“Nós temos o que mostrar”

 

Gilberto Carvalho fala à Brasileiros. Foto: Edilson Rodrigues
Gilberto Carvalho fala à Brasileiros. Foto: Edilson Rodrigues

Há quase 12 anos no Palácio do Planalto, Gilberto Carvalho conhece como poucos os bastidores do poder. Durante oito anos, foi chefe de gabinete do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na sequência, assumiu como ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, responsável pela articulação do governo com os movimentos sociais. Embora empenhado em “dar combate”, como costuma dizer, aos ataques indevidos feitos ao governo ou ao seu partido (PT), Carvalho também é conhecido por expressar opiniões próprias, mesmo quando elas não coincidem com o discurso oficial. Não por acaso, ele foi o primeiro integrante da cúpula do governo a alertar para o “gotejamento” de valores da chamada “elite branca”, expressos em xingamentos à presidenta Dilma Rousseff, para os setores mais populares da população. Em entrevista à Brasileiros, em seu gabinete, no quarto andar do palácio, o ministro defendeu a urgência de se mudar o sistema eleitoral: “Sem a reforma política, não tem como ir além daquilo que nós fizemos nesses 12 anos. Eu diria, basicamente, que o governo Lula e o governo Dilma foram no limite da possibilidade de mudanças do País”. Na sua opinião, a reação negativa à reforma por meio de plebiscito, proposta pela presidenta no ano passado, é fácil de explicar: “Uma reforma política põe em risco a hegemonia da influência do poderio econômico no Parlamento, no Executivo e assim por diante. Toda vez que se fala em democratização, quem ostenta privilégios não quer mudanças”.

Brasileiros – Em sua opinião, o que é mais urgente no Brasil?
Gilberto Carvalho: 
Fazer a reforma política. Sem uma reforma política real, que atenda às demandas de aprofundamento da democracia, não há possibilidade de futuro decente de nenhum partido nem de transformar de fato o Congresso Nacional em uma instância de produção de leis e de fiscalização do Executivo. Falo de cara na organização da participação social no governo e na reforma eleitoral, com o fim do financiamento empresarial de campanha. Do jeito que o sistema político está montado hoje, a corrupção é inevitável.

Inevitável?
A palavra é pesada, mas é inevitável. O critério de eleição de parlamentares cada vez mais é daqueles que têm capacidade de mobilizar recursos. E a mobilização de recursos trava uma dependência fundamental, inequívoca, com o poder econômico. De modo que cada vez o Congresso vai ter bancadas que representam interesses econômicos. Mesmo aqueles que chegam ao Congresso com uma proposta popular, acabam reféns desse esquema. Uma eleição para deputado federal em São Paulo hoje não sai por menos de seis, sete milhões de reais.

E as majoritárias?
Nas eleições majoritárias, nem sei os números. São astronômicos. Essa é uma deformação profunda na democracia brasileira, que submete os parlamentares à escravidão das emendas parlamentares. A emenda per si é uma coisa boa. É um parlamentar que quer fazer uma estrada de ferro, uma pequena estrada rural. Só que ao fazê-lo, muitos estão de olho na empresa que vai construir a obra e dar um percentual para ele. Com relação às alianças, é natural que os partidos queiram participar do ministério. O problema é o seguinte: o critério para escolher esse ou aquele ministério, esse ou aquele posto, é o de maior possibilidade de rendimento para o caixa do partido, leia-se, das candidaturas. Como parte desse dinheiro, quando vem das empresas, muitas vezes não é formal, a indução para corrupção é inevitável. Por isso, a reforma política é a mãe das reformas.

Sem reforma política não tem como governar o País?
Não tem como ir além daquilo que nós fizemos nesses 12 anos. Eu diria, basicamente, que o governo Lula e o governo Dilma foram no limite da possibilidade de mudanças do País. E sem a reforma não há ninguém que possa ir além.

O governo Lula encarou o Mensalão.
O Mensalão decorre do quê? Eu que conheço essa história por dentro. Não tem nada de Mensalão. Não tem nada que foi pago para o cara votar nisso ou naquilo, mas teve dinheiro para as campanhas eleitorais. Se você fizer uma investigação nessa campanha e ver quanto cada partido cobra do candidato principal para aderir a ele, você cai dura.

Como funciona?
Ao fazer uma coligação, o partido que adere em geral fala: “Estou aderindo a você, mas preciso de uma estrutura de campanha”. Isso está acontecendo nesse momento.

Com todas as candidaturas?
Com todas, por que é do jogo. O Mensalão decorreu exatamente dessa estrutura. Então nós que sofremos o processo do Mensalão com todos, como diz a presidenta, os seus dois pesos e 19 medidas, nós sabemos o que é isso. É nosso dever nos insurgirmos contra essa estrutura para não vir a sofrer de novo. E isso afeta o Executivo na medida em que as relações com o Congresso se tornam quase sempre fisiológicas. Há uma relação natural de “toma lá da cá”. E não se consegue mexer em questões fundamentais para o poder econômico.

Há décadas se fala na necessidade de uma reforma política. Por que não acontece?
Quando Dilma lançou a questão da reforma política com plebiscito, o Congresso ignorou completamente. A reforma não acontece porque os que têm interesse de que isso permaneça são hoje majoritários. Não acontece porque parte da imprensa, que tanto critica a corrupção, também não quer saber de uma reforma política para valer.

Por que não?
No meu juízo, porque eles representam essa elite. Uma reforma política põe em risco a hegemonia da influência do poderio econômico no Parlamento, no Executivo e assim por diante. Toda vez que se fala em  democratização, quem ostenta privilégios não quer mudanças.

Por causa de algumas de suas análises, comenta-se que o senhor é alvo do chamado fogo amigo.
Houve um episódio recente, da minha ida ou não para a campanha, onde aconteceu um pouco dessa história. Teve muito boato de que a presidenta não gostava de mim e que eu iria sair. A presidenta me disse que eu deveria ficar no governo e ajudar na campanha. Já estou fazendo isso. Sinto que as coisas que eu falo têm muito apoio dentro e fora do governo. É claro que tem muita gente contra também, inclusive no meu partido, até porque vivemos em uma democracia. Mas não vejo porque não deva falar. Nós temos também que fazer uma disputa do projeto político. Temos que ir contra a corrente que tenta taxar Dilma como incompetente e o PT como o partido que fabricou a corrupção, como se nós fossemos um bando de arrivistas que chegou ao poder para locupletar. O que faço é tentar dar um combate a isso.

A presidenta conversou com o senhor sobre o seu comentário de não era só elite branca que participou do xingamento na abertura da Copa?
Ela falou até publicamente.

Sim, mas estou querendo saber o que ela falou para o senhor.
Ela não falou explicitamente sobre isso. O que ela me disse é que às vezes falo coisas que são da minha cabeça e que não necessariamente representam a posição do governo e que eu preciso pontuar isso.

Pontuar como?
Pontuar no sentido de precisar, demarcar. Ela é muito cuidadosa nas falas e pede que os ministros sejam cautelosos. Então, o que ela disse para mim é que ela aprova muito o meu trabalho, mas que há problemas quando às vezes eu falo coisas que não representam necessariamente a posição do governo. Eu reconheço isso. Mas acho que tenho que correr algum risco para poder, de alguma forma, errando e acertando, contribuir para o debate. Esse é o preço que eu pago. Quando se fala, há o risco de ser impreciso, de errar, de divergir. No caso da elite branca, o que aconteceu foi que, naquele momento, ofendida por aquele palavrão, ela fez aquela análise. Do ponto de vista de quem estava dentro do estádio,nãoposso discordar.

O senhor não estava dentro do estádio.
Estava em uma escola ao lado, para observar as manifestações. Na volta, no metrô, me impressionou ver meninos que não tinham nenhuma cara de elite branca falando o mesmo palavrão. Semanas antes, em show do Rappa em Ribeirão Preto já tinha ocorrido essa manifestação.

O mesmo xingamento?
Foi lá que começou. O vocalista fez um discurso radicalizado, dando pau no governo. Aí, a massa reagiu, gritando esse palavrão contra a presidenta. Eu já vinha discutindo com o meu pessoal sobre o processo de gotejar da leitura que a maior parte da imprensa faz em relação ao nosso governo. Isso foi gotejando, descendo para os setores populares, de modo que a rejeição a nós já estava permeando a classe média e até beneficiários dos nossos programas sociais.

O governo Lula usou mais a comunicação?
Usou mais, a partir da própria figura dele que, todo dia, de alguma forma, estava se expressando. O setor de comunicação também foi montado de maneira diferente. Havia antes muita presença na imprensa regional, furando o grande bloqueio. Havia também muita publicidade nas mídias regionais.Nós, infelizmente, fizemos pouco isso.

A publicidade foi canalizada para os grandes órgãos de comunicação de São Paulo, Rio e Brasília?
Não só publicidade, mas a própria distribuição da notícia, o prestígio que se dá para os veículos regionais, ao fazer entrevistas diretamente para eles. Nós fizemos pouco isso.

O senhor é grande defensor dos conselhos de participação social, previsto em um decreto muito criticado pela oposição. Por que?
A gente defende esses conselhos porque eles são históricos no Brasil. Existem e funcionam desde a década de 1930. O ridículo dessa situação é que a presidenta Dilma apenas fez um decreto que reconhece a existência desses conselhos e estimula que outras áreas do governo se abram para a participação social.Não há nada de chavismo. Ela está apenas reconhecendo a realidade.

Houve muita reação no Congresso.
Houve uma falsa interpretação de que o decreto fere a autonomia e os direitos do Legislativo. Partiu de alguns setores da imprensa e foi encarnada por uma parte do Congresso. Mas estamos em uma postura de diálogo com o Congresso. Só estamos tentando mostrar que é ruim o Congresso ficar contra uma participação que já existe. É também uma resposta às manifestações da sociedade por mais transparência, mais participação. Quando o povo foi as ruas, não dizia “Você não me representa”?

O senhor está há quase doze anos no governo. Qual a maior satisfação?
Foi ver mudanças concretas na vida dos pobres. Foi perceber que uma parte daquilo que nos mobilizou nos anos 1970 acabou se realizando. Quando deixei o seminário, me tornei peão de fábrica e fui morar em uma favela. Durante dez anos, morei na favela do Rio Belém, em Curitiba. Então, tenho muito forte esse negócio do pão, da comida, do essencial da vida. O fato de ter conseguido possibilitar mudanças na vida das pessoas é de longe a minha maior satisfação. Para mim, o símbolo dessas mudanças foi o dia que nesse palácio vieram em torno de 130 pessoas, vítimas de uma política de exclusão histórica no Brasil, o confinamento em colônias, por terem o Mal de Hansen. Chegaram em um final de tarde, para reivindicar uma indenização do Estado e uma mudança de postura do Ministério da Saúde em relação a eles.

Isso no governo Dilma?
Não, ainda no governo Lula. Eu os recebi na porta. Tinha uma senhora que havia contraído a doença durante a gravidez. A polícia sanitária foi à noite na casa dela e a levou embora para uma colônia. O marido se suicidou. Quando a criança nasceu, foi tirada dela e dada em adoção, sem que a mãe soubesse. Essa senhora só reencontrou-se com a filha 37 anos depois. Quando ouvi essas narrativas, subi com eles até o terceiro andar (onde fica o gabinete presidencial). Coloquei os 130 em uma sala ao lado do gabinete do Lula. No intervalo de uma audiência, puxei o Lula pela mão. De alguma forma, eu quase o constrangi a recebê-los, o Lula dizendo, “Ô véio, não tem como não receber”.

E aí?
Quando Lula entrou na sala, eles estavam cantando uma música que fala “fica sempre um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas”. Lula teve um impacto.  Saiu abraçando um por um. Falou para mim: “Gilbertinho, suspende minha agenda. Eu quero ouvir esses caras”. Naquele dia, ele se comprometeu a tratar da indenização. A medida provisória saiu 40 dias depois. Para mim, essa noite simboliza o movimento de uma gente colocada embaixo do tapete que recuperou a vida. Nos piores momentos, você lembra, e pensa: “Valeu a pena ter estado aqui”.

E a decepção?
Decepção é exatamente aquilo que eu falei na primeira parte da entrevista, com a cultura política instalada no País.

Como não se contaminar?
Primeiro, a pessoa tem que ter uma formação, uma história. Um dos erros do PT foi não ter continuado os processos de formação, para dar consistência, para o cara resistir a isso. Segundo, mudando a estrutura que induz a isso. Daí, o mais importante é fazer a reforma política. Para a gente ter esperança, isso tem que mudar. 


Comentários

2 respostas para ““Nós temos o que mostrar””

  1. Bela entrevista!

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