Gostar ou não de samba é decisão facultativa. Mas ruim da cabeça é quem se opõe ao fato de que, há quase um século, a cadência irresistível do gênero de matrizes africanas é trilha sonora para a vida de milhões de brasileiros. É assim, desde que, em 1917, foi lançado o primeiro registro fonográfico do gênero, o compacto de dez polegadas contendo Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida.
No entanto, fazer com que a maior expressão da nossa música popular seduzisse novos ouvintes e resistisse a modismos não foi mesmo tarefa fácil. A manutenção dessa rica tradição demandou o empenho de espécie de guardiões, e foi nessa seara que a partir dos anos 1960 nenhum outro artista brasileiro personificou a faceta de defensor do gênero com a mesma excelência do mestre Paulinho da Viola, que acaba de chegar aos 50 anos de trajetória musical.
Para celebrar esse meio século de preciosidades do cantor e compositor carioca nascido em Botafogo, a Universal, atual gravadora do sambista, acaba de reeditar dez dos 11 títulos originalmente lançados por ele, na extinta EMI Odeon, entre 1970 e 1979. Os álbuns foram compilados na caixa de CDs Ruas Que Sonhei. O lançamento também inclui volume extra com 13 registros, lançados apenas em compactos, trilhas sonoras de novelas – como o antológico tema de abertura de Pecado Capital – e em álbuns de outros artistas, entre eles o conceitual Brasil, do Guarani ao Guaraná (1968), no qual Paulinho divide a interpretação de Filosofia, com o autor Sidney Miller.
A gênese do Príncipe do Samba
Nascido em berço musical há 72 anos, Paulo César Batista de Faria é filho do violonista César Faria (1919-2007), que integrou o conjunto Época de Ouro, uma instituição do choro. Não por acaso, na casa em que cresceu, o menino Paulinho teve a paixão pelo samba, estimulada em reuniões que incluíam visitas regulares de gigantes como Pixinguinha, Canhoto da Paraíba e Jacob do Bandolim.
Na adolescência, por influência de sua tia Trindade, o carnaval de rua também bateu forte no jovem aspirante a músico e ele criou com amigos o bloco “Foliões da Rua Anália Franco” (endereço onde a tia residia, na Vila Valqueire, subúrbio carioca). As atividades do bloco culminaram na grande paixão de Paulinho, a Portela, para quem ele escreveu seu único (e pé-quente)samba-enredo, Memórias de um Sargento de Milícias, vencedor do carnaval de 1966.
Por intermédio do poeta Hermínio Bello de Carvalho, parceiro de inúmeras composições, no início de 1964 Paulinho passou a tocar profissionalmente no Zicartola, o lendário restaurante de Cartola e sua mulher, Dona Zica. Foi nesse contexto que o jovem sambista começou a apresentar suas primeiras composições para, entre outros ouvintes de primeira hora, figurões como Zé Keti (que juntamente com o crítico Sergio Cabral deu a Paulinho o codinome “Da Viola”), Anescar do Salgueiro, Nelson Sargento, Elton Medeiros e Jair do Cavaquinho. Foi também ao lado desses cinco bambas que, em 1965, como violonista do supergrupo A Voz do Morro, Paulinho debutou em LP, no primeiro volume do álbum Roda de Samba. Lançado pelo extinto selo Musidisc, o disco foi sucedido por um volume 2, naquele mesmo ano, e Os Sambistas, em 1968. A partir daí, Paulinho fez história com os 11 álbuns que lançou pela EMI Odeon.
Ressalvas perdoáveis
Repetindo expediente utilizado na primeira caixa que reuniu as obras desse período, lançada em 1996, todos os discos da nova compilação foram submetidos ao processo de remasterização. Desta vez, o trabalho ficou a cargo do engenheiro de som Ricardo Garcia. Ruas que Sonhei traz também textos do jornalista Vagner Fernandes, com a apresentação de cada um dos trabalhos. Curiosamente, apesar de pontuar, com propriedade, as qualidades de cada um dos títulos, Fernandes comete o equívoco de tratar a frase que intitula a caixa como sendo do samba que encerra o clássico Foi um Rio que Passou em Minha Vida (1970). Na verdade, Ruas que Sonhei é uma composição de Paulinho, lançada no compacto duplo de 1969 que também registra a obra-prima Sinal Fechado.
Além desse pequeno deslize textual, a caixa tem lacuna significativa: o álbum homônimo que registra a estreia solo de Paulinho. Também lançado pela EMI Odeon, em 1968, o disco não foi incluído no projeto, devido a um imbróglio para reproduzir a imagem original da capa.
Mas essas são ressalvas perdoáveis. Mesmo porque, faz quase 20 anos que essa primeira década autoral de Paulinho foi alvo de relançamento digital e nunca é demais lembrar que o recorte registrado em Ruas que Sonhei reúne clássicos, como A Dança da Solidão (1972), Nervos de Aço (1973), e os “gêmeos” Memórias Cantando e Memórias Chorando (ambos de 1976). Obras fundamentais de um compositor que sempre fez samba com “S” maiúsculo.
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