Violão, pampa e milongas

Vitor Ramil em show de lançamento do disco. Foto: Paulo Rossi
Vitor Ramil em show de lançamento do disco. Foto: Paulo Rossi

O pinho na garupa, montado em um cavalo sem cabeça, seguido de perto por um cachorro pintado. Eis o milongueiro Vitor Ramil, gaúcho que se apresenta sem qualquer adereço – bota, bombacha, boina, poncho ou esporas –, capaz de identificá-lo com os primitivos habitantes do pampa, o bioma campestre que unifica a paisagem de pedaços do Rio Grande do Sul, do Uruguai e da Argentina. E, no entanto, olhe bem o tipo, não há por essas bandas um criador com uma tropilha tão variada.  

Tantas metáforas pedem esclarecimento: a tal tropilha é o recém-lançado songbook, 362 páginas, contendo a biografia do artista nascido em 1962, além de fotos, letras, desenhos e 62 partituras de canções inspiradas na geografia da campanha ou construídas a partir de referências gaúchas.  Com o livro, ele lançou o CD duplo Foi no Mês que Vem (o décimo de sua carreira) em que se destacam milongas, gênero meio esquecido que encontrou em Vitor Ramil um criador extraordinariamente fecundo. Sutil, diferenciada, carregada de lirismo meio country/meio cult, a produção é festejada não só no pampa, mas também fora dele. As gravações do CD foram parcialmente financiadas por 863 assinantes de oito países, arrebanhados via internet.

Tropical, pero no mucho

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OUTRAS OBRAS A produção literária de Vitor Ramil e Foi no Mês que Vem, seu mais recente trabalho, que reúne CD e songbook


Respeitado como compositor, cantor, escritor e violonista, Vitor Ramil chamou a atenção ao publicar um ensaio sobre o que ele denominou a estética do frio. A história começou quando ele morava no Rio de Janeiro. Estava sem camisa no apartamento quando viu na TV uma notícia sobre a ocorrência de neve no Rio Grande do Sul. O apresentador dava à notícia um tom de fenômeno, como se falasse de outro País.

Inspirado pelo contraste calor-frio, Vitor escreveu um texto explorando as diferenças entre a cultura tropicalista da maioria dos artistas brasileiros e as obras feitas no Sul sob a influência das baixas temperaturas. Publicado em 1992, o texto foi ampliado para sair em formato de livro em 2004. A Estética do Frio virou um manifesto antropotérmico original para um país dito tropical. 

Embora tenha começado à sombra dos irmãos Kleiton & Kledir, que lhe ensinaram a tocar violão e lhe permitiam participar de shows no início da carreira deles, o último dos seis irmãos Ramil vive da própria música desde os 18 anos, quando ganhou um dos troféus da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, na fronteira com a Argentina. Com letra de José Fogaça, depois deputado e prefeito de Porto Alegre, a canção Semeadura foi vaiada porque era ousada para a época (1980). Nos anos seguintes, a música lhe rendeu uma pecha temporária (“comunista”), que foi se apagando à medida que o País se abria para a pluralidade democrática. Hoje, lhe rende alguns dividendos de direitos autorais, vindos principalmente do exterior, graças a uma gravação (Siembra) de Mercedes Sosa (1935-2009), la gran subversiva argentina.

Foi também em 1980 que Vitor lançou o primeiro disco, Estrela, Estrela, nome de uma bela canção que seria gravada por Gal Costa. Aliás, Gal não foi a primeira grande voz a encarar as melodias dele. Mina de Prata, a primeira canção, composta aos 15 anos, foi gravada em 1979 por Zizi Possi. Vitor  começou por cima, favorecido ainda por um contrato com a Ariola.

Mesmo trotando solito na estrada larga da MPB, Vitor tem uma trajetória pontilhada por parcerias decorrentes de afinidades estéticas com astros nacionais e estrangeiros. Caetano Veloso, Milton Nascimento e Ney Matogrosso já participaram de discos dele. Na Argentina, fez dupla com Fito Paez. Na Espanha, mantém correspondência com o uruguaio Jorge Drexler. No show de lançamento do último CD em Porto Alegre, três noites de casa cheia no Theatro São Pedro, fez-se acompanhar pelo violonista argentino Carlos Moscardini, que explora sonoridades típicas da música criolla, consagrada por músicos como os também argentinos Atahualpa Yupanqui (1908-1992) e Jorge Cafrune (1937-1978). Outro acompanhante contumaz é o não menos argentino Pedro Aznar.

Nesse último trabalho ficou claro, mais uma vez, que Vitor paira sobre as fronteiras do Mercosul com produção diferenciada em melodias, ritmos e arranjos. Tendo o Sul como referência, é um regionalismo de sabor clássico, que se sustenta basicamente sobre a sonoridade do violão, embora não dispense instrumentos de corda e couro.

Resumindo: Vitor faz parte da confraria de compositores populares-eruditos, como Egberto Gismonti e João Bosco, entre outros. Sua produção tem afinidade com o rock de Rita Lee, mas também se aparenta com as cantigas medievalescas de Elomar Figueira Mello. O jornalista Juarez Fonseca, conhecedor profundo da música popular do Sul, comparou Vitor a “um Rimbaud sulista do século 21”. 

Sem concessões à moda ou ao mercado, Vitor viaja na contracorrente. Lê muito e escreve letras delirantes. Mais só do que acompanhado, cria uma obra que não se limita à canção, mas incorpora textos longos, condensados em livros, como Pequod e Satolep, dois romances em que os personagens centrais são solitários que vivem a fazer perguntas no afã de se encontrarem e acharem o sentido das coisas. Vitorino de La Mancha, por exemplo, é personagem indisfarçavelmente autobiográfico, mas descolado do original em vários aspectos. E tudo é ambientado na cidade mítica Satolep – ou Pelotas –, a cidade onde Vitor nasceu e vive por opção, após ter morado seis anos em Porto Alegre e outro tanto no Rio. “Inventei Satolep para não ficar preso à Pelotas real”, diz ele, que se prepara para lançar outro título. O apego à terra natal é um dos traços singulares do artista. Ele gosta do frio, sente-se bem na cidade plana onde mora com a mulher, Ana Ruth, pertinho da Bento Gonçalves, avenida que leva à praia da Lagoa dos Patos e ao pampa mais profundo. A casa é simples, fachada estreita composta por porta alta e janela larga. Vitor não pensa em migrar outra vez, embora às vezes sinta falta da riqueza cultural das capitais. Mas ele vai sempre a Porto Alegre, onde estudam seus filhos, Ian e Isabel.

Seu amor por Pelotas não impediu que lhe invertesse o nome, subvertendo-lhe a identidade. Satolepou-a para ter liberdade. Uma das primeiras coisas que fez foi outorgar-se o título de Barão de Satolep, brincadeira com a cidade que ainda se orgulha dos títulos de nobreza da época do Império. Na realidade, o único título que a cidade lhe deu foi o de técnico em edificações, obtido nos anos 1970 na Escola Técnica Federal de Pelotas. Diploma mais para mostrar ao pai, Kleber, do que para exercer um ofício que não fosse a música.

Palíndromo: Satolep é a cidade úmida e fantasmática construída pelo artista gaúcha
Palíndromo: Satolep é a cidade úmida e fantasmática construída pelo artista gaúcha

Morando nessa cidade real/mitológica, Vitor Ramil chegou a compor rock (gosta muito de John Lennon), mas vem se aprofundando na exploração de temas rurais, que têm o campo como cenário, o violão como montaria e a milonga como rédea, freio e buçal. Não admira que os críticos o reverenciem. “Sempre esteve mais para Bob Dylan, um pé no rock e outro no folclore, ou para Caetano Veloso, um pé na ousadia e outro na tradição”, escreveu Luís Augusto Fischer, professor de Literatura da UFRGS, no prefácio do songbook.

É uma boa comparação, mas na realidade Vitor chegou ao atual patamar de excelência porque estuda e vive intensamente as nuances da própria sensibilidade. “Não perco tempo com canções que não me dizem respeito”, diz ele, lembrando que, desde criança, a música lhe trazia emoções extraordinárias. Criança, na matinê, ficava ligado no fundo musical das aventuras de Tom & Jerry. No intenso carnaval de rua de Pelotas, emocionava-se quando as baterias das escolas de samba passavam junto da multidão espremida nas calçadas. Seu pai, engenheiro agrônomo nascido no Uruguai, sempre acabava chorando ao cantar um dos seus tangos preferidos.

“Chorei copiosamente ao compor certas milongas”, confessa ele no songbook. Refere-se a composições que fez para letras de João da Cunha Borges, João Simões Lopes Neto e Jorge Luis Borges. Segundo Vitor, há poemas que já nascem carregados de musicalidade, enquanto outros não têm vocação para a canção. São ricas as milongas que vestem as poesias campeiras de Cunhas Vargas, um declamador de Alegrete, que hoje teria 113 anos. Também saíram facilmente as músicas para os versos do argentino Borges, 114. Impressionante a canção Ramilonga, feita em homenagem a Porto Alegre, cidade de 241 anos. No momento, Vitor Ramil vem musicando os poemas de Angélica Freitas, pelotense que tem o dom da musicalidade nas letras. Quem viver, ouvirá.


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