Coluna_Adriana Komives

Domingo. Porrada. Abismo.

Era o fim do fim de semana.  Num lampejo intuitivo, fui ver se dava para acompanhar a votação da Câmara dos Deputados, e dava. Peguei bem no comecinho e aguentei até uns duzentos e poucos votos. Deputados da Amazônia, do Rio Grande do Sul, Norte e Sul, tudo a mesma coisa ou quase, enrolados em bandeiras de seus Estados, enfeitados de laços verde e amarelo, a maioria deles dizia votar por sua família, seu Deus, sua cidade.

Um SIM que mais parece um NAO, SIM ao impeachment, não à democracia, às instituições jurídicas, ao voto universal, aos direitos dos menos favorecidos, NAO à decência. Fui dormir boquiaberta, se é que se pode dormir assim.

Segunda. Ressaca. Foi pesadelo?

No rádio, ouço a análise sucinta do ocorrido no Brasil. Até que enfim, entenderam um pouco o que está em jogo, além da fachada. Luta pela corrupção? Ou volta do fascismo?

Talvez um e outro ao mesmo tempo.

Talvez este redemoinho que tem nos liquidificado. Forças antagônicas. Olho do furacão. Aqui dizem: não queremos mais Hollande nem Sarkozy, mas também não votaremos em Marine Le Pen. O que fazemos então? É como se não houvesse mais opção.

Votação do impeachment de Dilma na Câmara dos Deputados no último domingo (17). Foto: Marcelo Camargo/Fotos Públicas (17/04/2016)
Votação do impeachment de Dilma na Câmara dos Deputados no último domingo (17). Foto: Marcelo Camargo/Fotos Públicas (17/04/2016)


Terça. Puxa. Nossa Senhora! Deus me livre. Deus nos acuda! A ressaca ainda não passou.

Leio no Facebook o lindo texto de Veronika Paulics, uma Brasileira em Barcelona. E o publico aqui com sua licença (poética e a outra). Ela que trabalhou anos com Gestão Pública no Brasil e hoje cuida de literatura numa cidade mais fácil de se viver que a nossa desvairada São Paulo. Com seu texto podemos parar e pensar, qual foi o custo do nosso abandono da coisa pública? Anos de ensimesmamento, de negligência do cuidado com o bem comum. Nos esquecemos que somos seres políticos, que vivemos em várias polis, que todos somos responsáveis.

Então, aqui vai a voz de Veronika. Que certamente é pela igualdade das minúsculas.

“digo: estou triste. alguém me diz: fica triste não, não vale a pena, é só a política. tenho vontade de responder e não sei o que responder. amanheço e me volto para as coisas pequenas, os cotidianos. amassar o pão. o fermento antigo não faz crescer o pão. busco socorro junto a uma amiga que sabe de pães. mais um dia amanhece. mais um pouco de cotidianos. vou até a biblioteca perto de casa. converso coisas miúdas. procuro uns livros de amichai (e encontro). faço reserva de outros livros. vou até o supermercado, que também é perto de casa, e compro fermento e frutas. continuo triste. começo a escrever.
quando escrevo, me vem a clareza. esta, de dizer: o que me entristece não é o desencadeamento de uma situação específica entre deputados e senadores, a disputa entre partidos políticos e o cinismo em relação à corrupção, aos direitos mais básicos, à ironia em relação a deus, à família, ao ridículo disso que chamamos política.
o que me entristece é que chamamos este espetáculo de política e desvinculamos a política do cotidiano, da possibilidade de termos um lugar para morar, de sair à rua com tranquilidade, de haver uma biblioteca perto, onde haja livros e pessoas que leem, de haver um supermercado, de eu ter acesso a comida, fermento e pão. que eu possa pedir socorro a alguém que está do outro lado deste imenso oceano. e esse alguém me ouvir e me responder. eu poder estar em casa e escrever.
o que aconteceu domingo no congresso brasileiro não me afeta diretamente em meu cotidiano aqui em Barcelona. tampouco acho que o mundo se constrói a partir do que se decide nos governos dos países porque a disputa pelo poder se dá também em outros espaços, quando se trata de capitalismo. ao mesmo tempo, é um evento que me afeta profundamente ao comprometer a possibilidade de todos termos um cotidiano com casa e comida, um lugar tranqüilo para existir.
se a política é o campo da disputa de projetos de mundo, o domingo foi um dia de terror. quem é que tem vontade de se meter em política depois de ver esse show de horrores? e, no entanto, na medida em que não nos metemos em política, avança o projeto de mundo destes mesmos políticos e das pessoas cujos interesses eles obscuramente representam (e que ninguém venha me dizer que numa democracia representativa os “nobres” deputados representam quem os elegeu formalmente).
e nisso está a minha tristeza: o mesmo show de horrores tornando público o mundo que esses caras pretendem construir (o meu deus, a minha família, os meus interesses), também faz com que a gente se enoje disso que se chama política, faz com que a gente deixe de pensar a política como uma construção de possibilidades. e ao deixar de pensar a política como um campo de construção de possibilidades, a gente fica sem lugar para construir um novo cotidiano. sem um novo cotidiano, bilhões de pessoas ficam relegadas à miséria em que estão, nos barcos à deriva nos oceanos, nos campos de refugiados, ficam as meninas na prostituição, as crianças nas carvoarias. sem opção. ou, nós os que nos sentimos acima da pobreza geral do mundo, gastamos horas em deslocamentos nas cidades, comemos qualquer miojo no almoço rápido, temos medo de qualquer um que não seja nosso conhecido. fica cada um metido em seu próprio medo, em sua própria solidão.
como é que não vou ficar triste?”

*Adriana Komives, brasileira de origem húngara, 52 anos, 32 em Paris onde estudou cinema e exerce desde então as profissões de montadora e roteirista. Consultora em montagem de documentários nos Ateliers Varan, la Femis, DocNomads, ensina o ofício de montagem no Institut National de l’Audiovisuel e roda o mundo trabalhando em oficinas de realização documentária.


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