‘Ken Loach mudou minha vida’

O ator Dave Johns em "Eu, Daniel Blake"
O ator Dave Johns, em “Eu, Daniel Blake”

A vida de pelo menos um inglês o diretor britânico Ken Loach conseguiu mudar desde que, no ano passado, lançou seu politicamente incisivo Eu, Daniel Blake (em cartaz em São Paulo).

Antes de abraçar o protagonista do longa em que Loach critica o sistema de seguridade social britânico, Dave Johns era um comediante comum (se é que existem comediantes comuns), com algumas poucas participações em programas televisivos em seu extenso currículo. 

Ele conta com exclusividade a CULTURA!Brasileiros que, como Blake, tem origem proletária. Há cerca de 30 anos, deixara o ofício de pedreiro para dedicar-se a peças cômicas e stand-up comedies. Costumava esperar o Festival de Teatro de Edimburgo para ter plateias mais robustas.

Com a estreia de “Eu, Daniel Blake”, Johns se viu no centro de um amplo debate sobre o desemprego e o papel do Estado na Europa. Passou a ser procurado por jornais para debater o tema e tornou-se figura midiática no festival de Cannes, onde o filme recebeu a Palma de Ouro. Sua próxima peça vai falar justamente sobre essa virada, ele conta.

“Será sobre um cara comum que, de repente, passa a ter acesso ao tapete vermelho e a festivais internacionais”. Uma situação cômica que ele descreve é o momento em que, durante Cannes, viu-se em silêncio embaraçoso subindo de elevador ao lado do cineasta e ator Woody Allen.

“Com certeza, Loach é responsável por mudar minha vida”, diz o ator, por telefone, com sua voz áspera e sotaque do norte da Inglaterra. “Nunca trabalhei com alguém da importância dele. Depois vieram outros convites. Este ano, vou rodar mais um filme, agora de um grande estúdio de Hollywood, mas não posso adiantar nenhuma informação”, diz. Neste fim de março, houve o anúncio de que ele havia assinado contrato para trabalhar em um filme chamado Two Graves, que será dirigido por Harry Brown.

Johns conta que, para pegar o papel de Daniel Blake, teve de passar por uma série de testes. O jeitão rústico e as mãos calejadas chamaram a atenção de Loach, e a capacidade de improvisar com humor fechou a parceria. “Note que Daniel Blake, embora tenha muitos problemas, mantém seu senso de humor”, ele analisa, apontando o que poderia ser contraditório para um papel dramático. “Humor é uma forma legal de passar por momentos ruins”, afere.

O personagem em questão tem um problema de coração e seu médico recomenda que ele não volte a trabalhar. A burocracia do Estado cria uma barreira para que ele tenha acesso à pensão pública, o que o leva à penúria e à fome.

“Foi legal participar de algo com um conteúdo tão político e que pode mudar aquilo que está errado no sistema em vivemos”, diz. “Esse é um problema [seguridade social] que está em todo o mundo. Governos não podem ser cegos às pessoas que passam por momentos difíceis.”

John diz que “muita gente” acha que algumas cenas do filme são frutos de improviso, o que ele nega. Seu roteiro é pensado em detalhes, embora haja sim passagens por locais públicos povoados, o que contribui para um tipo de interpretação naturalista.

A diferença, explica Johns, é que Loach não apresenta o roteiro por completo aos atores.  “Ele nos dá algumas páginas por dia. Isso significa que você não pode ter uma ideia geral de como você vai interpretar seu papel. Não há discussão sobre como você deve interpretar. Você apenas vai e faz. É por isso que muitas vezes a cena parece improvisada”, conta.

Essa vocação para o desdobramento do instante em situações cênicas Johns carrega em toda sua trajetória. Ele conta que nenhum de seus stand-ups são escritos. “Nunca me sento em frente a um pedaço de papel em branco. Improviso em cima da ideia e vejo como é que ela pode funcionar. Quando funciona, faço a tentativa com plateia. E às vezes não funciona. Você faz, ninguém ri, e você tem que recuar”, conta. “O interessante de se basear na reação da plateia é que isso mantém o ator muito atento. Eu gosto de correr esse risco”, conclui.

A observação e as caminhadas pela rua são fundamentais para a composição de cada trabalho. Para ele, basta olhar ao redor, para notar o que a vida tem de cômica e interessante. Mesmo quando a tristeza está por perto.


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