Uma saída para a canção

Depois de uma noite intensa, com as ruas do Centro de São Paulo apinhadas de gente ansiosa para conseguir dar conta da infinidade de atrações da Virada Cultural de 2010, o domingo amanheceu ensolarado e pronto para receber um público ávido por mais doze horas de espetáculos. Logo nas primeiras horas, entre locais tomados por adolescentes e jovens exauridos pela maratona de shows da madrugada – como a Praça Ramos de Azevedo, que se transformou em um verdadeiro albergue a céu aberto – era perceptível a chegada de famílias, crianças e um público mais maduro e diverso.
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O palco armado no Bulevar São João programava receber, às 11h, o trio de compositores José Miguel Wisnik, Luiz Tatit e Arthur Nestrovski, acompanhados de banda, do cantor Celso Sim, e do jovem compositor e multi-instrumentista Marcelo Jeneci. O repertório prometido era misto, com parcerias e composições de cada um dos autores. Garantia de empatia com um público que começava a se avolumar pelo calçadão da Avenida São João e a inquietar-se com o atraso da apresentação. Ansioso pelo início do show, flagro Wisnik ao fundo do palco observando um roadie fazer os ajustes finais no velho piano elétrico Wurlitzer de Jeneci. Engato um breve papo com ele sobre os problemas da passagem de som e questiono o que esperam do show: “A expectativa é a melhor possível. Estou aqui reunido com grandes amigos e um grande público. Estou muito feliz. Eu, que já escrevi e sonhei com um Anhangabaú da Felicidade (refrão de sua canção Inverno) não tenho como negar que isso aqui é o próprio Anhangabaú da felicidade.”

Cinquenta minutos após o previsto, tem início o show, com a canção Sem Destino – faixa que intitula o mais recente álbum de Tatit, lançado em maio de 2010. Bastam alguns acordes para que os cinco compositores ali reunidos transformem a intolerância com o atraso em assunto encerrado e passem a hipnotizar o público ali presente. Alquimia que funciona plenamente com a soma de outros dois elementos. A poderosa cozinha do baterista Sérgio Reze e do contrabaixista Márcio Arantes, e o harmonioso violão de Jonas Tatit, filho de Luiz.

O show é baseado em temas dos três compositores, acrescido de novas parcerias de Jeneci com Tatit e Wisnik, e eventuais interpretações solo de Celso Sim – cantor, compositor e ator egresso do Teatro Oficina de José Celso Martinez Côrrea, que compôs mais de cem canções para o espetáculo Os Sertões. O público canta em coro alguns êxitos que frequentam o dial das poucas rádios FM que ainda dedicam a programação à música brasileira, e assiste em silêncio as novidades, como a intimista canção Feito para Acabar, parceria de Jeneci, com Wisnik e Paulo Neves.

O encontro de três grandes teóricos da música popular brasileira com um compositor prolífico e alguém da novíssima safra, como Jeneci, evidencia uma ampla convergência de interesses. Tatit, Wisnik e Nestrovski, cada um em seu campo específico de atuação, trafegam tanto na esfera da música popular quanto da música erudita e, há décadas, articulam ideias que indiquem novos rumos à canção. A busca pelo passado, em busca de saídas para o futuro, muitas vezes pode resultar em saídas inusitadas, como a encontrada por Nestrovski, diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, ao verter a melodia de uma peça de Schumman para letra e canção popular, em Pra quê chorar?. Ao final, ele ainda faz uma emenda com Carinhoso, e o público, naturalmente entoa os versos imortais de Pixinguinha, como se ouvissem uma única canção. Jeneci é o mais jovem de todos e, além do piano vintage, ainda empunha uma sanfona e reveza-se com Wisnik ao piano de cauda. Ao final do show, nos revela entusiasmado: “É um privilégio estar aqui. Mais do que estar reunido a grandes amigos, estou aqui com grandes letristas e compositores incríveis, que estão no auge. Sempre um aprendizado, tento encarar dessa forma. Aproveito para aprender muito com eles”.

Chico Buarque sentenciou a morte da canção, há seis anos, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo e Tatit lançou, no mesmo ano, o livro O Século da Canção (Ateliê Editorial). O calhamaço chegou a ser discutido por ninguém menos que Tom Zé, capítulo a capítulo, ao longo de meses, em leitura coletiva promovida por ele e os milhares de visitantes de seu blog. Cético, Tom Zé dedicou um álbum inteiro a estabelecer uma resposta ao decreto pessimista de Chico, e saiu-se com Danç-Êh-Sá -Dança dos Herdeiros do Sacrifício (2008), uma de suas obras recentes mais inventivas. Engrossando o batalhão dos que defendem a canção, Tatit, Nestrovski, Wisnik e Jeneci continuam desbravando essa árdua seara em busca de respostas para esse niilismo de começo de século. Um desafio para poucos, mas a ousadia tem lá suas recompensas. Ao final do espetáculo, o público, extasiado, insistiu na volta da trupe e Tatit, sábio, trouxe a todos a melhor resposta, Quando a canção acabar, de sua autoria.


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