House of Cards é pouco

Kevin Spacey e Robin Wright como o casal inescrupuloso e dissimulado de House of Cards. Foto: Divulação
Kevin Spacey e Robin Wright como o casal inescrupuloso e dissimulado de House of Cards. Foto: Divulgação


As comparações entre os eventos da política brasileira e a série norte-americana House of Cards se tornaram inevitáveis nos últimos dois anos, para não dizer irresistíveis. São tantos os desdobramentos a partir do fio “narrativo” iniciado pela Operação Lava Jato (e as surpresas ao longo da trama) que a realidade ganha ares de ficção. Para ser mais preciso, a imaginação anda perdendo a contenda para a capacidade humana de criar uma realidade mais estranha (e maluca) que a ficção. O jornal alemão Die Zeit foi além e cravou: “Por estes dias, é difícil entender por que ainda há pessoas que se interessam por House of Cards. Elas não acompanham as notícias da política brasileira?”, indagou Thomas Fischermann,  correspondente do jornal
no Rio de Janeiro.

Por mais surpreendente e original que seja o roteiro de uma das maiores crises políticas que nosso país já assistiu, a relação entre a política e a ficção tem data muito anterior ao protagonismo de Sergio Moro, o juiz de primeira instância alçado ao posto de herói. Se hoje falamos de House of Cards, os gregos antigos (e os romanos também) usavam o teatro como parâmetro de comparação, conforme mostrou o cientista político Cícero Araújo no artigo “Representação, retrato e drama”, publicado em 2006 na revista Lua Nova.

“A representação”, diz Araújo, fazendo alusão tanto ao sentido teatral quanto ao político da palavra, “se confunde com a invenção da própria política”. Grécia e Roma desconheciam o que hoje chamamos de representação parlamentar, mas já enxergavam na atuação pública o exercício de algo mais que apenas a expressão de preferências individuais. Na contramão do senso comum, até mesmo no templo da chamada “democracia direta”, havia uma dose de mediação na atividade política. Ou seja, ela não era tão “direta” quanto se imagina. As assembleias dos cidadãos atenienses não raro eram compostas por centenas, senão milhares de pessoas, e nem todos tinham a oportunidade de discursar. Aqueles que de fato o faziam tinham o dever de “representar” as opiniões e preferências de seus pares silenciosos. O esforço de se colocar no lugar de seus iguais, de tentar “incorporar o estranho” nos apresenta a possibilidade de adotar, ainda que temporariamente, um ponto de vista alheio ao nosso. Faria sentido, então, pensar nas ligações entre a política e a arte. Araújo sugere uma coincidência entre o surgimento da política e o do teatro, outra das heranças deixadas pelos gregos.

Teórico principal do absolutismo, Thomas Hobbes percebeu tal conexão e viu no ato de estabelecer um diálogo uma das faces da representação. Conversar implica estar disposto a pelo menos ouvir o intelecto e as emoções do outro. Precisamos trazer para dentro de nós os pensamentos que não nos pertencem. E não é esse o ofício do ator? No teatro da Grécia Antiga a máscara era o indicador desse embarque num psiquismo diferente do nosso. Por mais fiel que seja ao roteiro, um bom ator nunca é simples veículo por onde viaja o texto. O mesmo vale para a política. “O ator-representante, em sua metamorfose ‘recria’ o autor-representado, invertendo os polos do processo criativo: a fonte da autoridade política, de criador, se torna criatura de sua criatura”, afirma Araújo. O ator e o representante político, portanto, são também criadores, não meros emissários.

Estendendo a comparação, podemos pensar na estrutura do drama teatral como aspecto constituinte da política democrática.

Em todo drama há um conflito essencial, em que personagens se transformam justamente ao cruzar questões individuais em uma trama complexa, cheia de nuances e implicações para todo aquele universo criado. Pensar a política como drama implica aceitar que sempre haverá algum tipo de conflito no âmago do processo deliberativo – e, claro, no decisório também. Contrastante com essa ideia é a metáfora da política como um retrato, no qual a figura do soberano (ou seja, da legitimidade política essencial de uma determinada comunidade) é fixada capturando um momento específico, ressaltando características determinadas, aquelas que o retratista é capaz de perceber.

A metáfora do drama é dinâmica, viva, já que não permite dar ao soberano uma só identidade. A diversidade de atores é constituinte aqui. Assim como é na vida política democrática representativa, onde todos estão, pelo menos em teoria, em pé de igualdade. Outro aspecto essencial é a existência do conflito nessa teatralização. “Encenar” as tensões na arena política permite evitar o derramamento de sangue. A representação dos grupos e interesses fornece um lócus para onde as tensões podem ser direcionadas e solucionadas (não de maneira definitiva, é claro).

Precisamos entender, finalmente, que “o desfecho do roteiro não pode ser completo nem perfeito”, alerta Araújo. “Ele tem de se apresentar como uma espécie de obra aberta, suscetível de transformações ao longo da própria encenação”. Se a política é drama, então devemos olhar para os conflitos como uma oportunidade de diálogo e transformação, desde que estejamos atentos para a performance de nossos “atores”. Para os mais descrentes com a política (e talvez admiradores da crítica de Jean-Jacques Rousseau à representação e ao teatro moderno), Araújo esclarece que, na democracia representativa contemporânea, “o representante completa o representado, em vez de meramente substituí-lo”. Nessa relação também há tensão, já que o representante tem de estar em contato constante com os representados. Julgamos seu desempenho não só por sua “capacidade de levar à cena pública as queixas sociais” dos grupos representados, mas também para sua “capacidade de reelaborar as queixas, torná-las mais reflexivas, dando-lhes a forma adequada para obter uma recepção adequada na cena pública”, escreve o cientista político.

Talvez aí residam os pecados de House of Cards e dos representantes políticos brasileiros. Como um herdeiro da tradição do drama grego, o seriado protagonizado por Kevin Spacey não consegue acompanhar a rapidez, a complexidade e a sordidez dos “roteiros” reais. A concorrência é desleal. Nossos representantes parecem atores que estão encenando um drama que não nos diz respeito, seguindo um texto desconhecido e certamente não aprovado por nós. Ambos falam para o vazio e não conseguem criar laços com aqueles dos quais dependem: os cidadãos. A esperança é que, em breve, os atores no palco de Brasília recuperem a capacidade de representar o que seu povo realmente quer e deixem de lado essa tragédia mesquinha que resolveram encenar sozinhos.

*Diogo Antonio Rodriguez é jornalista e cientista social. Estuda representação política desde 2006 e é criador do site Me Explica? 

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