Sob nova direção

Quem pensa que língua de índio no Brasil é Tupi-Guarani, muito se engana. Para começar, Tupi-Guarani não é o nome de uma língua, mas de uma família linguística, que conta com aproximadamente 40 línguas faladas no Brasil e em países adjacentes. Além disso, o tronco Tupi, agrupamento maior ao qual a família Tupi-Guarani se filia, é formado por dez famílias linguísticas diferentes – tão distintas entre si quanto são as línguas germânicas das eslavas e das românicas, por exemplo. São faladas no Brasil atualmente cerca de 180 línguas indígenas. A maioria delas pertence a cinco grandes agrupamentos linguísticos: o tronco Tupi, as famílias Macro-Gê, Karib, Pano e Aruak, da qual faz parte a língua Baniwa falada pelo vice-prefeito André Fernando, que traduziu o título da matéria a pedido da Brasileiros.

Há, ainda, inúmeras famílias menores, bem como línguas isoladas. O agrupamento em famílias é determinado por especialistas em linguística histórica quando eles identificam uma relação genética entre duas ou mais línguas, ou seja, quando é possível estabelecer que houve uma língua ancestral que deu origem a todos os membros de uma família de línguas. Assim como a origem do português, do espanhol, do francês, do italiano, e do romeno está no latim, há uma língua mãe já extinta que deu origem às 40 línguas Tupi-Guarani, chamada pelos linguistas de Proto Tupi-Guarani. A profundidade temporal das famílias pode ser medida, embora por um método pouco confiável – a glotocronologia -, que gera para a família Tupi-Guarani uma data aproximada de dois mil anos. Portanto, pode-se hipotetizar que na mesma época em que Cristo nascia no Oriente Médio, na América do Sul havia um povo falante dessa língua original, que veio a expandir-se e diferenciar-se desde então de maneira espantosa, de algum local no oeste do Brasil para toda a costa brasileira e países adjacentes.

Os linguistas são capazes de demonstrar, por exemplo, que o latim – língua mãe das línguas românicas – também se relaciona a outras línguas, já que há correspondências regulares de sons (que não poderiam ser acidentais) em palavras cognatas de várias línguas da Europa e da Ásia. A língua que dá origem ao grego antigo, ao latim, ao proto-germânico, ao proto-eslavo, ao sânscrito e ao hitita, chamada de proto indo-europeu, era falada há aproximadamente seis mil anos na atual Turquia. Voltando à comparação entre a história das línguas da Europa e da América do Sul, sabe-se que o Proto Tupi-Guarani, por sua vez, descende de uma outra língua ancestral chamada de Proto-Tupi, que, calcula-se, era falada há 4.500 anos em Rondônia. Esse tipo de estudo é importante, pois permite recuperar parte da história antiga e da pré-história do continente americano. Por exemplo, pode-se afirmar com certeza que o povo que falava Proto-Tupi já praticava uma forma rudimentar de agricultura, uma vez que as palavras para “roça”, “pau de plantar” e “mandioca” podem ser reconstruídas na língua a partir da comparação de cognatos nas línguas filhas faladas hoje. Infelizmente, essas informações sobre a ocupação humana do continente são praticamente desconhecidas. Uma das razões deve ser a nossa história escravocrata, que relegou a segundo plano a contribuição dos povos indígenas. Resta saber quanto tempo vai levar para que este conhecimento saia da universidade e chegue aos livros didáticos, tornando-se, enfim, parte da cultura geral do povo brasileiro.

*Luciana Storto é doutora em linguística pelo Massachusetts Institute of Technology (EUA) e professora do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP).

SERVIÇO

Saiba mais sobre a história das línguas indígenas do Brasil consultando Línguas Brasileiras: para o conhecimento das línguas Indígenasde Aryon Rodrigues, editado pela Loyola em 1986.
Convenções ortográficas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) utilizadas no texto: nomes de línguas indígenas são grafados com maiúsculas, e utilizam-se as letras k e w para representar a oclusiva velar surda e a aproximante labio-velar, rspectivamente. O plural não se aplica ao nome próprio usado em referência aos povos e línguas, mas apenas ao artigo que o acompanha (por exemplo, “os Tupi”, e não “os Tupis”).


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