Poderia ser mais uma biografia produzida a partir de uma linguagem convencional de telenovela, como tanto se viu no cinema brasileiro nas duas últimas décadas. Mas não é. Getúlio, do diretor João Jardim, conta os últimos 19 dias da vida do presidente Getúlio Vargas (1882-1954), até o suicídio, em 24 de agosto de 1954. É um daqueles raros filmes em que nenhum detalhe foi esquecido: figurinos de época, fidelidade dos cenários e, principalmente, preciosismo na correção das informações históricas, mostradas com equilíbrio, sem se apegar a clichês. Conta também com um elenco afiadíssimo, comandado por Tony Ramos, impressionante no papel de Vargas, bem acompanhado de Drica Moraes (Alzira Vargas, filha e assessora pessoal do presidente) e Alexandre Borges (Carlos Lacerda, jornalista e político opositor ferrenho de Vargas).
O diretor de Lixo Extraordinário, indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2010, e dos premiados Janela da Alma (2002) e Pro Dia Nascer Feliz (2006), e o roteirista George Moura (Linha de Passe) recorreram a rigorosa pesquisa sobre o episódio para fazer um drama intenso e convincente, ao mostrar como Vargas foi acuado por diversas frentes golpistas, inclusive segmentos da imprensa que lhe faziam oposição, por causa do financiamento do jornal Última Hora, de Samuel Wainer – único personagem importante que ficou de fora da trama.
O filme retrata com ênfase o chefe da segurança Gregório Fortunato – suspeito de mandar matar Lacerda – como alguém que enriqueceu se beneficiando do poder. E questiona se a autoria do atentado não teria sido forjado pelo próprio jornalista. Há uma especulação histórica de que ele mesmo teria atirado e matado o major Rubem Vaz, o que justificaria a sua negativa de entregar a arma que usou naquela noite contra seus supostos agressores. Como diz o próprio Jardim, seu longa transforma uma história real em um emocionante thriller. “Quisemos encontrar a essência de Getúlio, o que está por trás do personagem histórico. É muito interessante pegar uma grande figura e focar em um momento crucial da sua trajetória. Esses 19 dias têm elementos fortíssimos e uma carga emocional muito grande. São os momentos finais de um homem que viveu o poder de forma intensa.”
A grande força também está na interpretação e caracterização de Tony Ramos. “A trama não só recupera parte da história para uma plateia jovem, que estudou a época apenas nos livros, como também mostra meandros da política e os bastidores do poder”, diz Tony que, em 2014, comemora 50 anos de carreira. “Não queria apenas imitar Getúlio. Não queria e não consegui. O que fiz foi mostrar os questionamentos, a raiva, os sentimentos que chegaram a esse homem nesses dias de crise.” Na entrevista a seguir, o ator fala do processo de criação do personagem e o cuidado de se contar corretamente a história.
Brasileiros – Deu trabalho dar vida a Getúlio Vargas?
Tony Ramos – Foi complicado. Mas tive a felicidade de ter uma ótima base para trabalhar. O primeiro impacto veio com a leitura do roteiro, que me levou a conversar com o roteirista. E Jardim, que é um competente diretor de documentários, foi fundamental no processo. Por isso, tive a meu dispor uma farta documentação sobre a época e o próprio Vargas, sua personalidade, seus hábitos e trejeitos.
Você é minucioso até no jeito de pegar no charuto. De onde vieram esses detalhes do personagem?
Não existe muito material gestual do Vargas, como acontece com os outros presidentes que vieram depois. A TV era precária, não havia como fazer muitos registros da rotina do presidente. E os filmes que existem trazem o político no palanque, interpretando um papel, tudo montado para ser propaganda política. Recorri a descrições de pessoas que conviveram com ele, registradas em livros. Concluí que ele era um político de pé do ouvido, de longos silêncios, de gostar de observar e falar pouco.
E tinha uma personalidade complexa, como mostra no filme…
Sim. Ele foi um ditador e em seu governo foram feitas coisas terríveis contra a liberdade das pessoas. Em 1945, acabou deposto pelos militares e voltou democraticamente, nos braços dos povo, em 1950. Ou seja, o contraditório foi uma constante em sua vida. Assim, procurei explorar seus hábitos. Quem o conheceu lembra que da rua as pessoas podiam vê-lo na janela, acenavam para ele. Tentei recriar essas situações diante da maior crise da história política brasileira até aquele momento. Tem uma frase emblemática nesse sentido, quando ele diz que o tiro que matou o major Vaz acertou as costas de seu governo. Enfim, o filme não é uma biografia, mas também não trata do óbvio.
Com o suicídio, Vargas deu um xeque-mate em seus adversários, impediu que eles tomassem o poder?
Sem dúvida. Ele deu um xeque-mate na história do País. Desse modo, impediu o golpe militar, que só viria acontecer nove anos e sete meses depois. Não podemos esquecer de que Juscelino foi eleito em seguida, ajudado pelo legado de Vargas. Tem uma passagem que é importante nesse sentido. Quando a filha Alzira tenta tirá-lo da inércia, ele lhe diz que em sua vida pública acostumou-se a atender pessoas que lhe pediam coisas pessoais, jamais o procuravam para atender a alguma necessidade do povo.
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