Reali Jr., o repórter que virou doutor

Atualização às 23h55:

no final deste post, os leitores encontrarão a íntegra do discurso de Reali Jr. ao agradecer a homenagem que recebeu nesta quinta-feira, 19 de março.

Com 16 anos, ele foi caçar trabalho porque queria se casar. Sem antecedentes na família, padrinhos nem vocação precoce para o jornalismo, pediu ajuda a um amigo chamado Bauru que trabalhava na Rádio Panamericana, hoje Jovem Pan. Nunca havia entrado antes num estúdio de rádio. Fez o teste, passou.

Isto faz mais de 50 anos. Começou como locutor, virou repórter e nunca mais quis fazer outra coisa na vida. Trabalha até hoje na mesma emissora, depois de passar também por alguns dos maiores veículos de comunicação do país.

Casou-se com Amelinha, sua namorada de toda a vida e tiveram quatro belas filhas. No auge da ditadura militar, foi trabalhar como correspondente da Jovem Pan e do Estadão em Paris, onde virou o nosso embaixador de fato, faz 36 anos.

Hoje de manhã, Elpídio Reali Jr. colheu, aos 68 anos e com a saúde bastante abalada, o que plantou durante toda a vida. No lotado auditório Nelson Carneiro, do campus da FMU na Liberdade, cercado de amigos, professores e estudantes, ele recebeu o título de “Doutor Honoris Causa” das mãos do presidente da instituição, Edvaldo Alves da Silva.

Assim Reali Jr. virou um doutor repórter sem ter se graduado em jornalismo, como tantos outros profissionais da sua geração. Testemunha ocular da história, lema do antigo Repórter Esso, Reali Jr. dedicou sua vida a prestar informações corretas à sociedade, no rádio, em jornais e na televisão, e a ajudar os outros.

É um tipo raro de jornalista que consegue reunir três qualidades ao mesmo tempo: tem um enorme talento, é um pé de boi para trabalhar e não abre mão dos seus princípios. Reali Jr. é um jornalista de caráter.

Logo cedo, quando falei para o motorista de táxi onde queria ir, ele me perguntou: “Ah, o senhor vai naquela homenagem ao Reali Jr.?”. Como tantos outros paulistanos, o taxista habituou-se com a voz dele todas as manhãs, falando diretamente de Paris, e tinha acabado de ouvir o noticiário sobre a entrega do título.

Em seu velho e acanhado apartamento-redação na rua Ranelag em Paris, recebia todo mundo do mesmo jeito simples e fraterno – de ex a futuros presidentes da República, grandes empresários e pequenos livreiros, jovens correspondentes ou velhos exilados, ministros, estudantes, autoridades e anônimos em geral.

Foi lá que acertei minha volta ao Brasil, quando era correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha, para trabalhar na IstoÉ pioneira do Mino Carta, uma trama da qual ele participou junto com outros amigos, no final dos anos 1970.

Não houve nestas quase quatro décadas correspondente brasileiro na Europa que não tenha recorrido ao Reali nos momentos de aperto durante as coberturas.

Com ele não tinha esta coisa de concorrência entre colegas, buscar o furo a qualquer preço, embora sempre procurasse fazer o seu trabalho o mais completo e melhor possível, e geralmente conseguia.

Quando saíamos para jantar juntos, as filhas dele tomavam conta das minhas. Enquanto ele vivia com a casa cheia de gente para discutir os rumos da política brasileira, a incansável Amelinha cuidava para que ninguém passasse fome nem sêde. Por ironia do destino, ele vive hoje sob uma dieta rigorosa.

Desde que chegou ao Brasil para passar férias, faz um mes, ele já foi internado três vezes no Hospital Oswaldo Cruz, de onde só saiu para receber a homenagem e para onde volta hoje, à espera de um transplante de fígado.

Mestre do improviso, que os longos anos de rádio lhe ensinaram, desta vez ele preferiu ler o texto de agradecimento que preparou para não ser traído pela emoção que marcou a cerimônia, em especial quando falaram Joseval Peixoto e José Carlos Pereira, seus velhos companheiros de Jovem Pan.

Para os muitos amigos e ouvintes de Elpídio Reali Júnior, meu velho amigo Realinho, que não puderam estar presentes, pedi a ele que me mandasse o texto do seu discurso para reproduzí-lo aqui no Balaio:

Agradecer, agradecer, agradecer.

Essa é a tribuna sonhada por alguém que pretende manifestar gratidão a todos os que o ajudaram a chegar ao epílogo da carreira de um simples repórter.

Jamais pude imaginar, jamais passou pela minha cabeça, que um dia receberia um título geralmente reservado a professores eméritos, intelectuais que têm marcado suas vidas pelo saber.

Estou aqui para agradecer a todos os que de uma forma ou outra participaram da materialização desse título.

Em primeiro lugar, aos veículos onde trabalhei durante décadas e que me permitiram estar aqui hoje : a Jovem Pan e O Estado de São Paulo.

Ambos me ofereceram a liberdade de expressão, jamais cerceada, mesmo nos momentos mais difíceis.

Gostaria de citar o exemplo de mestres como Cláudio Abramo, Mino Carta, Fernando Pedreira, Nabor Cayres de Brito, Mauro Guimarães, Fernando Vieira de Mello, nomes do rádio, da televisão e dos jornais.

Agradeço ao Complexo Educacional FMU, FIAMFAAM e FISP e a seu conselho, principalmente ao Professor Edevaldo Alves da Silva, que tive a honra de conhecer e admirar desde o início de sua atividade.

Lembro-me muito bem do Edevaldo, ainda muito jovem, integrando a equipe de investigação do professor Francisco Petrarca Ielo, um nome inesquecível para nós dois, tanto assim que foi padrinho do meu casamento e do dele.

Vi Edevaldo crescer profissionalmente, uma carreira construída pedra sobre pedra, base de um edifício difícil de destruir, ao contrário de outras carreiras de sucesso vertiginoso, mas momentâneo.

Ambos, Ielo e Edevaldo, me fazem lembrar de meu pai, Elpídio Reali, a quem dedico esta homenagem – um homem simples, cuja dignidade sempre foi realçada, e que após chegar a ocupar a mais alta função de sua carreira, a de Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, afastou-se discretamente, abrindo espaço para os seus próximos, vibrando com seu êxito, mas sempre presente para orientá-los e, se fosse o caso, advertí-los com uma palavra de atenção.

Esse pai sempre se comportou como um irmão mais velho. Ele me faz falta, muita falta nos momentos mais difíceis da minha vida.

Sua presença continua sendo insubstituível. Foi quem preparou meu caminho profissional, foi e ainda é meu modelo de dignidade, razão pela qual lhe sou imensamente grato pelo carinho e por seus puxões de orelha.

O carinho que nos uniu não desapareceu com a sua ausência.

Meu caro professor Edevaldo, tudo farei para ser digno dessa distinção.

Tenha certeza de que minha humildade é autêntica e verdadeira.

Consagrei toda minha vida, desde os 16 anos, à “profissão repórter”. Desde o início, sempre procurei o mesmo objetivo – a informação mais correta e não manipulada.

Posso ter cometido falhas e enganos _ não propositais, mas causados pela minha própria incapacidade, como correspondente, no exterior, de “O Estado” e da “Rádio Panamericana”.

Passei também, aqui no Brasil, por redações de outros órgãos de imprensa – TV Bandeirantes, O Globo, TV Globo, TV Record e ESPN.

Em todos esses órgãos privilegiei a ética jornalística, na busca e publicação da informação, procurando fazer dela o exemplo de dignidade da profissão.

Lembro-me da forma como, há algumas décadas, alguns patrões encaravam seus repórteres.

Pude assistir à evolução da profissão e como certos colegas hoje se destacam, com um comportamento profissional que nada tem a ver com o passado. A eles também quero agradecer.

A nova geração que começa a se destacar traz consigo, em sua forte maioria, esse respeito ético, mesmo sabendo que o caminho ainda será longo.

Dirijo ainda meus agradecimentos a um homem que também me orientou desde meus primeiros passos como jornalista, também ligado à Comunicação e às letras jurídicas.

Seria ingratidão não citá-lo. Trata-se do desembargador Edgard de Moura Bittencourt, meu sogro, que me confiou uma das mais nobres tarefas de toda a minha vida _ a de receber sua beca de volta no Tribunal de Justiça e entregar um único processo que aguardava sua decisão, no dia em que sua missão foi brutalmente interrompida pelos militares, quando foi cassado, nos primeiros dias do mês de abril de 1964.

Moura Bittencourt também exerceu sobre mim uma importante influência profissional .

Todos eles me ajudaram a ser um bom repórter , ao lado de uma disposição para trabalhar,ainda um adolescente.

Toda a minha vida foi consagrada ao meu trabalho de repórter. Não tive a pretensão de ser um grande articulista, que através da palavra escrita se impõe, mas sim um apurador de notícias, um obstinado na busca da informação que caracteriza a “profissão repórter”.

Antes de tudo a informação pura, real, e só depois a análise mais profunda e suas conseqüências.

Não me apresento como um observador ou comentarista dos fatos, nem como um professor de jornalismo, mas como um repórter que buscou exemplos dentro e fora de suas atividades, para construir sua carreira profissional.

Mas nada mais fiz do que o meu dever.

Na minha vida tive sucessos e enfrentei alguns fracassos, como todos os homens, mas sempre procurei deixar a meus descendentes um legado de ética e honradez.

Eu gostaria também de felicitar outros agraciados neste ciclo de conferências da FMU.

Como puderam ver, estou aqui para dividir com todos os presentes esse bom momento de minha vida, momento de generosidade da FMU dedicado a mim.

Mesmo afastado do Brasil há quase 40 anos, durante todo este tempo sonhei em ver meu país mais equilibrado, com melhor distribuição de renda e mais próximo de seus objetivos sociais.

Procurei buscar lá fora exemplos positivos, que pudessem ajudá-lo nesse caminho. Apesar dos pesares, esses exemplos ainda existem.

Também quero agradecer à generosidade e ao carinho dos meus ouvintes e leitores de São Paulo, cidade que sempre me recebeu como um filho.

Por tudo isso, espero ser digno da distinção, que aceito com muita humildade.


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