Elza Soares: ela voltou

A cantora Elza Soares, em 2009, na escadaria do Bar Brahma em São Paulo (foto: Luiza Sigulem)
A cantora Elza Soares, em 2009, na escadaria do Bar Brahma em São Paulo (foto: Luiza Sigulem)

“Ela tem um saxofone na garganta”, foi o que disse a lenda do jazz estadunidense, Louis Armstrong, sobre a voz de Elza Soares, na época uma garota de 20 e poucos anos. Elza e Armstrong foram convidados a epresentar seus países na Copa do Mundo de Futebol de 1962, no Chile, em que o Brasil foi bicampeão, e cantaram lado a lado. O timbre de voz potente daquela jovem, com apenas 1,58 m de altura e que era também a madrinha da seleção brasileira, lembrava o do astro norte-americano; foi então que começaram a chamá-la de “a filha de Louis Armstrong” e assim Elza Soares foi apresentada ao mundo. Mas a garota Elza protagonizou uma – de muitas – cena cômica. “Ele (Armstrong) me chamava de ‘daughter’ e eu entendia doutora. Mandei dizer pra ele que meu nome era Elza e não doutora. Aí me mandaram ir fazer um carinho nele, naquele armário, um baita negão, e chamá-lo de ‘my father’, mas tudo que eu entendia era que queriam que eu falasse para ele me foder”, diverte-se. Elza, que hoje fala várias línguas, considera-se filha espiritual do grande mestre do jazz.

Após décadas de apresentações nos grandes palcos do Brasil e do mundo, Elza resgata o calor de cantar em um bar. Numa pausa de sua bem-sucedida carreira internacional, que a mantém a maior parte do ano distante de terras brasileiras, a cantora e sua voz rouca apresentam-se desde o início de janeiro na mais famosa esquina de Sampa (Avenida Ipiranga com Avenida São João), com o show “Uma canja com Elza”. As quartas-feiras do tradicional Bar Brahma, com ingressos a R$ 55, são disputadíssimas e os 250 lugares do salão principal lotam num piscar de olhos.

Eu quis voltar a cantar em bar, como fiz apenas no início de carreira, porque as grandes divas da música internacional o fazem. E o contato tão próximo com a platéia está sendo incrível. O público paulistano é lindo, maravilhoso e respeitador, estou adorando”, fala entusiasmada. E há uma forte razão para a cantora carioca ter escolhido São Paulo para voltar a se apresentar nos bares. “Adoro São Paulo, foi aqui que eu comecei, e os grandes músicos brasileiros também. É uma cidade maravilhosa. Nada mais natural do que voltar para onde minha carreira praticamente nasceu”, revela a cantora. Ela acabou de retornar de shows pela Europa com a banda Farofa Carioca, que revelou Seu Jorge e hoje conta com Mário Broder nos vocais.

Ver Elza Soares no palco é contagiante, nunca um espetáculo é igual ao outro. Irreverente e moderna, leva os fãs à loucura com as primeiras palavras cantadas no palco do Bar Brahma. É categórica ao afirmar que não é uma sambista. “Eu não gosto de rótulos e nem de títulos, eu canto de tudo, desde samba, jazz, hip hop, soul, até mesmo rock. Eu fui roqueira, sabia? Era do tipo punk, apaixonada por rock’n’roll. Cheguei a cantar no Madame Satã (uma casa de shows de rock na capital paulista) e quase afundei aquele lugar, de tanto que as pessoas pulavam e dançavam. Era demais”, revela. Mesmo sendo uma cantora tão versátil e universal, Elza, inquieta que só ela, acredita que ainda falta muita coisa para cantar. Um de seus vários projetos para este ano é gravar músicas da diva do blues, Billie Holiday. “Adoro as músicas interpretadas por ela, especialmente ‘My Man’ e ‘You go to my head’”, afirma Elza, que também pretende interpretar músicas do trompetista Chet Baker.

Surge a estrela

Nasceu em uma favela do Rio de Janeiro, casou-se muito jovem e aos 12 anos já estava grávida do primeiro filho. “Eu era uma moleca, morava em Água Santa e todos os dias levava café para meu pai na pedreira com uma louva-deus atrás da orelha. Adorava aquele ruído rouco. Acho que foi daí que tirei inspiração para cantar como eu canto. Até que certo dia, um menino uns cinco anos mais velho que eu assustou a louva-deus e ela foi embora. Fiquei enfurecida, me atraquei com ele e tivemos uma briga do cacete no meio do mato. Sangrei e tudo mais. Meu pai nos flagrou e achou que o cara estava me estuprando. Foi aí que casei pela primeira vez, porque meu pai achou que era mais responsável que fosse assim”, revela.

Garota inocente, Elza adorava brincar na rua. “Eu nem sabia o que era sexo, eu queria mais é empinar pipa. Aí aquele moleque com quem me casei quebrava minhas pipas, acabava com meu cerol e também com meus peões de madeira que eu tanto gostava. Eu fazia amarelinha e ele destruía tudo, e assim fui entrando para a adolescência”, recorda. Com o primeiro marido, Elza teve sete filhos, dois morreram famintos e outro foi doado, tamanha a miséria em que a família se encontrava. O jovem marido morreu tuberculoso e ela, com apenas 18 anos, já era viúva.

Elza era apenas uma menininha de 13 anos de idade quando participou do programa de Ary Barroso na Rádio Tupi. Preocupada em comprar remédio para o filho recém-nascido, fez sua primeira apresentação ao vivo no auditório da emissora, que era a maior de seu tempo, e a plateia ria muito da garotinha de tranças com aquele vestido esquisito, cheio de alfinetes para esconder o excesso de pano da roupa da mãe. Sentiu-se humilhada com as risadas dos espectadores e Ary Barroso, que a tratara por filha, como fazia com todos os calouros, foi seco e rude no palco. “Que você veio fazer aqui?”, perguntou ele postado ao piano. Ela disse imediatamente: “Vim cantar”. Ele, de forma irônica, perguntou: “Mas de que planeta você veio mesmo?”. O público caiu na gargalhada com a situação, mas logo em seguida ficaram estarrecidos com a resposta direta e franca da garota: “Senhor Ary Barroso, eu vim do planeta da fome, do mesmo planeta que o seu”. A platéia, que há pouco gargalhava, emudeceu imediatamente. Quando ela começou a cantar “Lama”, na certeza que não seria “gongada” no programa, como era costume acontecer com os maus calouros, lembrou do que aprendeu a fazer com as latas de água que carregava na cabeça na favela, quando balbuciava sons ao ritmo daquele balanço. Arrancou aplausos eufóricos de todos ali presentes. Naquele momento, Ary Barroso anunciava o nascimento de uma estrela.

Renascendo das cinzas

Aos 25 anos conheceu o homem que marcaria sua vida, Manuel Francisco dos Santos, ou simplesmente, Mané Garrincha. Ao lado dele enfrentou muitos obstáculos, preconceitos e ela ainda chamou a atenção da ditadura militar ao gravar o jingle da campanha de João Goulart, o Jango, à vice-presidência. Naquela época, suas atitudes ousadas e sempre à frente de seu tempo eram vistas com maus olhos, e por essa razão ela foi tachada de “inimiga do lar” e “mulher danosa ao casamento” por meio de uma campanha moralista e conservadora que teria sido incentivada por “paladinos da moral e dos bons costumes” e senhoras religiosas que marchavam contra o comunismo e contra aqueles que viviam em “pecado conjugal”. Tudo isso porque Garrincha havia se separado da mulher para assumir seu romance com a cantora. Elza era perseguida na rua, ameaçada de morte e teve sua casa alvejada por ovos e tomates, além de cartazes ofensivos constantemente grudados no seu portão. Certo dia, os militares finalmente bateram à sua porta. “Vasculharam minha casa inteira e sumiram com tudo o que eu tinha, não fui presa por pouco”, revela.

A relação com a torcida do Botafogo, time no qual seu marido de pernas tortas era o astro principal, também não era nada amistosa. Os botafoguenses a culpavam por todo o mal que acometia seu maior jogador. Alguns chegaram a chamá-la de bruxa, mas o único feitiço que ela fez foi amar um homem e ser amada de volta. E ela peitava qualquer um que desse bebida alcoólica a seu marido. Chegou a correr de bar em bar ao redor dos estádios em dias de jogo pedindo para ninguém dar álcool a ele. Ficaram juntos por 16 anos, de 1962 a 1978.

Com Garrincha, Elza Soares teve um filho, Garrinchinha, o menino que ele tanto desejava após ter muitas meninas com a primeira mulher em Pau Grande, distrito do município de Magé, no Rio de Janeiro. Garrinchinha não teve muito tempo para conhecer o pai. Mané Garrincha morreu de cirrose em janeiro de 1983, mas o garoto não sobreviveu muito tempo para entender quão genial eram seus pais: a mãe uma cantora de talento extraordinário e indiscutível, o pai, um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos. Três anos após a partida do marido, Elza levou outro duro golpe. Seu único filho com Mané Garrincha viajou a Magé para visitar o túmulo do pai e na volta morreu num acidente de carro, aos nove anos de idade.

No início dos anos 1980, antes mesmo da morte de Garrinchinha, o sucesso de Elza Soares começou a ficar cada vez mais distante e ela passou a se apresentar em circos. Como precisava criar o filho temporão, na época estava morando em São Paulo, decidiu que iria abandonar os palcos para trabalhar em uma creche. “Precisava dar de comer e beber ao Garrinchinha”, fala. Após conhecer o local onde trabalharia, passou na casa de Caetano Veloso para anunciar a decisão. Quando ele abriu a porta de seu apartamento, ela caiu em prantos. “Ele me disse para chorar à vontade, mas que depois eu teria que contar o que aconteceu. Eu expliquei a situação e ele me mandou voltar para o Rio de Janeiro. Chegando lá me fez uma surpresa. Ele disse que ia tocar uma música e que era para eu acompanhar e brincar com ela. Daí surgiu “Língua”, que foi sucesso no exterior. Ele me ajudou a reagir num momento profissional complicado. Nunca deixei de cantar”, afirma orgulhosa.

Com a morte do filho, Elza perdeu 99,9% de si própria, como declarou uma vez. Esse milésimo de vida que lhe sobrou a encorajou a sobreviver e seguir caminhando. De onde ela tira tanta força? “Medo. Foi por causa dele que segui caminhando, ele me persegue o tempo todo”, revela. “Tudo que aprendi ao longo desses anos foi o vestibular que a vida me impôs. E sei que passei com louvor, nota máxima”, explica. Mas além do medo, o que a fez seguir em frente foi, essencialmente, a paixão pela música. “Dá para notar o quanto sou apaixonada por isso, né? Todo mundo percebe que faço o que adoro. Eu cantei e canto para não enlouquecer. Se não fosse o palco, tudo seria mais difícil”, fala em tom descontraído.

Elza não aguentou ficar no Brasil após essa tragédia pessoal e, algum tempo depois, mudou-se para o exterior. Por lá ficou nove anos cantando entre os Estados Unidos e a Europa. Regressou em 1997 e gravou Trajetória, um disco só de sambas. Na virada do século, no ano 2000, foi agraciada com o título de Maior Cantora do Milênio, honraria concedida pela BBC de Londres. Por conta disso, chegou a fazer alguns shows na Europa acompanhada de seus colegas brasileiros Chico Buarque, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Virgínia Rodrigues. Entretanto, Elza Soares não pôde colher tantos louros após a premiação, pois logo em seguida sofreu uma queda de três metros de altura no palco do Metropolitan ao final de um espetáculo que apresentava na capital carioca. Ficou três meses de molho numa cadeira de rodas. Em 2002, com o álbum “Do Cóccix Até o Pescoço”, Elza Soares conseguiu uma indicação ao Grammy.

Uma canja com Elza

Como um maestro regendo sua orquestra, Elza Soares dá orientações aos músicos do Bar Brahma durante a passagem de som. Exige perfeição. “Parece que estou cantando numa caixa”, reclama. “O retorno tá péssimo, machuca a garganta da gente. Tá seco, tá ruim”, fala. E o técnico de som se apronta para deixar tudo perfeito para a hora da quarta apresentação do ano, um mês após estrear com sucesso absoluto. Quem passa ali na famosa esquina do Bar Brahma, na tarde chuvosa, típica da cidade da garoa, dificilmente imagina que logo atrás daquele vidro está uma das maiores cantoras do País e do mundo.

Elza Soares conquistou uma grande parcela de jovens fãs que a admiram não apenas por sua marca registrada, a voz rouca, mas também pela modernidade e ousadia – adora usar microvestidos. Ela, que sempre ressurgiu das cinzas, tatuou uma Fênix na panturrilha e uma rosa enorme nas costas, em homenagem a Lupicínio Rodrigues (o autor de “Se acaso você chegasse”, um dos primeiros e maiores sucessos interpretados por ela, lhe ofereceu flores quando a conheceu e pediu que gravasse sua canção). E segue jovial passando o som com a banda do bar enquanto diversos jornalistas disputam um minuto da atenção da diva, inclusive eu.

Quando finalmente consegui conversar com ela a sós, descobri uma mulher de voz mansa, bem-humorada, alegre e gentil. Perguntei a ela o que se tornou inesquecível nesses anos e ela ficou quieta pela primeira e única vez. Pôs a mão no queixo refletindo e disparou: “Inesquecível foi cantar no Opéra Nacional de Paris, no Teatro de Londres, em Padre Miguel. A glória é poder cantar ao mesmo tempo nas melhores casas de espetáculos do mundo e numa favela”, revela emocionada.

Já sofreu muito preconceito. “O mundo é preconceituoso, não é só aqui no Brasil. Eu já penei nessa vida. Imagina o que é para uma pessoa como eu, mulher, pobre e negra.” E, de repente, quando ficamos sozinhas na mesa, ela me pega pelos braços como uma irmã mais velha e diz: “Vou te contar uma coisa. Toda mulher é um pouco homem. Todos nós somos um pouco gays. A mulher é uma líder natural, é ela que sempre está à frente do homem. Só que a sociedade ainda é muito conservadora e a mulher acaba se auto-oprimindo. Eu sou muitas vezes julgada porque faço o que quero, na hora em que eu quero. Se não fosse assim, eu não seria quem sou hoje. A felicidade está ai”. Elza, que está namorando o mineiro Bruno Luccidi, de 26 anos, garante que a receita para ser feliz é beijar muito na boca.

No quesito futebol, Elza é flamenguista assumida e tem uma explicação muito própria para sua torcida. “O Flamengo representa o povo brasileiro, e eu sou do povo. E se em São Paulo o time mais popular é o Corinthians, então sou corintiana, até porque sou devota de São Jorge”, revela. A entrevista ainda não acabara. Estávamos no bar do hotel em que Elza se hospeda para os shows no Brahma. Como nada ao lado dela pode ser comum, de repente um homem alto, visivelmente emocionado, interrompe nossas últimas palavras e pede, com voz embargada: “Posso te dar um abraço?”. Ela, muito simpática e solícita, logo se levanta e diz: “Mas é claro, é pra já”. Aquele homem resume o que muitos de nós, brasileiros, gostaríamos de dizer a ela. “Esse abraço é por tudo o que você faz pelo Brasil, por sua luta e coragem. Você é uma mulher guerreira, digna de representar esta Nação.” Cansada após horas de ensaio para o show que ocorreria dali a poucas horas, ainda assim, ela dedica toda sua atenção a ele e a todos os funcionários do hotel que surgiram com seus pedidos de fotos ao lado de nossa brasileira, migrante do planeta da fome, “filha” de Louis Armstrong e dona da rouquidão mais famosa do Brasil.


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