Um compositor moderno

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Foto: Marcos Pinto

Sem nunca se deixar limitar por esse rótulo – pelo contrário, desde o final dos anos 1960 ele já flertava com o samba e com ritmos latinos –, Erasmo Carlos tornou-se espécie de patrono do rock brasileiro. Na defesa da condição de rebelde, ele até tentou, em vão, manter uma suposta “fama de mau”, mas a aparência de durão, fortalecida pela generosa compleição física, do alto de seus 1,93 m, nunca enganou ninguém. Como sempre deixou revelar em suas letras, repletas de romantismo e de temas sensíveis, como o feminismo, o pacifismo e a consciência ecológica, Erasmo é, parafraseando Johnny Alf, um rapaz de bem. Quem melhor definiu essa faceta paradoxal, do homenzarrão de coração aberto, foi sua amiga Lucinha Turnbull. Ex-guitarrista do Tutti Frutti, banda de apoio de Rita Lee, e parceira de Rita na dupla Cilibrinas do Éden, Lucinha passou a chamar Erasmo de Gentle Giant, no começo dos anos 1980 –  extraído do nome de uma banda britânica de rock progressivo, a expressão significa “gigante gentil”.

Para além da alcunha, Erasmo decidiu, agora, batizar seu novo álbum com o tratamento carinhoso conferido a ele por Lucinha. Recém-lançado em CD, Gigante Gentil teve produção assinada pelo requisitado Alexandre Kassin, que também responde pelo contrabaixo. Somaram-se à banda de apoio de Erasmo duas feras da guitarra, o brasileiro Luiz Carlini, que liderou o Tutti Frutti, entre 1973 e 1978, e o americano Smokey Hormel, experiente músico de estúdio que já colaborou para Tom Waits, Johnny Cash e o ex-líder do The Clash, Joe Strummer. Além deles, completa a banda o grande percussionista Robertinho Silva, o baterista Stéphane San Juan, a violinista Ana de Oliveira, o violonista Christiaan Oyens e Marcelo Jeneci, celebrado compositor da nova geração e fã confesso de Erasmo, que assumiu o comando de sintetizadores, piano e acordeon.

Erasmo é assim, sempre prezou por estar em boas companhias. No entanto, em breve conversa com a Brasileiros, ele deixou revelar uma idiossincrasia na hora de compor em dupla: com exceção do Rei Roberto Carlos, ele jamais cria uma canção estando tête-à-tête com o parceiro. “Com Roberto consigo fazer música pessoalmente. Já tentei com Marcelo Camelo, com Evandro Mesquita e até com a Marisa Monte, mas sou um cara que precisa ter muita intimidade com a pessoa para compor junto. Por ser educado, não consigo criticar se não gosto de algo. Não me sinto confortável para discordar de um amigo. Nisso, o computador é ótimo. Mando a música, o parceiro envia a letra. Depois, trocamos e-mails, corrigimos, argumentamos… Há muita interação e funciona bem.”

Surpresa para alguns, essa afinidade de Erasmo com o mundo virtual pode ser percebida em dois momentos de Gigante Gentil, nas canções Colapso – na qual ele canta “desnorteados, crentes e ateus sem Facebook não encontram Deus” – e Amor na Rede, com letra de Nelson Motta que versa sobre um amor virtual nascido na mesma rede social, mas que acaba se concretizando.  

Vigésimo sexto álbum de estúdio de Erasmo, o novo CD fecha uma trilogia roqueira, unificada pelo tema amor, abordada antes em Sexo (2009) e Rock’n’Roll (2011). O estopim para a criação das canções desse novo álbum também partiu de uma experiência virtual, não tão agradável, empenhada pelo compositor. Pelo microblog Twitter, Erasmo teve contato com comentários hostis à sua permanência no showbizz e chegou a topar com a nada gentil classificação de “zumbi” para defini-lo. Fato aludido em uma estrofe da canção que dá nome ao LP: “Mas quando dizem que o gigante é um morto-vivo/Perdido como um bicho sem carona no dilúvio/Me assusto com o olho podre que vê ele assim/Detonam o gigante e o estilhaço pega em mim”.

Com esse novo álbum, Erasmo atinge a impressionante marca de quase 600 canções escritas. Inúmeras, guardadas na memória afetiva dos brasileiros, como Emoções, Sentado à Beira do Caminho e Mulher. Tamanha interação do público com sua obra, Erasmo segue a confirmar a cada show que apresenta, ao cruzar o Brasil de Norte a Sul. Marcando presença em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba ou em cidades remotas, como Rondonópolis e Primavera do Leste, ambas em Mato Grosso, Erasmo quer mesmo é continuar reverenciando seu público com a mesma alegria que demonstra ao longo de seus 53 anos de carreira – ele completará 73 anos em 5 de junho.

“É lindo, maravilhoso, me sentir querido e prestigiado, dá sempre uma injeção de otimismo. Agora, não posso confundir essa felicidade com a parte física. O envelhecimento é uma merda. Não tem essa de que é uma etapa bacana da vida, muita sabedoria e tal… É chato pra caramba querer fazer coisas que eu fazia e lembrar que o corpo já não dá conta. É uma sacanagem que Deus faz conosco. Tínhamos de ser todos Benjamin Button (personagem que nasce velho e morre novo, estrelado por Brad Pitt).”

A despeito do descontentamento com as consequências de envelhecer, a cabeça efervescente de Erasmo despreza qualquer zona de conforto e o mantém reflexivo e curioso. “Se todo mundo está vendo o muro, procuro imaginar o que há além dele”, defende. Essa mesma mentalidade orientada pelo futuro faz com ele não deseje tão cedo se aposentar. “Sendo compositor, tenho o meu pensamento e o meu violão. Enquanto eles estiverem funcionando, não paro. Posso até me aposentar dos palcos, quando não tiver mais físico para as viagens, para as grandes turnês. Mas vou compor sempre”, garante. Sorte nossa!

Em tempo: fechávamos essa edição quando foi revelado pelo ator Mateus Solano que, a convite do próprio Tremendão, ele deverá viver Erasmo nos cinemas. Previsto para ser lançado em 2015 o longa-metragem de Lui Faria será uma adaptação da autobiografia Minha Fama de Mau (Objetiva, 2009).

A DISCOTECA BÁSICA DO GIGANTE GENTIL
Por Marcelo Pinheiro

Nos anos 1970, na contramão do “amigo de fé, irmão camarada” Roberto Carlos – que orientado por sua gravadora, a CBS, enveredou por um repertório extremamente comercial, marcado pela onipresença de baladas românticas –, Erasmo lançou uma sequência de cinco álbuns ousados, de indiscutível maturidade e liberdade autoral. Todos eles foram relançados em CD e são títulos obrigatórios

Erasmo Carlos e Os Tremendões (RGE, 1970)

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Último álbum do compositor para o selo RGE Erasmo Carlos e Os Tremendões fecha um ciclo, encerrando a temática pueril da Jovem Guarda e trata de temas mais maduros. Os estatutos musicais do iê-iê-iê, a partir desse álbum, também acabam se tornando apenas mais um dos vários elementos estéticos nas novas escolhas autorais do Tremendão, que acabava de voltar a viver no Rio de Janeiro. O álbum traz o enorme sucesso À Beira do Caminho, releituras de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso; de Nostalgia, a linda canção de Caetano Veloso; e os irresistíveis sambas rock Estou Dez Anos Atrasado e Coqueiro Verde, este último homenagem a sua mulher, Narinha. 

Carlos, Erasmo… (Philips, 1971)*

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Considerado sua obra-prima, o primeiro álbum de Erasmo para a Philips dá início ao que ele chama de “fase hippie”, conta com a presença do guitar hero tropicalista Lanny Gordin e da cozinha dos Mutantes – o baixista Liminha e o baterista Dinho. Com arranjos de Chiquinho de Moraes (com exceção de Ciça, Cecília, orquestrada por Arthur Verocai), Carlos, Erasmo… abre com De Noite na Cama, que foi composta por Caetano no exílio em Londres, especialmente para Erasmo. Além dela, clássicos instantâneos como É Preciso dar um Jeito, Meu Amigo e a abusada Maria Joana – que versa sobre uma suposta paixão, mas fala sobre o consumo recreativo de maconha. 

Sonhos e Memórias – 1941-1972 (Polydor, 1972)*

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De longe, o álbum mais pessoal de Erasmo, que havia completado 30 anos e passava pela primeira experiência de paternidade, com o nascimento do filho Gil Eduardo (ele teve outros dois meninos com Narinha, Alexander e Leonardo). Cem por cento autoral, com destaque para Largo da 2ª Feira, Bom dia Rock’n’Roll, Mané João, Cachaça Mecânica e Preciso Encontrar um Amigo (esta gravada primeiro pelos Mutantes em Divina Comédia), Sonhos e Memórias é uma viagem afetiva, anunciada desde a capa, que reproduz imagens de alguns dos ídolos de Erasmo, entre eles Jimi Hendrix, Jorge Ben Jor, Mick Jagger, Marylin Monroe  e Elvis Presley.

1990 – Projeto Salva Terra  (Philips, 1974)

Erasmo Carlos 1974 - Projeto Salva Terra!
Exercício de futurologia em nome do pacifismo contumaz de Erasmo, a faixa título destila a ironia sutil do compositor: “Em 1990, a crise era demais/As pessoas enlatadas, não lembravam mais da paz/Às vezes, Deus era lembrado pela falta que fazia”. Nele, há também composições inéditas, escritas com Roberto. Entre elas, a irresistível Haroldo, o Robot Doméstico, e o clássico Sou Uma Criança, Não Entendo Nada. Segundo compacto do álbum, o samba rock O Comilão, fez grande sucesso, mas ficou de fora do LP, após ser censurado. Em 1980,  a canção foi regravada com a presença ilustre de Jorge Ben Jor, no álbum Erasmo Carlos Convida.      

Banda dos Contentes  (Polydor, 1975)*

banda dos contentes
Encerrando a “fase-hippie” do Tremendão Banda dos Contentes foi criado com a pretensão de ser um álbum conceitual. E o elemento de unidade é a brilhante ironia do compositor, pois há muito pouco de “contente” no disco. A começar pela arte que ilustra o miolo do LP. Uma ilustração de Benício mostra um grupo de homens em conflito. Todos eles carregam no rosto a fisionomia de Erasmo. Duas canções de terceiros chamam atenção: Queremos Saber, de Gilberto Gil, e a primeira gravação de Paralelas, clássico de Belchior, com a letra original que seria, depois, mutilada pela censura. 

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