100 anos de Patativa do Assaré, o poeta eterno

Março de 2000. Logo após a virada do milênio, fui parar em Assaré, no sertão do Ceará, acompanhado da bela fotógrafa e eventual motorista Luludi, que se perdeu a caminho da cidade tornada sobrenome do maior poeta popular de que se tem lembrança nas terras nordestinas.

Aos 91 anos, Patativa do Assaré já estava meio surdo e meio cego, mas sua prosa versejada continuava a mesma – rica, colorida e ligeira, muito mais rápida do que a minha capacidade de anotar suas palavras. Mal sabia eu que aquela seria sua última entrevista para uma grande revista, a semanal Época, onde eu trabalhava. Não queria perder nenhuma vírgula daquele belo depoimento sobre sua vida de gênio cantador do sertão, começando, como se deve, pelos tempos de menino no sítio da família naquela mesma Assaré, bucólica e hospitaleira.

A certa altura, pedi que ele falasse um pouco mais devagar e lhe expliquei que era repórter antigo, ainda daqueles que usavam caneta e bloco de anotações, não tinha gravador. Patativa ficou bravo, resmungou comigo, deu mais um pigarro e me deu ordem de ler o que havia anotado. Com muita dificuldade, já nervoso com a situação, um monte de gente em volta assistindo à entrevista, procurei decifrar e fui lendo meus garranchos.

“É… Tá assim só mais ou menos o que eu falei. Mas eu prezo muito as minhas palavras… Gostei não. Não dá para gravar?”

De que jeito? Um santo anônimo teve a idéia de ir até a emissora de rádio da cidade, ali perto da casa de Patativa, na praça central de Assaré, para pedir um gravador emprestado. Fui salvo pelo repórter e redator Jesus Leite, da Rádio Assaré FM, que me emprestou seu moderno equipamento para fazer minha primeira entrevista gravada. Patativa morreria pouco tempo depois.

A seguir, alguns trechos da entrevista que fiz com Patativa em março de 2000 (transcrição literal da fala de Patativa):

RICARDO KOTSCHO – O que você falaria para seus companheiros nordestinos que estão em São Paulo? Como está o Nordeste hoje? Vale a pena voltar pra cá?
PATATIVA DO ASSARÉ – A vida está difícil em toda parte, mas lá está pior porque a legião de nordestinos que tem lá é um absurdo. E o desemprego faz com que eles procurem um meio de voltar para a própria terra. Mesmo sofrendo, mas está sofrendo em sua terra. Não vou fazer poesia dentro deste tema, não.

R.K. – É muito triste… Não dá vontade, não dá inspiração?…
P.A. – Não, inspiração eu tenho em toda hora. Em tudo o que eu quero. É porque eu não lembro nem quero. Naquele tempo antigo, também já tinha gente querendo voltar e não podia. Lá tem muita gente, rapaz, que quer voltar e não pode voltar.

R.K. – Agora seria a triste volta. Você compôs “A triste partida” e agora seria a triste volta…
P.A. – É.

R.K. – Algum amigo do senhor que foi embora, teve algum que já voltou para Assaré?
P.A – Tem. Tem muitos que voltaram, mas não é nem pelo seu sofrimento, é a saudade que bate nele, e ele, mesmo sofrendo, deixa sua lembrança no coração e nunca esquece aquele que tem o espírito de patriota e ama a própria terra. Eu, pelo menos, nasci aqui neste Assaré, e nunca parti para parte nenhuma. E nem quero sair. Hei de viver aqui até morrer neste meu Assaré. Assaré de meus amores, onde andei de beco em beco, saíram flor, folhas e flores, só ficou um tronco seco. Mas mesmo assim eu quero viver aqui. Gravador que estás gravando, aqui no nosso ambiente, tu gravas a minha voz, o meu verso e o meu repente. Mas, gravador, tu não gravas a dor que meu peito sente. Tu gravas em tua fita, com a maior perfeição, o timbre de minha voz e a minha própria expressão, mas não grava a dor grave, gravada em meu coração. Gravador, tu és feliz, e ai de mim o que será, bem pode ser desgravado o que em sua fita está e a dor do meu coração jamais desgravará.

R.K – Muito bonito. São oito horas da manhã e o senhor já está inspirado. Todo dia é assim?
P.A. – Sempre nasci com esta interação e continua ainda. Embora no vigor da mocidade, cada um pode bem avaliar, que eu tinha mais expressão, pensamento mais rápido, mas com 91 anos, tô com 91 anos, se eu quiser saber por experiência…

R.K. – O senhor imaginava chegar ao ano 2000, e continuar com esta memória que o senhor tem, lembrar de obras que o senhor fez, de 40, 50 anos atrás?
P.A. – A primeira reportagem que teve foi no jornal Diário do Nordeste neste ano, foi minha saudação ao ano 2000. Com amor no coração, faço a minha saudação. Meu bom dia ano 2000, trazendo felicidade, paz, justiça e liberdade, bem-vindo seja ao Brasil. Meu caro amigo 2000, pede com desejos mil, nestes versinhos rasteiros, um poeta que se empenha, pedindo que o povo tenha, um Brasil dos brasileiros. Ouvindo com atenção minha solicitação, fiquei muito feliz. Queremos que você traga, desde o campo até a praça, progresso em nosso País. Patativa do Assaré.

R.K – Muito bonito, muito bonito. Até que ano o senhor trabalhou na roça?
P.A. – Até 60 e tantos anos. É porque a poesia de outros poetas é diferente de Patativa. Eu nasci com um privilégio admirável, que eu mesmo nunca vi outro fazer. Fazer a sua própria poesia, gravando logo na mente, desviando, repito, na memória. Você pode ler uma estrofe, ficava na mente. Segunda, terceira, até terminar o poema que eu quisesse fazer.

R.K. – A grande inspiração do senhor sempre foi a roça, sempre foi a terra, a natureza, por isso que o senhor sempre quis ficar em Santana, em Assaré, sem sair daqui. Esta é a grande inspiração do senhor?
P.A. – Naturalmente.

R.K. – Agora tem o Memorial do Patativa bem aqui em frente à sua casa. Quase todos os dias vem visita, eles vão no memorial e depois querem falar com o senhor. Às vezes, o senhor não fica aborrecido com tanta gente que vem aqui?
P.A. – Não. Quanto mais visitas, mais eu me sinto prazenteiro porque eu não fiz prevenção da minha lira, para ter como ganhar dinheiro. Eu procurei, estou fazendo ainda, é atrair amizade no Brasil inteiro. Eu quero que o Brasil todo me quer. Você ainda não viu isso, não?

R.K. – É verdade, todo mundo gosta do senhor. É o poeta popular mais querido do Brasil de todos os tempos. É o que todo mundo fala.
P.A. – Aí, então, a minha riqueza que eu fiz até agora não é outra. É a própria amizade, é o amor de um para os outros, sem sentido de exploração. É isso o que eu tenho feito e quero fazer o restante da minha idade.

R.K. – Esta é a maior alegria que o senhor tem. Esta fraternidade, amizade, amor. Qual o momento de tristeza que o senhor tem?
P.A. – Tristeza, não, mas a maior riqueza é esta. Aquele que sabe ver o que é a vida, vê que a principal riqueza é o amor de uns para os outros. Foi o que Cristo pregou, o direito humano, na Palestina, e tudo aquilo que ele pregou.

Sem lhe pedir, nem fazer pergunta, ao final da nossa conversa, que durou mais de duas horas, Patativa do Assaré começou a dizer um poema, como se quisesse resumir a sua história:

Eu quero lhe dizer desta poesia cabocla, ou vamos chamar, poesia matuta, o que é que eu sou e o que é que eu canto.

Sou filho da mata, cantor da mangrossa, trabalho na roça, tenho verme e destio.

A minha choupana é tapada de barro, só fumo cigarro de palha de milho.

Sou poeta da brenha, não faço patê, se algum menestré, errante cantor, que vive vagando com sua viola, cantando pachola para cura de amor.

Não tenho sapiência, pois nunca estudei, apenas eu sei o meu nome assinar.

O meu pai, coitadinho, vivia-se em pobre, e o filho do pobre não pode estudar.

Meu verso rasteiro, singelo e sem graça, não entra na praça no rico salão.

Meu gado só entra no campo e na roça, na pobre palhoça, da serra ao sertão.

Só canto o bulício, da vida apertada, da vida pesada da roça.

E, às vezes, recordando a minha mocidade, canto uma saudade que mora em meu peito.

Eu canto o caboclo com suas caçadas, na noite assombrada, que tanto apavora.

Por dentro da mata, com tanta coragem, topando com a chamada caipora.

Eu canto o vaqueiro, vestido de couro, brigando com o touro no mato fechado.

Que pega na ponta, do bravo novio, ganhando elogio do dono do gado.

Eu canto mendigo, de sujo farrapo, com peça de trapo e mochila na mão, que chora pedindo “socorro, doutor!”, e tomba de fome, sentado e sem pão.

E assim, sem cobiça, eu vivo contente, feliz com a sorte.

Morando no campo, sem ver a cidade, cantando as verdades das coisas do Norte.

R.K. – Qual o nome desta poesia?
P.A. – Poeta da Roça.

R.K. – Muito bonito, muito obrigado. Aqui ficou mais bonito ouvindo na casa do senhor.

A última vez que fui a Fortaleza, no Ceará, ano passado, fiquei reparando numa pequena estátua na entrada do Centro Cultural Dragão do Mar, uma beleza de espaço aberto na antiga região portuária da cidade. “Eu conheço este cara”, comentei com a minha mulher. Era ele, o miúdo Patativa do Assaré, grande figura, enorme e eterno poeta.


Comments

3 respostas para “100 anos de Patativa do Assaré, o poeta eterno”

  1. Avatar de luzia barboza
    luzia barboza

    por que ele faz poesias lindas

  2. Avatar de luzia barboza
    luzia barboza

    eu achor que deveria falar da inportancia do poeta

  3. Avatar de Antonia Albeniza Gomes
    Antonia Albeniza Gomes

    Emocionante!
    Seria interessante que cedesse esse material para A Fundação Memorial Patativa do Assaré para ser disponibilizada aos pesquisadores.
    Albeniza.
    Juazeiro do Norte Ce.

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