Algo de novo no reino da Dinamarca

Em 1961, ao lado de José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi, o jovem ator Ronaldo Daniel fundou o Teatro Oficina, um marco para o moderno teatro brasileiro. Ronaldo nasceu em Niterói, no Rio de Janeiro, viveu em São Paulo, mas está fora do País desde 1964. Passeava pela Escócia, quando soube do golpe militar instaurado por aqui em 31 de março daquele ano e procurou refúgio na Inglaterra. Com o nome anglicizado para Ron Daniels desde 1977, ele é também diretor associado da Royal Shakespeare Company. A companhia sediada em Stratford-upon-Avon, cidade inglesa do condado de Warwickshire, foi criada em 1875 para difundir a obra atemporal de William Shakespeare e é um símbolo do teatro britânico.

Em um galpão instalado na Aclimação, bairro da região central de São Paulo, Ron Daniels enfrenta uma maratona que acumulará 90 dias e cerca de 720 horas de ensaios, comandando um elenco de 15 atores liderados por Thiago Lacerda. Nos próximos meses e em 2013, o diretor levará a São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e Belo Horizonte sua quarta releitura de Hamlet, uma das obras-primas de Shakespeare e a mais extensa peça do repertório do bardo inglês. O espetáculo abrirá temporada de nove semanas na capital paulista, em 19 de outubro.

Depois de passar os últimos três meses no País, já no dia seguinte à estreia paulistana de Hamlet, Ron voltará para os Estados Unidos e engrenará a produção de um novo espetáculo. Prolífico, atuando ou dirigindo peças teatrais e óperas, ele já se envolveu em quase uma centena de produções. Transpira teatro, como defende o colega e grande ator Antonio Petrin, que interpretará o fantasmagórico pai de Hamlet. Ele relembra dias de Ronaldo no Brasil: “Contei para o Ron que o vi trabalhando como ator no Oficina, em Os Pequenos Burgueses, e ele ficou espantado. De tanto que me marcou, dei até as características do personagem para ele acreditar. Pouco depois, ele desapareceu. Foi para a Inglaterra e acabou ficando por lá por causa da ditadura”.

O encontro com Ron e os atores de Hamlet aconteceu em uma tarde de quinta-feira, em que o diretor e parte do elenco concederam entrevistas à Brasileiros, durante intervalo do ensaio de uma cena densa e instigante. “Essa é uma peça que conheço muito bem e quis fazer uma produção bem moderna, em que o texto de Shakespeare poderá ser realmente entendido pela plateia, sem palavras e construções complicadas. A poesia virá do conteúdo e não simplesmente das palavras”, aposta Ron, antecipando novidades.

O progresso das pretensões do diretor salta aos olhos no intenso diálogo entre o príncipe Hamlet e soldados do exército norueguês. Minutos antes, Thiago Lacerda encerrou a cena com o rosto submerso, por dois homens, em uma bacia de latão que transbordava água. Thiago seca os cabelos, observa a roupa molhada e brinca que não está adequadamente vestido para fazer as fotos da nossa reportagem. Mas o figurino do ator não poderia ser mais despojado e adequado para a tarefa de encarar oito horas diárias de ensaio: uma calça em tactel, dessas que secam em minutos, camiseta e um par de tênis vermelho, de lona.

O ator demonstra entrega ao personagem, mas não planejava integrar uma montagem de Hamlet, até saber de Ruy Cortez (produtor do espetáculo e ex-assistente do diretor na montagem de Rei Lear) que Ron Daniels pretendia vir ao Brasil e havia aceitado o convite de Ruy para dirigi-lo: “É claro que Hamlet faz parte do imaginário de todo ator, mas fiz duas temporadas de Calígula e tinha embarcado em uma viagem de que ele era o meu Hamlet. Com as novas perspectivas trazidas por Ron, concluí que essa seria minha grande oportunidade de fazer Hamlet. A partir de então, tem sido tudo muito revelador”.

Desafio divisor
Thiago ficou popularmente conhecido por seu desempenho em telenovelas como Viver a Vida e Terra Nostra (sucesso exibido em 120 países), mas, em paralelo, vem desenvolvendo uma importante trajetória no teatro. Foi dirigido por grandes nomes como Ulisses Cruz, em O Círculo das Luzes, de Doc Comparato, e José Possi Neto, na adaptação de Maria Adelaide Amaral para o romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Encarnou ainda, por duas temporadas, em 2008 e 2010, o imperador Calígula, em adaptação de Gabriel Villela para o clássico texto do escritor Albert Camus. Ganhou fácil a admiração de Ron, que chancela: “Thiago é um animal de palco. Que existe no aqui e agora do palco. Estamos a um mês da estreia, ainda temos muito trabalho, mas estou deslumbrado desde já”.

A revelação da força de Thiago vem acrescida de outras boas descobertas que o diretor diz experimentar, em um contínuo jogo de troca com os atores. Nas apostas de Ron, o espetáculo vai arrebatar o público pelo lirismo, intrínseco à obra do autor, muitas vezes interpretado como hermético: “Estou redescobrindo a peça. Tenho encontrado dimensões que não tinha percebido antes. Essa não será uma adaptação clássica, embora eu tenha enorme respeito pelo texto e quase considere a peça uma Bíblia. É preciso ser muito exato, mas, ao mesmo tempo, ter imaginação e loucura. Você viu uma cena e pôde perceber que não é um teatro ‘bonzinho’”.

Sutilezas e afinidades
Quando fala, irônico, que não faz um teatro “bonzinho”, Ron Daniels pode até sugerir austeridade, mas ele esbanja sutileza. Conduz os atores com gestos simples ou um piscar de olhos, e tudo funciona perfeitamente no amplo galpão de paredes negras, repletas de frases manuscritas com giz branco. Gertrudes, a rainha adúltera, mãe de Hamlet, é interpretada pela experiente atriz Selma Egrei. Enquanto descansa e conversa com o amigo Petrin, ela manifesta entusiasmo ao falar do encontro com o diretor. “Venho, há anos, me dedicando ao teatro-dança, onde o mais importante é o movimento, e estamos trabalhando com a base do Ron, que é a palavra. Ele vem de outra relação com Shakespeare e a cada coisa nova que sugerimos ele consente e experimenta. Leva o elenco para onde quiser, sem nos deixar presos.” Sentado ao lado de Selma, Roney Facchini, que interpretará Polônio, conselheiro do rei, acaba de completar 30 anos de carreira e engrossa o coro de unanimidade entoado pela atriz. “Jamais poderia esperar um presente tão especial quanto esse. Estou comemorando em grande estilo.”

Nos minutos que antecedem a retomada ao ensaio, Petrin também trata a experiência como a realização de um antigo desejo. “Confesso que não tinha a menor pretensão de fazer Hamlet, mas fiquei fascinado com o convite. Ron é um diretor fantástico, conhece Shakespeare como ninguém e fala as coisas de forma objetiva. Há muitos diretores brasileiros que deveriam se espelhar nele.”

Antes de fartar-se com uma banana e partir às pressas para a próxima cena, Thiago reitera que, potencializado pela generosidade e o talento do diretor, o papel tem todos os elementos para se tornar um marco em sua carreira. “Ron estudou a obra por mais de 30 anos e está montando Hamlet pela quarta vez. Não imaginei que ele seria tão acessível e disposto a jogar com o ator. É um privilégio olhar para ele e pensar que encontramos pessoas jovens, com tão menos estrutura, e elas vivem determinando coisas para o ator, enquanto um cara com toda essa bagagem te ouve e diz: ‘Por que não?!”

Ao ir para a sessão de fotos, Ron Daniels deixa revelar uma timidez britânica. Incensado por todos que o cercam, ele parece desconfortável e pouco afeito a cliques e flashes de luz. Longe de seu País, assombrado por uma ditadura que perseguiu muitos de seus pares de geração, com disciplina e trabalho, tornou-se mestre em seu ofício. Quase anônimo no Brasil, ele revela que visita a terra natal, a passeio, a cada dois anos, mas confessa que gostaria mesmo é de voltar mais vezes a trabalho. “Sou apaixonado pelo Brasil e me sinto bem aqui, como em nenhum outro lugar, mas comecei uma carreira fora e tive que continuá-la. Uma dinâmica em que eu tinha de ir onde existisse trabalho”, justifica-se, sem necessidade. Afinal, se as tensões políticas exilaram do País esse grande diretor, o teatro mundial ganhou um fiel discípulo, que vem dedicando a vida a perpetuar a obra daquele que é considerado por muitos o maior autor de todos os tempos.


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