[83 de 100] O drama de apenas estar aqui, segundo Françoise Sagan

BOMDIATRISTEZAUma garota mal saída da adolescência, com apenas 19 anos, publica um romance curto e breve que a transforma instantaneamente em um dos nomes mais badalados na Europa e em todo mundo, na segunda metade da década de 1950. Mais que isso, tornou-se um livro considerado um dos ícones reverenciados pelos intelectuais daquela época. Assim aconteceu com a escritora francesa Françoise Sagan (1935-2004), autora de “Bom Dia, Tristeza”, publicado em 1954. Seu verdadeiro nome era Françoise Quoirez – o pseudônimo ela tirou de um dos personagens de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust (1871-1922). Obra de estréia, o livro se tornou símbolo da juventude desiludida da França em seu tempo, realçado pelo fato de sua autora se mostrar desde cedo uma mulher de esquerda, ativista, inteligente e sensível, considerada por muitos como a última autora do movimento literário existencialista.

Sagan contou que escreveu a obra em apenas sete semanas. Fez tamanho sucesso que vendeu mais de 4 milhões de exemplares e foi traduzido em 22 idiomas ainda na década de 1950. Ao mesmo tempo, influenciou toda uma geração de mulheres escritoras. Contado em forma de flashback sobre uma experiência que passara na Riviera Francesa, o romance tem como protagonista Cécile, adolescente de 17 anos que vive com seu pai, Raymond, um rico playboy. No verão em que a história se passa, a garota conhece Philippe, um estudante de direito que está em férias com a família na mesma região em que ela se encontra. Tudo corre bem, com o flerte entre os dois. Ela quer somente se divertir ao lado do pai e de sua namorada Elsa, principalmente. Tudo é festa, com passeios na praia durante dia e jogatinas à noite. São cinco dias de alegria. Até a chegada de Anne, amiga antiga de seu pai que desperta todas as atenções para si e passa a incomodar o reinado de atenção de Cécile.

Raymond não dá bola para o comportamento da filha e rememora as paixões vividas com a moça. O sentimento parece voltar. Tanto que anunciam um possível casamento entre eles, o que desestabiliza por completo Cécile. Elsa funciona como um contraponto à existência mundana vivida até então pelos três. E aí está instalado o conflito porque Anne, que se mostra só elegância e distinção, veio pra ficar. E mais do que depressa, afasta Elsa de todos. A soberania de espírito e presença de Anne na vida da jovem é tamanha que esta, ao mesmo tempo em que a abomina, parece venerá-la. E se ressente dessa admiração porque, no fundo, sabe que a desaprovação de Anne de seu modo de vida leviano e superficial tem sentido. Se não bastasse, Anne a proíbe de se encontrar com Philippe. E assim a história se desenrola, em uma guerrinha de manobras que acaba em um acontecimento trágico.

“Bom Dia, Tristeza” não é um romance entremeado de tramas intensas, acontecimentos carregados de suspense e mistérios ou ancorado em segredos. Tudo é muito transparente, quase morno. E, desse modo, vai envolvendo o leitor, com sua riqueza poética e personagens desenvolvidos com talento e encantamento. Escreveu-se corretamente que o cerne de seu estilo é investigar os cantinhos mais escondidos da alma humana. Dentro do contexto histórico em que foi escrita, não é um texto ridiculamente sentimental. A obra é resultado do contexto de uma Europa pós-guerra, que tentava se reerguer física e moralmente e, por isso, predominava o sentimento derrota e melancolia em todo continente. O reflexo disso foi o modismo da cultura existencialista, cujo espírito de incerteza e morbidade da vida existente naquele período de captado de modo magistral por Sagan. Uma história, aliás, que foi levada para a tela de cinema em 1958, de modo brilhante, pelo diretor Otto Preminger (1905-1986), com Jean Seberg, Debora Kerr e David Niven nos papeis principais.

O êxito de “Bom Dia, Tristeza” foi atribuído ao fato de Sagan ter criado personagens amorais e entediados em um ambiente burguês. Um dos elementos que mais incomodam no livro, pelo seu aspecto moral, é a estranha relação entre filha e pai, quase incestuosa, quase sexualizada, quase indestrutível, que põe a perder os possíveis envolvimentos mais longos e duradouros com aqueles que ousam se aproximar dos dois. Cécile é tolerante com as amantes de Raymond. Mas só até certo porto em que não se sinta ameaçada. É quase um jogo excitante para o casal, em que códigos só são perceptíveis a eles e parecem uni-los, para desespero de quem está próximo de ambos. Como diz o texto de apresentação da edição brasileira mais recente, fortemente influenciada pelo existencialismo, a autora criou personagens cujas vidas são marcadas pela solidão, pelo tédio e por um sentido agudo da passagem do tempo.

Há, sim, intensidade e grande valor literário na história da adolescente privilegiada com opiniões precoces sobre o amor, o sexo e os códigos morais. A qualidade de seu texto surpreendentemente maduro e voltado de modo intenso para o existencialismo de Sartre e Albert Camus (1913-1960) aparecia no lirismo do primeiro parágrafo: “Sobre esse sentimento desconhecido cujo tédio, cuja doçura me inquietam, hesito em usar o nome, o profundo nome de tristeza. É um sentimento tão completo, tão egoísta, que quase me envergonha, ao passo que a tristeza sempre me parece digna. Esta, eu não conhecia, mas, sim, o tédio, a saudade e, mais raramente, o remorso. Hoje, algo se dobra sobre mim, como uma seda, leve e suave. E me separa dos outros.” Sagan é absolutamente perfeita nessa síntese que ela faz do estado de ânimo e da personalidade da protagonista, ao mesmo tempo em que informa ao leitor que uma história trágica está a caminho em sua leitura, mesmo que em boa parte da trama a história flua sem clímax, mas cujo efeito de envolvimento do leitor se mostrará irremediável, impossível de não seguir adiante na leitura.

Françoise Sagan levou um estilo de vida intenso e escandaloso que, em vários aspectos, assemelhou-se ao de seus personagens dos mais de 50 livros que escreveu, a maioria de ficção. Nascida em uma família rica de Cajarc, cidade do sul da França, desde pequena passou a ser notada na escola pelos professores e colegas pela sua “falta de esforço”. Não foi diferente na juventude. Tanto que não concluiu seu curso na conceituada Universidade de Sorbonne. Após passar o ano de 1951 em clubes de jazz do bairro parisiense de Saint Germain des Prés, a adolescente de 16 anos se vinculou a Juliette Gréco (1927), Jean-Paul Sartre (1905-1980) e outros intelectuais do período. A escritora gostava de contar que, na época da publicação de “Bom Dia, Tristeza”, recebeu 500 mil francos de sua editora como adiantamento. Ao lar da quantia, seu pai a aconselhou sem rodeios: “Gaste tudo”. Com esse aval, seguiu a risca a orientação. “Entrei em um período em que tudo era possível”, disse ela, que se tornaria conhecida por frequentar cassinos – tanto que chegou a ser banida de alguns deles.

Uma de suas paixões eram carros velozes como Jaguar, Aston Martin e Maserati, que a levou a um grave acidente automobilístico em 1957. Mesmo assim, comentou certa vez que a direção “é um prazer, uma diversão louca. É físico, nervoso, tonificante e extremamente alegre”. No auge de sua carreira, na década de 1970, Sagan foi chamada por “monstrinho encantador” da literatura por causa dessas excentricidades e excessos. Foi amiga de François Mitterrand, Tennesse Williams e Orson Welles, casou-se duas vezes, com seu editor Guy Schoeller e com o escultor norte-americano Robert Westhoff, com quem teve um filho, Denis. Mas sua relação mais duradoura foi com a companheira Peggy Roche, designer que ela conheceu no começo dos anos de 1970. . Em 1995, foi condenada a um ano de prisão por posse de cocaína. Em 2002, foi sentenciada a mais um ano de prisão por fraudar o fisco em cerca de US$ 723 mil.

Como escritora, Sagan nunca venceu prêmios literários importantes. Também escreveu peças, roteiros de cinema e criou cenários para balés. Afundada em dívidas, viveu doente e solitária em seus últimos dias. Nada disso, entretanto, arrefeceu a força e o encantamento de seu primeiro e mais famoso livro.


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