Seis décadas de arte

O mestre da gravura Marcelo Grassmann sempre trilhou um caminho particularíssimo, com seus temas fantásticos e sombrios e sua singular técnica de claro e escuro. Do mesmo modo, mantém opiniões independentes – e polêmicas. Ao rememorar sua vida narra também a história de seis décadas de arte e os encontros com Tarsila do Amaral, Patrícia Galvão, Alfred Kubin, Oswald de Andrade (“um filho da puta”) e Jorge Luis Borges.

Ao telefone, pergunto se podemos marcar a entrevista para cinco dias mais tarde. A resposta vem com seu peculiar senso de humor: “Se estiver vivo até lá, será um imenso prazer”.
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Descendente de alemães, Grassmann nasceu em 23 de setembro de 1925, na pacata São Simão, a 300 km de São Paulo. Era um leitor assíduo de histórias em quadrinhos quando, aos 12 anos, viu as ilustrações de Gustave Doré para A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Sentiu-se tomado por uma espécie de iluminação. Descobriu o que queria fazer da vida. Hoje, aos 85 anos, vive sozinho em um apartamento de classe média, próximo à Rua da Consolação, no centro de São Paulo.

O elevador se abre e lá está o homem, trêmulo, a equilibrar-se em uma muleta. Pés descalços, ele convida a mim e a fotógrafa Luiza Sigulem para entrarmos e encosta a porta, que jamais é trancada. Esclarece que adotou o procedimento para que o socorram, na eventualidade de alguma emergência. Suas primeiras palavras surgem tão tímidas e cerimoniosas que temos a equivocada impressão de que pede para ficarmos descalços. É assim que nos recebe, afinal. Grassmann tem uma das pernas com movimentos limitados – sequela de uma recente isquemia -, locomove-se com dificuldade, e arca com as despesas de uma faxina semanal. Os poucos filmes em VHS, CDs de música erudita, um rádio e um televisor – que, habituou-se a assistir com os alto-falantes mudos – são os artefatos capazes de romper o silêncio do apartamento. Ele atravessa as semanas com a certeza de uma única visita diária. Na hora do almoço, um dos entregadores de um restaurante chinês sobe ao quinto andar para provê-lo da refeição diurna e do jantar, conservado na embalagem de alumínio, aquecida horas mais tarde no micro-ondas.

Do círculo de amigos e familiares, vez ou outra vê o filho, o músico Paulo Grassmann e, com maior frequência, a gravadora e ex-mulher Zizi Baptista. Estão separados há quatro anos, após insistentes apelos de Grassmann: “Eu já estava com 80 anos e ela, 40 anos mais jovem do que eu, havia se tornado minha ambulância e enfermeira. Um dia, me cansei e disse: ‘Vamos nos separar, amigavelmente. Você vai viver a sua vida e eu vou viver o que resta da minha’. Somos muito amigos”.

Grassmann vai se desarmando e diverte-se ao, finalmente, perceber que tanto eu quanto a fotógrafa também estávamos descalços.

Fruto da geração brasileira que, à partir dos anos 1920, revelaria nomes mundialmente celebrados na arte da gravura – como Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo -, Grassmann mostrou-se um talento precoce. Aos 18 anos, quando criou os primeiros trabalhos de gravação em matrizes de madeira – a xilografia – a riqueza exuberante de seus desenhos e o domínio técnico fizeram com que logo ganhasse visibilidade. Goeldi aprofundou os conhecimentos do jovem na arte da gravura em metal, e o acolheu como grande amigo e discípulo. Agora, 67 anos depois, Grassmann tem obras no acervo do MoMA, de Nova York, na Bibliothèque Nationale de France, entre outros museus, acumula a marca de mais de 400 exposições ao redor do mundo, e essa história continua a ser escrita. Se a fragilidade física o afastou da gravura, a saída foi voltar-se para outra grande paixão: o desenho.

Sobre a enorme mesa do ateliê improvisado em uma sala do apartamento, centenas deles empilham-se. Obras datadas de 1991 a 2009. Nem o peso dos anos, nem as adversidades e tampouco os recorrentes apelos para que se adequasse aos movimentos artísticos que vão e vêm afastaram Grassmann de suas obsessões. Tanto nas obras que compreendem sua produção entre 1944 e 1973 – compradas em sua totalidade pelo governo estadual para o acervo da Pinacoteca de São Paulo – quanto nos desenhos recentes, encontramos, à exaustão, seus temas constantes, seu mundo fantástico: a atmosfera embriagada de sonhos, erotismo, mulheres lascivas e bestiais, cavalos sombrios, cabeças de peixe e crustáceos, pequenos diabos, seres zoomórficos e cavaleiros medievais em suas armaduras a desafiar e sendo açoitados pela onipresença da morte.

Astuto, Grassmann observa que tenho em mãos um roteiro de perguntas e me pede, desconfiado, para ler o conteúdo. Uma quebra de protocolo, mas entrego-lhe a folha. Perguntas reveladas, ele dobra o papel ao meio, o acomoda no colo, e põe-se a falar em cadência lenta. Decido abolir o roteiro e deixar que suas lembranças venham à tona. Ele não se atém à cronologia. Logo está comentando a primeira metade dos anos 1950, quando saiu pela tangente do fogo cruzado entre modernistas (ainda tolerantes à arte figurativa) e concretos (dispostos a aniquilá-la em favor de geometrismos). Em 1951, ele venceu no I Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro e foi contemplado com uma viagem a Roma, que, meses depois, o levaria a Viena, na Áustria, onde aprofundou os estudos em litografia e gravura.

Meses antes da viagem à Europa, Grassmann esteve na Bahia a convite do artista plástico Mario Cravo Júnior. Lá, encontrou Sonya, sua primeira grande paixão, com quem viveu por quatro décadas. Foram juntos para Roma. Sonya, na verdade, chamava-se Anne Marie Elisabeth Graesse. Era filha de pai alemão e mãe húngara, praticantes de luta livre. O casal ancorou no Brasil a trabalho, em 1950, com uma trupe de lutadores. Sonya, que se revelaria uma gravadora de talento, era o pseudônimo que Anne utilizava nos ringues.

A chegada ao frio hostil de Roma fez com que Grassmann passasse dias trancado no apartamento com a mulher, essa reclusão levantou suspeitas na vizinhança: “As pessoas nos consideravam um casal muito estranho. Não saíamos de casa e eu fumava 100 cigarros por dia. Quando saía para comprá-los, fazia logo um grande estoque. A polícia chegou a ir em nosso apartamento conferir o que acontecia. Com Sonya fiz também a viagem a Viena e, chegando lá, logo soube de uma história pitoresca. Estudei na Academia de Artes Aplicadas, onde fiz litografia e gravura, por cerca de dois anos. Contava-se que foi lá que Adolf Hitler tentou se inscrever como artista e foi reprovado. Um belo dia, o diretor que o reprovou soube que receberia uma visita de Hitler e ficou em pânico: “Esse cara vai ordenar que eu seja fuzilado!”. Para sua surpresa e alívio, Hitler saiu-se com essa: “Felizmente, vocês não me aceitaram como artista e pude me dedicar à política!”.

A passagem por Viena o levaria à Academia Albertina, que detém o maior acervo de gravuras do mundo. Meses depois, conheceu pessoalmente um de seus ídolos, o gravador expressionista austríaco Alfred Kubin, de quem Grassmann parece ter herdado muito mais que o traço sombrio: “Goeldi havia remetido uma carta para o Kubin, recomendando minha apresentação. Ele me recebeu, foi supergentil e bastante objetivo: ‘Olha, você vai me desculpar, mas penso que duas pessoas estranhas não devem conversar. Temos ainda a dificuldade da língua e, além do mais, estou com 80 anos e não teria muita saúde para receber ninguém’. Por fim, ele me recomendou um pesquisador, em Hamburgo, que tinha um verdadeiro museu de sua obra, mandou um abraço para o amigo Goeldi e só. Hoje, que tenho a mesma idade, eu o entendo perfeitamente”.

Em 1947, Grassmann ganhou notoriedade ilustrando o suplemento literário do jornal Diário de São Paulo, dirigido pelo escritor Geraldo Ferraz. Figura ativa da brigada canibalista egressa da Semana de Arte Moderna de 1922, Ferraz foi secretário da Revista de Antropofagia e parceiro de Raul Bopp e Oswald de Andrade na empreitada. Casou-se, em 1940, com a ex-mulher de Oswald, Patrícia Galvão – a Pagu – responsável por grande parte do conteúdo do suplemento. A despeito de Grassmann não ter a menor filiação com as ideias modernistas, o convite de Ferraz sugeria uma prática natural. Ao longo da história, grandes gravadores sempre ilustraram as obras dos maiores escritores, como o próprio Kubin que pôs sua arte a serviço de edições de Fiodor Dostoiévski e Edgar Allan Poe. Questiono Grassmann sobre a confluência de interesses tão diversos: “Naquela época, não havia nada disso, você podia colaborar para que alguém, como Flávio de Carvalho (arquiteto, pintor, escritor e um dos mais ativos modernistas), fizesse uma litografia. Eu levava a pedra, ele desenhava, eu voltava para meu ateliê, preparava a matriz e imprimia para ele. Sem problemas.Havia um grande companheirismo e respeito. Isso acabou. Hoje, quem quer começar alguma coisa vai contar com quem? Vai fazer o quê? Ou o camarada é um gênio autodidata ou vai estudar Mira Schendel (artista contemporânea suíça, radicada no Brasil)! Não fazendo demérito do trabalho dela, mas é um outro mundo. Lembro da inauguração de uma exposição. Havia vários painéis expostos e me lembro de todos se perguntando: ‘Ué, mas cadê o trabalho da Mira’. Era uma parede branca enorme, não havia absolutamente nada, e embaixo estava assinado o nome dela. Pois é. Estabeleceu-se o vale-tudo”.

O ceticismo de Grassmann ao falar da arte contemporânea, não raro, é interpretado como rancor de alguém que perdeu o bonde da história. Isso me incita a questioná-lo sobre o papel da crítica e da imprensa cultural: “O espaço da crítica e da imprensa, hoje, é um terreno ocupado pela vanguarda. O Brasil há tempos vem querendo acompanhar o processo artístico americano, e a arte americana deriva da propaganda. Como na publicidade, o que vale é a ideia, não importa se você está acrescentando algo. A cultura, até meados dos anos 1950, ainda estava voltada para a Itália, a França e a Alemanha, quando de repente os americanos fizeram uma revolução cultural. Hoje, qualquer artista que faz sucesso nos Estados Unidos passou a ganhar reputação em virtude de grupos sociais e de relações que, para mim, não têm nada a ver com arte. Ora, o que alguém como o Schwarzenegger entende de arte? Ele compra coisas do Romero Britto, e tem em casa várias obras suas. A mulher dele é fascinada pelo sujeito. O que isso tem a ver com arte?”.

Grassmann tem argumentos que incitam contrapartidas e é impossível não replicar que, historicamente, o papel da crítica e da imprensa foram vitais para perpetuar tradições e apontar novos horizontes. Ele hesita, contemporiza, mas reitera suas convicções, armando-se de um paradigma made in brazil. “Pegam uma Tarsila do Amaral, que não tinha mercado nenhum no Brasil, e elevam à categoria de um milhão de dólares. Convivi com a Tarsila por pelo menos dez anos, e ela morava em um apartamento que era do tamanho desta sala. Um suíço comprou uns quadros franceses que ela tinha e foi assim que pôde trocar por aquele apartamento vagabundo.”

Se as divergências estéticas com seus contemporâneos o isolavam, Grassmann ainda se via espreitado por uma constante cobrança por posicionamento político em sua arte: “Houve um tempo onde tudo que era feito de bom era creditado a quem fosse stalinista. Por conta disso, Geraldo Ferraz e Pagu foram considerados reacionários e delatores, pois eram contra Stálin. Já o achavam uma espécie de ditador, como hoje, tardiamente, se classifica gente como Fidel Castro. Quanto a mim, somente pelo fato de andar com Pagu e Geraldo, era tido como trotskista. Admiti que também era contra o stalinismo e também fui tachado de reacionário. Quando houve o golpe de 1964, foi até curioso, pois veio muita gente bater na minha porta: ‘Posso ficar na sua casa, Marcelo? Por aqui, sei que ninguém vai me procurar!’. Houve um momento em que impingiram à arte brasileira uma preocupação social absolutamente grosseira e falsa. Me lembro de uma gravura: Massacre na Praça da Sé, um soldado montado a cavalo, com um bastão e atacando uma única pessoa. Concluí que estávamos caminhando para uma arte social completamente idiota, pois você pode representar um massacre, uma maçã, uma prostituta e qualquer tema pode ter uma função social. Agora, se é mesmo arte, é outra coisa”.

Abandonamos essa discussão e retomamos às questões que lhe são realmente caras. Destaco a regularidade temática de suas obras e a remissiva aparição de símbolos sombrios e enigmáticos. Ele defende que, talvez, escolher pelo obsessivo seja algo pertinente à natureza de qualquer ser humano comum: “Eu, você, todos nós temos um arquivo de imagens na cabeça e você vai procurar atraí-las cada vez mais. No plano da feitura de uma obra, seja musical, literária ou qualquer outra, o resultado nunca cai do céu. É uma colcha de retalhos que a gente faz com o que se conhece e o que se tem mais afinidade, até que essa afinidade faz com que criemos um estilo”.

A atmosfera densa e onírica das obras de Grassmann sempre foi associada a correntes, como o expressionismo e o surrealismo. Ele próprio manifestou mais de uma vez estar exausto dessas interpretações, mas é inegável a proximidade e impacto de algumas de suas imagens com o ambiente sombrio de filmes alemães de Murnau e Fritz Lang. Nas letras, fica patente a filiação com o imaginário opressor e aflitivo de Franz Kafka e com a narrativa de Jorge Luis Borges. A propósito de Borges, ele recorda entusiasmado: “Quase ilustrei uma obra dele. Borges veio ao Brasil e já estava tudo certo. No fim, o projeto fracassou. A editora concluiu que seria um custo muito alto e não dava pra se fazer um livrinho barato se tratando de Borges. Lembro-me bem de nosso encontro. Ele chegou, bastante sério, querendo saber como era meu desenho e me disse: ‘Não é nada destas coisas de ficção científica, é?!’. O fantástico, para ele, ainda era associado à ideia de ficção científica, pois já estava cego havia tantos anos que sequer imaginava que poderia haver coisas que não fossem aquele velho clichê”.

Quando falamos de Kafka, os olhos de Grassmann procuram um ponto distante. Ele permanece em silêncio por longos segundos e revela: “Quanto a Kafka, reconheço que ele me levou a certas conclusões a respeito de mim mesmo. Quando li A Metamorfose, fiz vários desenhos que retratavam Gregor Samsa (o protagonista do livro) sendo esmagado contra a parede por uma maçã podre. A família o tratava daquela forma, como alguém que estava lá atrapalhando a vida feliz deles e eu me sentia um pouco assim, como uma carga. Meus irmãos e minha mãe, que era professora, trabalhavam duro para sustentar a casa, enquanto eu passava os dias a desenhar e não ganhava nada por aquilo. Em certo sentido, eu era a barata do Kafka. Hoje, me interpreto assim, esse pesadelo que a gente pode representar para uma família”.

Em 1973, Grassmann foi condecorado com a Ordem do Barão do Rio Branco, pelo Itamaraty. Lembra do episódio, e não desperdiça a oportunidade de fazer uma anedota, dizendo que o convite para ir a Brasília receber a honraria era “totalmente irrecusável”. Afinal de contas, o temido general Médici o aguardava para a entrega. A piada me faz incitá-lo a divagar se é justo que, hoje, este mesmo País não dê a ele o devido valor: “No final da vida, todo seu trabalho, todas as amizades, ações coletivas, experiências individuais, e todo aquele entusiasmo que te moveu, tudo isso conta como um grande ganho. O resto não significa muito. A Tarsila quase morreu de fome e, hoje, eleva-se absurdamente o preço de quadros que não têm nem grande importância na obra dela. Falam tanto do Oswald de Andrade, cujos 120 anos foram lembrados ainda agora, e é bom ressalvar que ele era um grande filho da puta! Veja o caso da (artista plástica) Anita Malfatti. Ele fazia um trocadilho muito maldoso, que era chamá-la de Anita Malfeita, pois tinha um defeito em um dos braços. O comunismo do Oswald era uma vigarice total. Ele era dono de metade do Jardim Paulista e do Jardim América, áreas grandes e muito bem localizadas. Muito hábil em fazer blagues. Tinha esse cacoete, lembrava muito o Oscar Wilde, que por sinal fazia blagues muito melhor do que ele”.


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