Custa, sim, desassociar o indígena brasileiro daquelas imagens perpetuadas anos a fio que mostram esses habitantes da floresta isolados em pequenos clarões da mata fechada, tachados de incapazes e tutelados pelo governo brasileiro. Tal imagem, porém, começa a se dissipar rapidamente no momento em que se conhecem essas aldeias e, à frente, os seus líderes. São lúcidos no resguardo e na revitalização de sua cultura milenar, na briga contra sua cidadania encurralada, na educação diferenciada e na conquista de novos empregos. Os indígenas, hoje, em todo o território nacional, representam 0,2% do total da população brasileira. Uma viagem a essas comunidades pode ser uma iniciação sobre a verdadeira Amazônia. Ao tomar posse em 1o de janeiro de 2009 como prefeito de São Gabriel da Cachoeira, município amazonense com mais de 40 mil habitantes, na maioria indígenas, Pedro Garcia, 47 anos, da etnia tariana, completa a transformação que vem ocorrendo há 20 anos no terceiro município mais extenso do Brasil, com área superior à de Portugal.
Naquela época, os ventos não sopravam a favor dos indígenas. No meio de disputas judiciais contra as “ilhas de Sarney”, alusão às reservas indígenas não contínuas, os índios tinham também de enfrentar problemas contra as drogas e o alcoolismo, o desemprego em massa e até suicídios. Surgia então em São Gabriel da Cachoeira a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), com o objetivo de unir os 22 grupos étnicos que vivem na região, em prol da demarcação de terras e na busca de uma vida melhor sem, contudo, perder a própria identidade. A união os fortaleceu, e em 1998 recebiam das mãos do então presidente Fernando Henrique Cardoso os certificados de propriedade de terras contínuas que hoje perfazem 90% de toda a área do município. Os indígenas também começaram a consolidar seu papel fundamental na preservação da mata nativa.
[nggallery id=15482]
Era, portanto, apenas uma questão de tempo para que conquistassem a administração política da cidade. Isso só seria possível quando uma chapa totalmente indígena fosse formada. Foi o que aconteceu: Pedro Garcia uniu-se a André Fernando, 37, da etnia baniwa, e assim ganharam de lavada as eleições municipais do ano passado.
Para os antropólogos, o ineditismo não está apenas na eleição de um prefeito indígena, mas no fato de serem prefeito e vice de etnias diferentes. E que, a despeito de atritos entre tribos, aqui houve uma tremenda união para que os dois se elegessem.
De Manaus a São Gabriel da Cachoeira são 1.150 quilômetros pelo Rio Negro, segundo maior rio em volume de água do mundo depois do Rio Amazonas. Em horas de vôo são quase três, e até onde a vista se perde são 360º de muito verde. Habitada há cerca de 3.000 anos, essa região noroeste da Amazônia brasileira apresenta um conjunto altamente diversificado de paisagens florestais únicas: matas fechadas com vegetação de porte alto, terras inundadas – os igapós -, savanas, capoeiras e palmeirais. Todas têm em comum os rios que as serpenteiam e que, nesta época do ano, com a estiagem, desenham praias de areias brancas de rara beleza.
Pedro e André concordaram, dias antes da posse, em conceder uma entrevista exclusiva à Brasileiros. Fomos recebidos em uma salinha da FOIRN cuja decoração se limitava a alguns mapas da Amazônia, e onde, devido ao calor úmido e à pouca ventilação, todos suavam em bica. Num canto da sala, alheio ao que se passava, um índio assistia enfeitiçado a um programa de televisão. Os nossos entrevistados, além de elencarem planos para a administração da cidade, revelaram retratos de um Brasil que nos tocou fundo.
Brasileiros – Como foi, até aqui, a trajetória de vocês?
Pedro Garcia – Nasci em Iauaretê, fronteira com a Colômbia. Terminei o ensino fundamental em 1978 e o ensino médio em Manaus, onde também me formei na Escola Técnica de Agronomia, em 1986. Na época era o único estudante indígena e sentia preconceito por parte de alguns colegas. Muitas vezes, por brincadeira, me passava por peruano. Voltei para ajudar meu povo e comecei a trabalhar nas comunidades. Na época, percebi a dificuldade em manter nossa sobrevivência após 300 anos de submissão. Até hoje pensam que somos incapazes. A gente tinha medo dos brancos. Os padres missionários ajudaram a reforçar esse medo. Não tínhamos o direito de piar. Isso acabou com a gente. Foi quase irreversível e provocou muito sofrimento em nosso povo. Sentimos o golpe e nos unimos. Fui um dos fundadores da FOIRN e mais tarde, para entender as leis dos brancos, quis me formar em Direito, mas por problemas financeiros não pude completar os estudos. Para aprofundar meus conhecimentos, fui administrador da Funai e desde 1999 estou na política, tentando me eleger prefeito e deputado federal. Sou casado há 20 anos e tenho seis filhos.
André Fernando – Sou da etnia baniwa da comunidade Tukumã Rupitá, no alto do Rio Içana. Além do português, falo espanhol e três idiomas indígenas. Meu pai queria que seus nove filhos estudassem. Ele acreditava que, assim, teríamos mais entendimento para encontrar as respostas para seu povo. Ele sempre quis entender por que os não-indígenas os tratavam tão mal. Depois de oito anos estudando, tive de voltar para ajudar nossa comunidade que vivia um momento de crise, com alto índice de alcoolismo. Aí começa minha participação nos movimentos indígenas. Primeiro fui tesoureiro na recém-criada Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI) e depois vice-presidente da FOIRN. Há sete anos estou na política, e minha principal preocupação é com as escolas indígenas. Queremos nos reintegrar à sociedade, mas sem renegar nossa história e cultura. Sou casado há 17 anos e tenho cinco filhos.
Brasileiros – Como você se define, tendo sido eleito prefeito?
P. G. – (Silêncio prolongado, um sorriso amarelo.) Para mim não mudou nada. É difícil tentar explicar para um branco essa questão. Para os indígenas, minha resposta é a mesma deles. Vou ser sincero, sabendo que posso ser mal interpretado: sou tariano, e agora prefeito de São Gabriel da Cachoeira. Não entendo isso de ser brasileiro. Nós somos um povo. Temos história, cultura e tenho identidade. Temos nossa religião e nosso território é muito mais antigo do que o Brasil. Batemos de frente com os antropólogos que dizem: vocês não têm história, têm mitos. Ora bolas! Por que só o que vocês escrevem é verdadeiro? Nossa cultura é oral e não entendemos isso como mito. Só porque vocês têm a Bíblia, e toda a criação está escrita nela, isso a torna verdadeira? Eu tenho um deus, acredito nele, e ele me protege.
Brasileiros – Você concorda, André?
A.F. – Eu sou nesta ordem: indígena, baniwa e brasileiro. Todos os índios têm orgulho de ser brasileiros, mas somos primeiro indígenas. Assim como os baniwa colombianos…são baniwa primeiro. Defendemos nossa terra. Não esqueçam que estamos aqui antes de vocês. Achamos graça quando dizem que querem preservar a Amazônia. A Amazônia somos nós. Fomos massacrados e nos fizeram lavagem cerebral. Foi um genocídio cultural. A única forma de preservar a floresta é respeitar nossa cultura e nossa terra. O governo tem de abraçar nossas idéias que são realistas e trabalhar com isso – nós já identificamos os problemas, e eles têm de respeitar nossos conhecimentos. Se nossa visão é diferente, então temos de fazer diferente.
Brasileiros – Como pretendem trazer essa cultura para sua administração?
P.G. – Vou mostrar as diferenças e as harmonias dos nossos povos com muita riqueza, por intermédio de uma grande festa, o Festribal. Depois vou mostrar que nunca tivemos guerras entre nossos povos, apenas conflitos. Para vocês guerra e conflito são a mesma palavra e significam a mesma coisa. É mentira que sempre vivemos em guerra. O povo tariano é imenso, subdividido em oito grupos. Se um grupo entra em litígio territorial com os ianomâmis, por exemplo, pronto, lá vêm vocês com a ladainha: tariano e ianomâmi em pé de guerra. Vou falar: vocês escrevem coisas que não acontecem. Não vão lá, ou exageram. Isso é muito ruim para nós. Para entender um pouco mais de nossa sociedade vou dar dois exemplos: para os indígenas, o silêncio significa revolta. Se ficarem calados, sei que não estamos fazendo uma boa administração. Outra: nossos povos não acreditam em quem fala mal do outro. Nossa cultura não agrega essa forma de maledicência. Eles querem ações. Aprendi a fazer política na FOIRN, que não prioriza uma região ou um clã. Luta por todos. A proposta foi para trabalhar para todo mundo, inclusive para a minoria, que aqui são os não-indígenas. Não posso falhar, mesmo com a saúde financeira da prefeitura à beira do abismo.
A. F. – Por meio da educação. Você sabia que a taxa de analfabetismo da nossa região é zero? Outra ação são as alianças que passamos a abraçar. Sempre tivemos conflitos territoriais, mas nos respeitávamos, pois sabíamos que uma guerra nos enfraqueceria. Juntamos força, em vez de separá-las. A política pública é errada para nós – essa é nossa dificuldade maior -, não entendem nossa realidade. Agora, eleitos, vamos tentar equalizar esses problemas. Eles querem que a gente compreenda a floresta com a sua visão. Mas nem conhecem os seres que habitam a floresta! Eles querem nos controlar. Já temos esse resultado e veja no que deu: alto índice de alcoolismo, prostituição, drogas e suicídio. Porém nossas escolas nas comunidades têm dado outros resultados. (Ele se refere à premiada escola indígena Pamáali, no Rio Içana, extremo noroeste do Brasil, fundada em 2000 e que se tornou o canto do cisne dos indígenas.)
Desde 1996 queremos uma escola sem interferência, multilingual, dentro de nossa realidade, com a formação de nossos professores. Professores baniwa nas aldeias baniwa, professores baré nos povoados baré, e assim por diante. Se os não-indígenas gostam de sua tradição escrita, então vamos estar nos livros, mas escrito em nosso idioma. As coisas têm de acontecer na comunidade. Temos de mudar o conceito de professor que acha que só ele conhece as coisas.
Brasileiros – Vocês acreditam que chegou a vez dos indígenas?
P. G. – É certo que há mais justiça com os índios hoje, mas se não lutarmos, ninguém vai fazer nada para a gente. Vamos nos fortalecer, pois nossa cultura nunca morreu. Prova disso é que em dezembro os povos tariano e tucano receberam de volta peças e adereços sagrados que estavam desaparecidos havia mais de 70 anos. (Os ornamentos rituais encontravam-se sob a guarda no Museu do Índio, em Manaus, e num ato inédito no Brasil, graças à interferência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-Iphan, foram devolvidos a seus povos). Vivemos aqui e aqui queremos ter vez.
Deixe um comentário