“Oh! Admirável mundo novo
que tem pessoas assim!”
Miranda, personagem de
A Tempestade, de Shakespeare
Deve-se temer um mundo sem livros. Assim que Donald Trump tomou posse como presidente dos EUA as vendas de uma obra escrita em 1948 aumentaram 10.000%. Tratava-se de 1984, de George Orwell. Eu tive a oportunidade de lê-la exatamente no ano de 1984, ainda que ela denunciasse muito mais o socialismo de partido único, enquanto na América Latina suportávamos o ocaso de ditaduras capitalistas mesmo. A União Soviética então já exibia sinais de cansaço e não inspirava revoluções em parte alguma.
Um outro livro por isso impactou-me muito mais: foi o Admirável Mundo Novo. Um mero zíper para se despir com rapidez e o sexo casual como norma fizeram do livro um prazer juvenil para os seus leitores, embora Orwell também excitasse os seus quando o zíper de um macacão se abria.
A popularização do fecho éclair deu-se depois que os pilotos o usaram nos seus uniformes na Segunda Guerra; e note-se que a obra de Huxley é de 1932! Enquanto as relações sexuais em 1984 eram controladas pelo Partido e feitas às escondidas, no Admirável Mundo Novo a troca de parceiros era obrigatória e não raro múltiplos encontros terminavam em orgias.
Sua ambiguidade estava em que a liberdade era uma obrigação. Os comentários de duas mulheres (e não dois homens!) sobre o sexo da véspera eram avançados demais para sua época: “He patted me on the behind this afternoon” (“Ele me deu um tapinha no traseiro esta tarde”). E quando a personagem Lenina quis persistir com um mesmo homem, sentiu a obrigação de sair com outros mesmo sem vontade.
Era um mundo de faces rosadas, sem doenças ou dor; eventuais tristezas eram remediadas por uma droga gratuita (o soma); a aparência jovial seria conservada até a morte por meio de uma medicina avançada e a família substituída pela coletividade e seus bebês geneticamente programados. Huxley também ironizava o comunismo. Seus personagens tinham nomes como Polly Trotski e Bernard Marx. Mas também Benito Hoover e Bakunin.
Nós avançamos muito mais na direção de Huxley com nossos comprimidos para tudo e cirurgias plásticas acessíveis do que para o Big Brother de Orwell, apesar de programas sonolentos de TV com este nome. Nossos regimes políticos abusam da vigilância, é claro, mas não necessitam de um partido único ou ditadores, apesar de ilusionistas serem eleitos no norte ou tomarem o poder no sul por um simples truque de cartola.
Independentemente de haver uma autoridade conhecida por Fordiship (Fordidade), o governo usaria menos a força e mais a propaganda, o consumismo, as drogas, o esporte e o estímulo ao transporte lucrativo de massas! A jornada de trabalho não poderia ser reduzida a quatro horas, mesmo se a técnica o permitisse…
Como em toda utopia (ou distopia), sua crítica era ao presente e não ao futuro. O mundo, fosse socialista ou capitalista, tinha uma mesma base: o fordismo, a produção em massa, a padronização de mercadorias e sentimentos e uma fé cega no progresso.
Com exceção de obras técnicas, os livros antigos publicados 150 a.F. (antes de Ford) seriam proibidos. O que incluía a Bíblia e as peças de Shakespeare. Os “controladores” substituíam a arte pela técnica. Deus por Ford. As classes sociais eram predeterminadas em laboratório e os membros da casta mais baixa seriam negros, obviamente. Ainda assim, todos tinham que adquirir “consciência de classe” através de um condicionamento hipnótico e behaviorista. Assim, cada um acreditava possuir a sua importância no corpo social. Mais ou menos como sonham nossos neoliberais que desejam criar drogas para que as pessoas trabalhem dias sem dormir e sejam condicionadas a agradecer pelo trabalho fastidioso e as baixas ocupações.
Enquanto isso, as camadas de cima podem programar seus filhos com QI e força física elevados, prever suas doenças ainda no embrião e destiná-los ao comando político e empresarial por direito. Afinal, pessoas desnutridas nascidas na pobreza carecem de “mérito” para ascender socialmente. O que Huxley previu foi o solapamento da democracia liberal e a formação de castas por direito não de mérito, mas de nascimento, como se formassem uma aristocracia pós-moderna, não de capa e espada, mas de avental e proveta.
Quando John, o selvagem, chegou ali por acaso logo concordou que havia coisas muito boas naquela civilização. Tinha se apaixonado por Lenina quando descobriu que ela trajava um calção curto de veludo verde e meias brancas de lã de viscose, dobradas logo abaixo do joelho. Ele jamais tinha visto algo assim. O calção se abria com um “Zip, e logo zip; zip, e novamente zip”…
As escolhas propostas ao selvagem não eram fáceis. Condicionadas, sim. Mas quem preferiria a liberdade de ficar velho e doente e adquirir uma depressão incurável; o direito de não ter o que comer e sofrer dores sem remédio?
A resposta do selvagem não comporta hesitações. À predestinação social, ele preferiu o perigo e a poesia. Ao conforto químico das tristezas, o amor e o próprio direito de ser infeliz sem Lenina. Ao grosso volume de My Life and Work, de Henry Ford, encadernado em falso couro, ele preferiu carregar o tempo todo um surrado volume das obras de Shakespeare.
Miranda, em A Tempestade, admira-se quando vê homens tão belos que chegavam pela primeira vez à sua ilha. Até então ela só conhecia um espírito, Ariel, além de Caliban e o seu pai.
O que Miranda admirava não era um novo mundo, mas o velho.
*Professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo
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