Elas são jovens, descoladas e tornaram-se amigas em função da profissão pouco comum, escolhida pelas três. As paulistanas Gabriela Monteleone, 25 anos, Giuliana Ferrera, 33 anos, e Daniela Bravin, 35 anos, são sommeliers e trabalham em restaurantes e casas noturnas de São Paulo. A escolha é tão pouco comum que raramente se usa sommelières, o feminino da palavra francesa. Diferentemente dos enólogos (profissionais formados em enologia e que entendem de química, plantio e produção de vinho) e dos enófilos (estudiosos e entendedores de vinho, mas que não trabalham na área), elas são responsáveis, entre outras coisas, por elaborar a carta de vinhos e indicar a melhor bebida para o cliente. E para exercer a função elas devem saber de tudo um pouco no que diz respeito às plantações, cultivo e espécies de vinhos. A profissão é aprendida meio na raça, já que no Brasil não existem muitos cursos de formação – apenas um realizado pela Associação Brasileira de Sommeliers (ABS), em São Paulo, com duração de um ano, e os cursos da Escola de Educação Profissional Senac Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Algumas vezes os profissionais têm de ir para a Europa em busca de especialização.
A função do sommelier surgiu na Idade Média, quando os reis escolhiam uma pessoa de sua total confiança para experimentar, antes, o vinho que seria servido nas refeições. Atualmente, ninguém mais precisa certificar-se que a bebida não esteja envenenada, mas os sommeliers têm de estar atentos aos hábitos e desejos dos clientes. Precisam saber, por exemplo, o estilo de vinho preferido (encorpado, leve, amadeirado, aromático…), a origem (chileno, espanhol, argentino, francês, italiano ou brasileiro), qual o prato pedido (para indicar o melhor acompanhamento), e também quanto o freguês deseja gastar. Para Gabriela, o profissional deve ter sensibilidade para identificar e indicar o que o consumidor quer beber. Mas, o que ela mais gosta de ouvir é uma afirmativa quando, ao final do jantar, pergunta ao cliente: “Era isso mesmo o que você estava querendo beber”?
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As três amigas concordam que, independentemente do tipo, os vinhos têm personalidade e vida, como os seres humanos. “O Chardonet da Borgonha é um vinho elegante e clássico, tem a delicadeza feminina. Já um Bordeaux é mais forte, é um vinho potente. Seria uma garrafa masculina”, ensina Giuliana. Mesmo com tanto conhecimento, muitas vezes elas acabam esbarrando em preconceito. “Ainda hoje, em algumas situações, eu percebo que a pessoa não bota fé naquilo que eu digo. É como se eu não entendesse do assunto”, diz Gabriela. Segundo ela, isso acontece mais entre os colegas de trabalho do que com os próprios clientes. Mas, depois de vencerem a resistência em um ambiente quase que exclusivamente dominado pelos homens, elas partem, agora, para outra batalha. Juntas, querem desmistificar o glamour ao redor do vinho e torná-lo mais popular. “O vinho não precisa ter toda essa pompa que tem no Brasil. Historicamente, ele sempre esteve na mesa de todos – desde o camponês até o senhor feudal”, diz Daniela.
Elas perceberam que o público consumidor da bebida está diferente e acreditam que o serviço também deve acompanhar essa mudança de comportamento. Para isso, investem na descontração. Tanto na maneira de vestir-se como no tratamento mais informal com os clientes. “Eu trabalho de tênis e sirvo da mesma maneira que um cara de terno e gravata. E aí? Eu sou tão boa profissional quanto ele. A diferença é que temos um pique mais moderno, temos uma proximidade maior com o novo consumidor de vinho”, afirma Daniela. As três também estão trabalhando na criação de um blog ainda em construção (http://agentenaoquersocomida.vip.net), que servirá de manual para quem quiser saber um pouco mais sobre a bebida. Além de elucidar as maiores dúvidas em relação aos vários tipos de vinho, o blog dará dicas de compras, desde uma garrafa mais tradicional e cara, até aquela que pode ser comprada em supermercados por R$ 15. “Vinho é muito mais simples do que as pessoas imaginam”, afirma Giuliana.
Desmistificar esse tipo de bebida é um trabalho árduo mas que vem sendo transformado com o tempo. Diferente do que ocorre na Itália e em outros países da Europa, no Brasil o vinho sempre teve referências glamorosas. Para os italianos, por exemplo, é comum a presença do vinho em todas as casas. É um hábito secular. Até mesmo nas fábricas italianas, como a Fiat, o vinho está presente – ele é servido a todos os funcionários, desde operários até diretores, durante os almoços nos refeitórios. Já, no Brasil, a história é outra. A causa pode estar no clima, no solo e em um conjunto de ecossistemas, mas também devido ao protecionismo comercial português exercido pela corte, que em 1789 proibiu a plantação de videiras no Brasil. O vinho só chegou por aqui com os imigrantes italianos na virada do século XIX para o XXI. O cenário atual, felizmente, é outro. É cada vez maior a produção das vinícolas nacionais, instaladas, em sua maioria, no Rio Grande do Sul e com uma única instalada no Nordeste, no Vale do Rio São Francisco.
Gabriela Monteleone
Descendente de imigrantes italianos, Gabriela Monteleone credita a isso sua vocação para os vinhos. Com algumas tatuagens pelo corpo – cachos de uvas nos dois punhos e folhagens de parreira no braço direito -, ela lembra que, para sobreviver na terra da garoa, sua família teve de montar um armazém na Avenida do Estado em que entravam e saíam, diariamente, grandes barris de vinhos, vendidos em litros para os saudosos compatriotas de seus bisavós.
Filha de médico e amante de uma boa conversa, Gabriela fugiu do previsível e, quando teve de decidir uma carreira, optou pela hotelaria. Com o tempo, foi amadurecendo as influências do pai, um admirador da boa comida, e migrou para o curso de gastronomia. Na mesma época, começou a trabalhar como garçonete no bar Public PUB, em São Paulo. No último ano da faculdade começou um estágio na Acqua Santa, uma enoteca importadora de rótulos italianos. Apaixonou-se pelos vinhos e partiu para a Itália com o objetivo de aprofundar-se nos estudos sobre a bebida. De volta ao Brasil, trabalhou como hostess do ICI Bistrô, onde conheceu Daniela. Discreta e supermoderna, a jovem leva uma vida agitada. Trabalha há seis meses no Museum, uma casa noturna na zona sul de São Paulo, onde acumula as funções de gerente da área vip e sommelier, além de ser responsável por todas as bebidas alcoólicas da casa. Entra às 18 horas e sai depois das cinco da manhã.
E o vinho não está presente somente no trabalho. A moça não dispensa a bebida no seu dia-a-dia. “Tomo ao menos uma taça para acompanhar as refeições”, conta.
Giuliana Ferrera
Desde 1999 a jovem paulistana da Mooca trabalha como hostess e garçonete em restaurantes espalhados pela cidade de São Paulo. Mas somente há quatro anos ela foi introduzida no universo de Baco, o deus do vinho. O responsável foi seu amigo e sommelier do grupo Fasano, Manoel Beato. Descendente de italianos, a descoberta da nova profissão fez, de certa forma, com que ela retornasse à infância. Sua avó dizia que se as crianças tomassem uma colherinha de vinho do porto puro ou misturado com gemada, diariamente, cresceriam mais fortes e coradas. Na adolescência, a garota, obrigada pelo tio, passou a beber vinho misturado com água. “Não era muito saboroso, mas foi o princípio de tudo”, relembra Giuliana. Em 2005, ela resolveu entrar para o curso da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS) e, a convite de Fernando Iglesias, filho do proprietário, entrou para o grupo Rubaiyat, composto por sete restaurantes – quatro em São Paulo, um em Buenos Aires e dois em Madri. Giuliana trabalha com uma carta de 1.500 rótulos, a mais completa de São Paulo, e é um dos três sommeliers do Figueira Rubaiyat. Em 40 anos de vida, é a primeira vez que a casa tem uma mulher nessa função. “Mesmo estudando muito, acho que nunca vou saber tudo sobre vinho, pois seu entendimento é infinito. Duas garrafas de tintos, aparentemente idênticas, podem ter sabores, origens e histórias opostas”, diz.
Daniela Bravin
A mais experiente das três, Daniela é despojada e cheia de estilo – tem os cabelos raspados, costuma usar camisa xadrez, calça jeans, tênis Vans (marca descolada americana) e óculos modernos de aros grossos. Nada parecido com a imagem que a maioria das pessoas tem de um sommelier. Também fã de tatuagens, tem estampada no braço direito a frase Vino Veritas, termo usado pelos antigos romanos e que significa “a verdade está no vinho”! Eles acreditavam que a embriaguez provocada pela bebida deixava a pessoa mais “solta”, sem papas na língua. De família tipicamente paulistana, também com descendência italiana, Daniela viajou para a Europa aos 18 anos e lá acabou trabalhando na cozinha de um restaurante na Espanha. Ao retornar ao País trabalhou em vários bares e restaurantes, experiência fundamental para que, em 2002, abrisse o seu próprio bar, o Star Dust, no bairro de Pinheiros. O negócio durou apenas um ano, tempo suficiente para ela perceber que lhe faltava experiência com bebidas. Entrou, então, para a ABS. “Ser sommelier não é somente abrir uma garrafa de vinho. É preciso ter uma formação mais ampla”, acredita. Hoje, ela trabalha em dois lugares. No almoço, é gerente e sommelier do restaurante italiano Tappo Tratoria e à noite cuida da carta de vinhos do ICI Bistrô, no bairro de Higienópolis. O seu vinho predileto é o italiano Barolo, encorpado, pesado, cheio de personalidade e carregado de tanino (substância que está na casca e na uva e provoca uma sensação de adstringência na boca), não o dispensa vez ou outra.
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