Honra, rito, injúria e solidariedade em questão

“A chama do ódio e da violência arde vigorosamente, a injustiça reina, o demônio cobre com asas negras a terra em trevas. Todos esperam o fim iminente do mundo”.

O tema da decadência da Idade Média e do despertar do mundo moderno é a matriz de uma produção bibliográfica abundante desde o século XIX. Seguramente, O Outono da Idade Média – que a Editora Cosac Naify acaba de publicar no Brasil em sua versão integral – não é um desses livros, apesar das duas frases em epígrafe. E apesar também do título da obra sugerir à primeira vista, senão o declínio de uma “civilização” (para usar um termo ao qual o autor recorre várias vezes), pelo menos o prenúncio desse declínio. Johan Huizinga ( 1945) está muito distante de um Jules Michelet que, em 1855, escrevia sobre este “estado estranho e monstruoso, prodigiosamente artificial, que foi a Idade Média”. Em sua História da França, mais precisamente no prefácio ao volume sobre o Renascimento, Michelet descreve os séculos XIV e XV como uma época de desilusões, na qual “o dia se põe horrivelmente”. Ele resume esse sentimento através de algumas fórmulas de impacto: o terrorismo entra na Igreja, e a fecundidade se retira; as comunas fracassam, o indivíduo se enfraquece; a matemática, séria no século XII, torna-se uma vã astrologia; a química, ainda sensata em Roger Bacon, torna-se uma louca alquimia. Em Huizinga, cujo interesse se situa exatamente nos séculos XIV e XV, encontramos algo distinto. Para ele, o final da Idade Média é um período no qual antigas formas de civilização morrem, enquanto, ao mesmo tempo, e no mesmo solo, o novo encontra alimento para florescer: afinal, teria sido em meio ao jardim do pensamento medieval, entre o crescimento exuberante das sementes antigas, que o classicismo desenvolveu-se gradualmente. Essa coexistência entre o novo e o antigo em um mesmo período e, sobretudo, em um mesmo espaço (a França e os Países Baixos), além de ter resultado numa descrição dos séculos XIV e XV que em nada lembra as numerosas obras dedicadas à “decadência da Idade Média”, torna difícil tentar classificar o autor do Outono da Idade Média como um adepto da “continuidade” ou como um partidário da “ruptura” entre Idade Média e Renascimento.
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Estamos diante de uma obra difícil de ser avaliada segundo essas duas categorias – “continuidade” e “ruptura” – que povoaram, ao longo do século XX, os escritos de inúmeros historiadores do final da Idade Média, da mesma forma que o próprio debate historiográfico acerca do período. O historiador holandês vê a sede de glória e de honra do Renascimento como resultante das aspirações cavaleirescas de origem francesa, da honra estamental levada ao máximo, despojada do elemento feudal e fecundada pelo elemento clássico; e nas próprias mentes renascentistas, ele crê que os traços medievais estão sulcados muito mais profundamente do que se normalmente se acredita. No entanto, em Outono da Idade Média, encontramos, por vezes, também uma distinção entre o “medieval” e o “moderno”. Há uma oposição entre o profundo pessimismo em relação às coisas terrenas dos séculos XIV e XV e o otimismo do século XVI, o ânimo fundamental do Renascimento e do Humanismo. Huizinga também identifica na avareza do final da Idade Média um caráter imediato, passional e exasperado que, segundo ele, teria se perdido nos tempos posteriores, quando o Protestantismo e o Renascimento deram-lhe um conteúdo ético: ela teria sido a partir de então legalizada como fator de prosperidade, perdendo seu estigma na mesma medida em que perdeu prestígio o desdém pelos bens terrenos. Mas, de um modo geral, predomina acerca dos séculos XIV e XV uma visão bastante repleta de nuanças. Assim, apesar da caça às bruxas, por exemplo, o final da Idade Média não estaria entregue de forma tão desamparada a toda magia e paranóia, considerando a credulidade geral e a falta de pensamento crítico. As superstições coexistiriam com as manifestações de dúvida e as opiniões racionais.

É notadamente através do foco que ele dá ao final da Idade Média como uma época de contrastes que Huizinga escapa de uma abordagem demasiadamente presa aos marcos cronológicos tradicionais ou ao imperativo teleológico: se não é uma ruptura em relação às formas de vida e de pensamento medievais, o Renascimento também não é a a sua evolução natural. Nos séculos XIV e XV, tudo o que acontecia na vida seria dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Os exemplos são múltiplos ao longo do livro. Entre a dor e a alegria, o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós. O pensamento religioso que, no que se refere à morte, só conheceria os dois extremos: o lamento pela perecibilidade, pelo fim do poder, da honra e do prazer, pela decadência da beleza; e, por outro lado, o júbilo da alma que foi salva. As agitações de ressentimento e rejeição contra as mais altas expressões da fé medieval estavam lado a lado com a devoção e o entusiasmo ilimitados. Os mecanismos de administração e governo já haviam assumido formas complexas, mas, no espírito popular a política ainda se materializava numas poucas figuras, simples e fixas; o imaginário político vigente era o da canção popular e do romance de cavalaria, os reis da época eram rotulados de acordo com um certo número de tipos, cada qual mais ou menos correspondente a um motivo das canções ou das histórias de aventura (o príncipe nobre e justo, o príncipe enganado por conselhos maldosos, o príncipe vingador da honra de sua linhagem, o príncipe amparado no infortúnio pela fidelidade de seus servos). A ausência dos sentimentos que tornaram nossa noção de justiça mais tímida e hesitante: a noção de atenuantes, a noção de falibilidade, a responsabilidade social, a ideia de emendar em vez de punir:

“Em vez de penas menos severas, baseadas na noção de culpa parcial, a justiça medieval só reconhece dois extremos: a punição e o perdão”.

Somente os súbitos impulsos de compaixão e perdão refreariam, por vezes, a aplicação cruel da justiça. O contraste entre a vida cultural dos círculos mais altos, que quase ter-se-ia transformado completamente em teatro social, e a realidade violenta, dura e cruel. Finalmente, o contraste entre o sonho belo do ideal cavaleiresco e a realidade, que nega continuamente esse ideal; o contraste entre uma profunda religiosidade e a forte tendência para ridicularizar a devoção e os devotos.

Dessa ênfase no contraste, cuja raiz estaria no descompasso entre as formas de vida e a realidade, não resultou uma separação entre “ideal” e “realidade”, tal como frequentemente se viu nos estudos sobre a Idade Média. O autor de Outono da Idade Média crê que a história da civilização tem a ver tanto com os sonhos de beleza e com a ilusão de uma vida nobre como com o recenseamento e os impostos. O que está em jogo aqui é menos a defesa de uma “história total” do que a convicção de que as formas não são um mero adereço ou um simples verniz ideológico desconectado da vida real: captar o conteúdo essencial que repousa na forma, eis o desafio que Huizinga se impõe. Ele menciona, por exemplo, a descrição feita pelo bispo de Châlons, Jean Germain, do Congresso de Paz de Arras, em 1435: durante os discursos dos enviados as pessoas caíam no chão, sem palavras, suspirando, soluçando e chorando. Sua conclusão merece ser destacada:

“As coisas com certeza não devem ter sido assim, mas deste modo o bispo de Châlons pensava que deviam ser: no exagero, via-se um fundo de verdade”.

Assim, o exagero da forma, tanto quanto um recurso estilístico, retrataria a exuberância desses tempos. É o que observamos em sua análise da vingança. A propósito do assassinato, em 1407, de Luís de Orléans, irmão do rei da França, por ordem de João Sem Medo, e do assassinato deste, doze anos mais tarde, Huizinga menciona uma infindável sequela de vinganças e combates que teriam conferido a um século de história francesa um tom geral de ódio sombrio. Para ele, uma sede de vingança revestida de formas tão minuciosas eram também uma manifestação da ritualização dos comportamentos:

“Muitas vezes, nesses casos de vingança, não é uma ira enfurecida ou um ódio implacável que leva a tal impulso; mas o derramamento de sangue antes serve para salvar a honra da família humilhada: às vezes decidem não matar alguém e, em vez disso, trata-se de ferir deliberadamente a pessoas nas coxas, braços e rosto; adotam-se medidas para evitar o peso da responsabilidade de matar o oponente em estado de pecado”.

Nessa análise da vingança há algo de profundamente inovador. Desde o século XVIII, e pelo menos até a primeira metade do século XX, os historiadores viram a Idade Média como um período dominado por uma violência endêmica e sem limites: é o que lemos na História da Civilização na Europa, de Guizot, nos Relatos dos tempos merovíngios, de A. Thierry, ou ainda no clássico O Fim do Mundo Antigo e o Início da Idade Média, de F. Lot. O longo processo de revisão da natureza e da extensão da violência na Idade Média começou no final dos anos 1950, graças aos trabalhos de J.-M. Wallace-Hadrill, mas foi nos últimos vinte anos que esse movimento assumiu toda a sua amplitude. Os historiadores contemporâneos consideram que a violência daquele período não era necessariamente desagregadora, tampouco um sintoma da “decadência da civilização”. A Antropologia Jurídica anglo-saxã, bem como os estudos realizados na França desde a década de 1990, demonstraram que a violência também pode ser utilizada para a manutenção e mesmo para o reforço dos laços sociais. Esse é o caminho seguido pelos estudos sobre a resolução de conflitos na Idade Média. Nesses estudos, a vingança não é mais vista como a realização de uma pulsão violenta e irracional, e sim como o resultado de códigos e normas que presidem a organização de uma sociedade. Outono da Idade Média antecipa a importância das questões de injúria, honra, rito e solidariedade que os estudos recentes sobre a história da justiça situarão no coração do entendimento dos conflitos na Idade Média. Huizinga é, nesse sentido, um precursor, pois percebe que o espírito apaixonado e violento do final da Idade Média não era o real pressionando constantemente a forma, mas também um tipo de forma, numa época em que, para utilizar uma expressão do próprio autor, “a quebra da forma já havia se tornado uma forma”. Ao tratar do relato de Chastellain sobre o luto de Carlos, o Temerário pela morte de Filipe da Borgonha, em 1467, ele afirma:

“É difícil distinguir até que ponto nesse e em relatos semelhantes estamos diante do estilo da corte, que considera adequada e elegante uma demonstração ruidosa da dor; ou de uma intensa e verdadeira emotividade própria da época”.

A rudeza dos séculos XIV e XV não significou o simples malogro do ideal. Assim como ocorria com o amor enobrecido e com a pacificação, a licenciosidade e a violência também tinham os seus próprios estilos. É diferente da abordagem que seria, alguns anos mais tarde, consagrada por Marc Bloch em seu livro Os Reis Taumaturgos. O historiador francês enxergava, pelo menos desde o início da Idade Média, uma dissociação entre as formas oficiais de representação da realeza e a “consciência popular”. Não encontramos em Outono da Idade Média essa idealização da “cultura popular”, resquício da tradição romântica do século XIX e pedra angular do “retorno às culturas do povo” da historiografia cultural da segunda metade do século XX. No que se refere à estilização do amor, por exemplo, para Huizinga a realidade sempre foi pior e mais crua do que a visão do refinado ideal amoroso literário, mas também era mais pura e mais reservada do que imaginava o erotismo popular, permeado pelo naturalismo.

Huizinga é um desses autores cuja obra torna difícil esta operação tão corriqueira quanto artificial e que consiste em separar as velhas práticas e os velhos objetos dos historiadores ditos tradicionais dos adeptos de uma “Nova História”, com seus novos métodos, seus novos temas de pesquisa e sua nova sensibilidade face aos documentos. O autor de Outono da Idade Média não se presta a um tal exercício, e é difícil enquadrá-lo precisamente em história da historiografia linear: ele acredita que, por mais que as formas de viver da nobreza não passassem de um verniz aplicado sobre a vida, ainda assim seria necessário que o historiador soubesse “enxergar a vida no brilho desse verniz”; ocupa-se do indivíduo, quando muitos historiadores se preocupavam unicamente dos sujeitos coletivos; concentra-se no estudo dos sentimentos e das formas, mas não considera esses sentimentos e essas formas como meros reflexos “superestruturais” da sociedade, construções ideológicas que escamoteariam o problema central das relações materiais; vê nos conflitos entre as linhagens reais do final da Idade Média não uma oposição criada a partir de diferenças econômicas entre elas, mas que se baseiam tão somente em termos de solidariedade e honra comuns.

Paradoxalmente, como um historiador do século XIX teria feito, ele usa a noção de “civilização” para enquadrar o seu objeto, as formas de vida e de pensamento; opõe o “espírito de partido” ao “patriotismo”; utiliza o conceito de “primitivo” para explicar fenômenos como o pranto presente no luto das cortes francesa e borguinhã, ou ainda o realismo medieval; não deixa de manifestar certa condescendência com a “insensibilidade” daqueles tempos, que ele qualifica de “ingênua”, como ingênua também seria a “intimidade com a religião”; tampouco se furta a certos juízos de valor quando afirma: “esse é um mundo mau”. Seria redutor explicar essas afirmações apenas pela busca de um efeito literário.

Em uma entrevista de 1975, e em um artigo de 1986, transcritos no final desta edição brasileira, Jacques Le Goff e Peter Burke nos falam de dois Huizingas. O Huizinga de Le Goff, da metade da década de 1970, é o autor que teria intuído “da necessidade de procurar o sentido de uma sociedade em seu sistema de representações e no lugar que esse sistema ocupa nas estruturas sociais e na ‘realidade”; é também alguém cujo tema fundamental em Outono da Idade Média seria “a íntima imbricação entre a Idade Média e o Renascimento”, e que “sabe muito bem que o problema não reside nessa divisão abstrata do tempo”; em suma, um defensor da “Longa Idade Média” avant la lettre! O Huizinga de Peter Burke é um autor cuja “obra historiográfica foi escrita para o leitor comum, tanto quanto para seus colegas de ofício”, “um homem de amplos interesses, tão largos que achou difícil assentá-los para se especializar em história, muito menos em um período determinado”. P. Burke acha que não seria difícil imaginá-lo escrevendo para o History Today (poderíamos acrescentar: como o próprio Peter Burke no artigo em questão!). Esses dois Huizingas se assemelham curiosamente às perspectivas teóricas ou ao enfoque temático que Le Goff e Burke pretendiam ou ainda pretendem encarnar através de suas obras. Seria um exercício complicado saber se o historiador holandês se reconheceria nessas definições (ou seriam recuperações?). No final das contas, isso importa pouco. É mais instigante imaginar em que medida a análise de Huizinga como um pioneiro da história cultural pode ter aprisionado a leitura de sua obra dentro de alguns parâmetros que pertencem quase que exclusivamente a essa tradição historiográfica inaugurada depois de sua morte, deixando de lado algumas questões essenciais propostas pelo autor de Outono da Idade Média.


* Marcelo Cândido da Silva. Professor Associado na área de História Medieval da Universidade de São Paulo (USP) e Coordenador do Laboratório de Estudos Medievais (LEME).

» O outono da idade média, Johan Huizinga, Cosac Naify, 656 páginas


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