Naturalmente. Advérbio que, entre outras acepções, descreve a forma espontânea, não artificial, com que algo transcorre. Naturalmente. Também o nome de uma canção de João Donato escrita em parceria com Caetano Veloso e registrada no álbum Lugar Comum, de 1975, o segundo, depois de Quem é Quem (1973), a revelar o canto zen do pianista, compositor e arranjador, então com mais de 15 anos dedicados à música instrumental no Brasil e no exterior, onde atuou com feras do jazz mundial, como Bud Shank, Mongo Santamaria, Tito Puente e Chet Baker.
Sempre sereno, foi “sabendo a calma para ir, perdendo a pressa para estar” (parafraseando a letra de Caetano) que, aos 81 anos de idade, o veterano pianista acreano registrou sua mais recente obra fonográfica, o álbum instrumental Donato Elétrico, resultado de quase dois anos de trabalho sob direção do jornalista e produtor Ronaldo Evangelista e ao lado de um time de mais de 20 músicos. Como sugere o título, o álbum recupera a faceta plugada e energética de clássicos como A Bad Donato (1970) e Donato/Deodato (1972), lançados pelo pianista em solo norte-americano no período em que ele viveu na Califórnia.
Em entrevista à Brasileiros, por telefone, a voz sussurrada de Donato vem à tona: “Tudo aconteceu naturalmente. Começou com as visitas que Ronaldo fazia em casa. Ele sempre levou muitos discos para eu ouvir, e um dia trouxe um do Bixiga 70 (a big-band paulistana de afro-funk) para eu conhecer. Quando viu que eu gostei do trabalho, Ronaldo disse que gostaria de produzir um disco comigo e com esse pessoal de São Paulo. Pouco depois, apresentamos a ideia para a equipe do selo Sesc, eles gostaram do projeto e mandaram a gente ir adiante”, explica.
A aproximação entre Donato e Evangelista deu-se em 2003, quando o jornalista colaborava para a revista Jazz Mais. A partir de então, a relação entre repórter e fonte foi estreitando-se e tornou-se amizade. A cada reencontro na casa do pianista na Urca, no Rio de Janeiro, muito bate-papo e longas sessões de audição, sobretudo de jazz norte-americano e latino. “Nos primeiros dois anos de encontros, acho que esgotei as histórias do João, não como entrevistador, mas em conversas que rolaram naturalmente. Ele tem uma memória incrível. Lembra e contextualiza tudo. Especialmente essa fase que eu adoro, entre o A Bad Donato e o Lugar Comum”, diz Evangelista.
Composto de dez novos temas, em formações alternadas, Donato Elétrico contou com a participação dos dez músicos do Bixiga 70 e de mais 13 instrumentistas (veja quadro com a ficha técnica completa do álbum na página ao lado). Além deles, um convidado especial, o maestro Laércio de Freitas, que assina o arranjo de cordas do tema Frequência de Onda.
Velho parceiro de Donato, Laércio orquestrou as faixas de Quem é Quem, álbum de 1973, idealizado e produzido por Marcos Valle, que marcou a volta definitiva de Donato ao Brasil, depois de 13 anos nos Estados Unidos. Naquele retorno do pianista, além de arranjar as composições de Quem é Quem – preciosidades como Cala Boca, Menino, Ahiê, Amazonas, Terremoto, A Rã e Chorou, Chorou –, Laércio também assumiu o papel de professor de João, algo desnecessário, segundo ele. “A inventividade do Donato supera a ideia de que ele tenha que estudar para se aprofundar na música. Ele tem essa essência e é bom não mexer muito que é para não desvirtuar. O ouvido do Donato é uma parabólica. O tônus, o DNA da música dele tem a simplicidade do povo do Acre, passa pelo Norte, pelo Nordeste do Brasil, tem a Amazônia e todas as mágicas que acontecem na mata, tem o jazz, a coisa cubana”, diz Laércio.
No decorrer da feitura de Donato Elétrico em março de 2014, 41 anos após o lançamento de Quem é Quem, Donato teve a alegria de apresentar, pela primeira vez, ao vivo o repertório do antigo álbum em dois shows, também produzidos por Evangelista e acompanhado de parte dos músicos do Bixiga 70, que arrebataram os fãs no Sesc Pinheiros em São Paulo. Nos primeiros dias de março, na choperia do Sesc Pompeia, também na capital paulista, o octogenário mais jovem da música brasileira colocou à prova o repertório de Donato Elétrico, composto dos temas Here’s J.D., Urbano, Frequência de Onda, Espalhado, Tartaruga, Soneca do Marreco, Combustão Espontânea, Resort, Xaxado de Hércules e G8.
Donato defende que o novo álbum recupera o espírito de jam session que impregnou alguns de seus mais importantes registros instrumentais: “O disco tem um paralelo com as coisas que eu fiz com o Eumir Deodato nos Estados Unidos. Como A Bad Donato, Donato Elétrico tem muito a ver com a situação de chegar ao estúdio, conhecer os músicos na hora e sair criando temas com uma troca de informações muito presente e as ideias deles também sendo gravadas. Fico muito feliz quando ouço o disco, porque acho que ele provém da alegria que estávamos sentindo quando o gravamos. O ambiente era muito alegre e quando a gente ouve os temas essa alegria é bem presente. É um trabalho muito dinâmico e feliz”, diz Donato.
“É para ser ouvido com um bom fone de ouvido ou em um som estéreo bem posicionado e em bom volume. Uma amiga falou que é um disco para expandir a consciência e adorei o comentário, porque acho que o álbum tem mesmo algo de psicodélico”, diz Evangelista. À primeira audição, desde a introdução da bateria de Décio 7 e dos primeiros acordes de Here’s J.D., o ouvinte pode atestar que o comentário do produtor procede. Graças ao reencontro de Donato com icônicos teclados analógicos dos anos 1970, como o piano elétrico Fender Rhodes, o órgão italiano Farfisa, os sintetizadores Moog e Pro One, e o Clavinet, instrumento célebre por ter sido utilizado na gravação original de Superstition, de
Stevie Wonder, Donato Elétrico é repleto de paisagens sonoras que propiciam “viagens” das mais aprazíveis.
Quando foi ao estúdio Traquitana, espécie de quartel-general dos rapazes do Bixiga 70, registrar seu arranjo de cordas, Laércio ainda não tinha ouvido as outras composições de Donato Elétrico. Algo, segundo ele, dispensável para fazer um bom trabalho, porque, no seu entendimento, cada música demanda tratamento orquestral único. “A música é como a mulher e o arranjo é como a roupa de cada música. Quando escrevo um arranjo, para qualquer formação que seja, procuro trabalhar de forma com que eu consiga vestir a música sem que ela tenha de mudar o jeito de caminhar.” Questionado sobre o que achou do resultado quando, enfim, ouviu Donato Elétrico na íntegra, Laércio se entusiasma. “Achei um trabalho interessantíssimo, principalmente pelo fato de o Donato, aos 81 anos, estar se juntando com músicos mais novos, alinhado com as coisas que eles fazem. Isso é ótimo. Ouço o disco e penso: ‘Não breque, porque eles vão te atropelar’.”
Depois de ter conhecido as dimensões humanas e artísticas de João Donato, Evangelista também destaca a motivação pelo novo como um dos segredos da vitalidade do artista que, ao lado do grande amigo João Gilberto, foi um dos artífices da Bossa Nova no final dos anos 1950. “Nem sei qual é o adjetivo correto para defini-lo… João é o cara que está sempre pronto, que está sempre disposto e não vive de uma coisa só. Sua musicalidade natural é tão forte, sua riqueza harmônica, sua riqueza rítmica e sua simplicidade melódica são elementos colocados por ele de uma forma tão tranquila, com um respeito ao silêncio e sem querer se repetir, que ele está sempre livre e sempre pronto para o novo. O lance do João é esse: estar pronto para tudo.”
Na despedida de nossa conversa, Donato também discorre sobre sua longevidade artística. “Acho que a música saudável, como essa que a gente procurou fazer, estende o tempo que a gente permanece na Terra. A música é um bálsamo, um alento e um tônico. Sou prova viva disso. Vamos fazer agora os shows de lançamento do disco e pretendo fazer uma excursão pelo interior de São Paulo e também tocar em outras capitais. Vou fazer 82 anos em agosto e tô que tô”.
Quem é quem – Os músicos que participaram de Donato Elétrico
João Donato, Fender Rhodes, Clavinet, Farfisa, Moog, Pro One; Décio 7, bateria; Marcelo Dworecki, baixo; Mauricio Fleury, guitarra; Guilherme Kastrup, percussão; Bruno Buarque, bateria; Zé Nigro, baixo; Gustavo Ruiz, guitarra; Marcelo Cabral, arranjo de cordas; Mauro Refosco, percussão; Beto Montag, vibrafone; Aramís Rocha, violino; Robson Rocha, violino; Daniel Pires, viola; Renato de Sá, violoncelo; Cris Scabello, guitarra; Richard Fermino, clarone; Anderson Quevedo, flauta; Cuca Ferreira, sax barítono; Douglas Antunes, trombone; Daniel Nogueira, sax te–nor; Daniel Gralha, trompete; Gustavo Cecci, percussão; Rômulo Nardes, percussão; e Laércio de Freitas, arranjo de cordas.
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