Fernando Gabeira é um sujeito esperto. Consciente de que sua esquizofrenia política fez dele um ex-Gabeira, surpreendente contrafação do Gabeira que começou em mito e corre o risco de terminar em farsa, ele, aos 72 anos, dizendo-se aposentado da vida pública, mas ainda atuando a soldo do Partido da Imprensa, corre para readquirir o pleno domínio sobre sua própria biografia. Antes que algum aventureiro mais crítico, preciso e rigoroso viesse a fazê-lo.
Tenta, em um livro vago, apressado e superficial, consolidar a versão autolisonjeira de que aquilo que sugere crise de identidade, o disparate zigue-zagueante que conduziu Fernando Gabeira à atual criatura que atende pelo nome de Fernando Gabeira, na verdade se assentaria na trajetória linear de uma implacável coerência. Como se o ex-Gabeira de Onde Está Tudo Aquilo Agora? – Minha Vida na Política – com esse título de esclerótico cinismo – fosse o mesmo Gabeira do viçoso, intrigante e divertido Que é Isso, Companheiro? (de 1979).
Pessoas mudam e têm o direito a mudar. É saudável que mudem. Assim indica o ex-Gabeira ou o neo-Gabeira, ao rascunhar duas centenas de páginas com a visível intenção de transformar em virtude cívica as reviravoltas de seu oportunismo, defendendo-se da estranheza dos que possam ver contradição em um sujeito que foi capaz, sem constrangimento, de trocar a utopia delirante do Che Guevara pela loucura de hospício do Cesar Maia, de descartar José Martí para se jogar nos braços de José Serra.
Eis aí o paradoxo dos dois Gabeiras: o de agora descortina toda uma longa história para dizer que não mudou, mesmo que seja necessário reescrevê-la e retaliá-la com o dom de editor talentoso que ele um dia foi. A artimanha de Gabeira – seja qual deles for – é embaralhar de tal forma os argumentos e os fatos que, de repente, fica parecendo que os críticos de Gabeira, esses sim, é que estão equivocados. Que ele, no fundo, não mudou mesmo. Que continua sendo o produto falsamente aggiornato de uma família conservadora de Juiz de Fora, MG, mesmerizada pelo fascínio agourento do corvo Carlos Lacerda. Que o mercador de ilusões revolucionárias nunca existiu, iludido ele próprio nas brumas do voluntarismo pueril e inconsequente da luta armada.
Parece complicado? Há que se reconhecer, em Gabeira, a maestria da complicação. Ele é de fato desconcertante.
Flutua levemente por sobre episódios, no entanto pesados, a brutalidade da prisão e da tortura, o banimento e o exílio – desconversando sobre a violência perpetrada pela direita golpista e antidemocrática que acabaria, décadas depois, por se jogar a seus pés, como ídolo repentino e providencial, em eleições previamente perdidas, e descompromissando-se, assim, ele, Gabeira, de qualquer vínculo com o passado de militante da esquerda revolucionária, o que pegaria hoje muito mal nos saraus da direita carnavalesca do Leblon e adjacências – aquela turma que, você se lembra do episódio, leva a intolerância política às raias do canibalismo, a ponto de arrancar a dentadas o dedo dos eventuais adversários petistas numa noitada aparentemente cordial no bar Jobi.
Gabeira, não – o ex-Gabeira, digo. Ele é cool, maneiro, contido, usa aqueles óculos de aro que lhe emolduram a expressão de candidato à beatitude. Há de dizer que sobrepassar bem rápido as violências sofridas nos cárceres da ditadura é um jeito de emocionalmente não se vitimizar – irremediável mal dos esquerdinhas. O ex-Gabeira se encarapitou no galho de uma plataforma simpática e cheirosinha – “a consciência ecológica” –, a mesma em nome da qual acertou as alianças eleitorais as mais medonhas e infectas. Da luta ecológica, ele fala bastante no livro. Diz que é seu novo jeito de fazer política. Diz também que agora está definitivamente fora do jogo do poder. No entanto, em recente programa em cadeia nacional do Partido Verde, fez discurso digno de candidato… à Presidência da República. Nada menos do que isso. Terá, porém, de enfrentar na tribuna ecolô a concorrência igualmente fluida de Marina Silva e de sua Rede.
Nem no episódio que trouxe a Gabeira todas as luzes da ribalta ele estacionou, no livro, com suficiente minúcia e informação. O episódio da eleição, posse e queda de Severino Cavalcanti, presidente da Câmara dos Deputados, em 2005, teve em Fernando Gabeira um protagonista de duas faces. Claro que não lhe apeteceu entrar em detalhes sobre a articulação que elegeu o já então caricato Severino, operação urdida por ninguém menos que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em fase de ciumeira aguda com o sucesso do governo Lula, e endossada pela oposição, a fim de passar uma rasteira no candidato do PT e do Planalto, o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh.
A eleição para a mesa da Câmara é secreta e nunca – ainda que cobrado – Gabeira afirmou com clareza em quem votou. Mas que ele estava na conspiração pró-Severino é inegável. Quando a molecagem perdeu a graça, Gabeira, afetando legítima indignação, apresentou-se para demolir o monstro pela sua corriola criado, transformando-se em herói da pátria sob o manto luminoso das câmeras da TV Globo. Na semana em que desacatou Severino, vítima este tanto de seus próprios pecados quanto do arraigado preconceito antinordestino da mídia conservadora, Gabeira, agora definitivamente ex-Gabeira, subiu ao pódio da reação, nas páginas amarelas da revista Veja.
Assim vai vivendo Gabeira, em pele de camaleão, de autocrítica em autocrítica, sem que a gente nunca saiba o que ele vai dizer (e desdizer) mais à frente. Conhece-se, aí sim, sua atual agenda política, bem em conformidade com o escriba que passou a frequentar as páginas de opinião – única – do Estado de S. Paulo. O ex-paladino da “política do corpo” – no livro, ele revisita com ligeireza o tema – insiste no libelo à esquerda arcaica, a quem ele já tinha assumidamente dirigido os torpedos hormonais de O Que é Isso, Companheiro?
“Não podemos esperar setenta anos por um orgasmo”, disse em 1979 o recém-recambiado Fernando Gabeira. Setenta anos, calculava ele, seria o timing simbólico da consolidação da utopia revolucionária. A frase, manchete do jornal gay Lampião, ainda o encanta. O que ele pretendia, com a tal política do corpo, seria “superar o emaranhado repressivo das regras disciplinares (da esquerda), de romper com a rígida divisão entre cabeça e corpo”. Recorda a perplexidade dos ex-companheiros. “Como, depois de participar do sequestro do embaixador americano, reaparecer de sunga na praia de Ipanema? Não era coisa de homem.”
A diáspora, abrigada na França pós-68 ou no Chile de Allende, na Suécia (por onde passou nosso herói) e mesmo em Cuba, expôs os exilados brasileiros à aragem de temas novos e revigorantes e a volta de Fernando Gabeira, assim como a de Glauber Rocha, para ficar nos exemplos mais exacerbados de mutação ideológica, estimulou em muita gente o ensejo da reflexão. A nova esquerda acabou adquirindo certo jogo de cintura. E a direita brucutu? Bem, dessa Gabeira nunca cobrou nada. Na visão dele, a direita – e aí penso no Roberto Freire, no Roberto Jefferson, no Roberto DaMatta, no Ferreira Gullar, no Ives Gandra Martins, os atuais compagnons de route de Gabeira – deve ter um tremendo suingue.
O ex-Gabeira simula, na escrita e na vida, a pose de sábio zen, como se quisesse deixar para trás a faceta de provocador e a vocação para a controvérsia, mas o fato é que continua um obcecado pelo estrelato. Você atravessa essa superfície rasa de fabuletas que é Onde Está Tudo Aquilo Agora? e não deixa de concluir, com certa comiseração até, que se há coerência nos dois Gabeiras, como ele pretende, o cimento que os une é a incomensurável vaidade. De foca do semanário O Binômio, em Minas, a candidato duplamente derrotado no Rio, a prefeito e a governador, do sequestro do embaixador Elbrick, no qual, aliás, teve papel secundário, ao episódio da sunga de crochê no píer de Ipanema, o que prioritariamente o move é a angústia do spot. Mas o espetáculo perdeu a graça. I
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