Crônica da Transição

Emmanuelle, 1974
Emmanuelle, 1974

Aliado da ditadura, presidente do Senado e peça-chave na política de distensão arquitetada pelo general-presidente Ernesto Geisel, o senador Petrônio Portella recebeu em seu gabinete a atriz holandesa Sylvia Kristel, que fazia sucesso mundial com o filme erótico Emmanuelle. Ao final da visita, registrada por uma dezena de fotógrafos, em outubro de 1977, Portella comentou: “Achei-a melhor na tela”. O filme Emmanuelle, é bom lembrar, estava proibido no Brasil. Sem relevância histórica, o episódio foi relatado pelo jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Acabada para mostrar como Portella, discretíssimo em relação às articulações de Geisel, ocupava espaço público com uma agenda es­pe­taculosa.

A Ditadura Acabada é o quinto volume da série escrita por Gaspari sobre o regime implantado no Brasil pelo golpe civil-militar de 1964. Para fechar a coleção, que começou a ser publicada em 2002, o jornalista fez uma crônica de fôlego a respeito da transição para a democracia. No mesmo estilo preciso e de fácil leitura que marcou os volumes anteriores, o livro abrange da fase final do governo Geisel até o dia 15 de março de 1985, quando o último presidente da ditadura, o general João Figueiredo, deixou o Palácio do Planalto por uma porta lateral para não entregar a faixa presidencial ao civil José Sarney. Nessa fase, implodiram tanto a economia quanto a própria ditadura, ao mesmo tempo que eclodiram movimentos de rua, como a campanha por eleições diretas para presidente.

A Ditadura Acabada, Intrínseca, 447 páginas
A Ditadura Acabada, Intrínseca, 447 páginas
Também nessa época, o estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, passou a abrigar muito mais do que partidas de futebol. Superlotado, o estádio virou palco de assembleias dos metalúrgicos em greve no ABC. A primeira grande greve, em 1979, surpreendeu os militares, mas terminou com resultados pífios em relação à demanda dos trabalhadores. Ainda assim, projetou como nunca a figura do então sindicalista Luiz Inácio da Silva, o Lula. Ao final do movimento, ele fechava o acordo no escritório de Claudio Bardella quando o barão da indústria pesada foi chamado ao telefone. Era o filho dele pedindo que conseguisse um autógrafo de Lula. “Esse simples episódio mostra o paradoxo da greve de 1979. Matematicamente, ela foi uma ruína. Fizeram melhor negócio os sindicatos que ficaram fora dela”, escreveu Gaspari. “Politicamente, o patrão pedia um autógrafo do operário para seu filho.”

Outro episódio emblemático do período que Gaspari narra em detalhes ocorreu na manhã seguinte à explosão de uma bomba no estacionamento do Riocentro, que reunia milhares de pessoas para um show comemorativo ao 1º de Maio de 1981. Secretário particular do presidente João Figueiredo, Heitor Aquino Ferreira telefonou para o chefe, para informá-lo sobre o atentado. Figueiredo comemorou: “Até que enfim os comunistas fizeram uma bobagem”. Meia hora depois, o secretário ligou de novo: “Presidente, há indícios de que foi gente do nosso lado”.

A bomba tinha explodido antes da hora planejada, dentro de um carro ocupado por dois militares, mais precisamente no colo de um deles. Por trás da ação terrorista frustrada estava a linha-dura do Exército, que não se conformava com a possibilidade de uma abertura política no País. Com avanços e recuos, a redemocratização acabou construída, como Gaspari esmiúça em A Ditadura Acabada. No final do livro, em ritmo de thriller, o jornalista apresenta a trajetória de 500 personagens que marcaram o período.


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