos temem rever um filme antigo ao qual nós também já assistimos: inflação alta, perda do poder de compra dos salários, instabilidade institucional, dança das cadeiras nos ministérios.
Na conturbada história econômica de nossos países, as propostas populistas tiveram pouco sucesso em aumentar o bem-estar de forma duradoura. É triste que essas escolhas políticas possam vir a impor perdas tão grandes à população argentina e, em conseqüência, a seus vizinhos e ao projeto de integração regional… Ainda mais quando o Brasil exibe uma seqüência de sucessos na economia. Uma coordenação das políticas econômicas, junto com avanços na integração, poderia trazer prosperidade à região, com benefícios a nossos outros sócios.
O Brasil vem dando importantes passos na construção da democracia, por mais que se sucedam escândalos de corrupção e que esteja arraigada a mania nacional de falar mal dos políticos e das instituições. A perpetuação de modelos políticos antigos, os atentados contra a democracia e o pequeno compromisso com a estabilidade, requisito fundamental para a inclusão econômica dos grupos de renda inferior, podem afastar a Argentina da rota de prosperidade. O Brasil e o Mercosul precisam de uma Argentina pujante e democrática!
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