No sétimo dia de 1976, há 40 anos, uma tragédia automobilística abreviou a vida do cineasta Luiz Sérgio Person, dias antes de ele completar 40 anos. Autor de clássicos do cinema brasileiro, como São Paulo S/A (1965) e O Caso dos Irmãos Naves (1967), entre a segunda metade dos anos 1960 e a primeira dos 70, Person passou como furacão pelo cenário cultural do País. Também ator, produtor, dramaturgo e diretor de teatro, foi figura singular, de brilho intenso e individual, em um tempo em que, não raro, os grandes talentos aglutinavam-se em ações conjuntas, como o Cinema Novo e o Cinema Marginal.
Em memória aos 40 anos de sua partida precoce, e em celebração aos 80 anos de seu nascimento, que seriam completados no dia 12 deste mês, o Itaú Cultural promove a partir de 20 de fevereiro a 28ª edição da mostra Ocupação na sede da instituição, situada na avenida Paulista. Abrangente, a exposição reunirá exibições de filmes, leituras dramáticas, dezenas de fotos de bastidores, documentos, roteiros originais, roteiros com anotações manuscritas, peças teatrais e correspondências. A mostra foi organizada e curada a partir de vasto acervo familiar aberto ao público com o apoio da viúva de Person, Regina Jehá, e de suas filhas com o diretor, Marina Person, também cineasta, como os pais, e Domingas Person, jornalista e apresentadora de TV.
Nascido em São Paulo em 1936, Luiz Sérgio Person iniciou o curso de interpretação para cinema no Centro de Estudos Cinematográficos de São Paulo aos 15 anos de idade. Naquele mesmo ano, 1951, participou da seleção para a peça O Massacre, de Manoel Robins. Classificado, foi proibido pelos pais de aceitar a convocação para o espetáculo, porque a peça seria encenada no Rio de Janeiro e obrigaria o adolescente a abandonar os estudos no Colégio São Bento. Três anos mais tarde, Person ingressou no curso de Direito da Faculdade do Largo São Francisco da USP. Em paralelo à formação de advogado – que não completaria, a despeito de ter frequentado o curso até o último ano –, desenvolve, ao lado de amigos como Antunes Filho, Cláudio Petraglia e Flávio Rangel, uma série de peças teatrais amadoras montadas, de forma itinerante, em casas de amigos.
Convidado por Antunes Filho, Person ingressa na TV Tupi em 1957. Na emissora paulistana, trabalha como ator, dirige estrelas, como Cacilda Becker, e assina a comédia Um Marido Para Três Mulheres, com Ronald Golias, Maria Vidal e Meire Nogueira. Em 1961, decide partir para Roma, para aperfeiçoar técnicas de seu maior interesse, o cinema. Na capital italiana, Person ingressa no curso de direção do Centro Sperimentale di Cinematografia – CSC e produz, em parceria com amigos do curso, o curta-metragem Al Ladro, aclamado nos festivais de Veneza e de Bilbao, na Espanha.
De volta ao Brasil em 1964, aprofunda o roteiro de São Paulo S/A, iniciado durante a estada de dois anos em Roma. Coproduzido com Renato Magalhães Gouvêa e Nelson Mattos Penteado, o filme estreia em 1965, causa alvoroço e desperta a atenção da crítica especializada sobre seu jovem autor. Narrado a partir de flash backs, São Paulo S/A conta a história do galanteador Carlos, executivo da nascente indústria automobilística do País, interpretado por Walmor Chagas. Atormentado por uma crise existencial, o protagonista simboliza as contradições éticas e humanísticas de um desenvolvimentismo veloz defendido, à revelia de tudo e de todos, com o propósito urgente de atenuar os atrasos socioeconômicos de um País seccionado à condição de terceiro-mundista. O filme conquista o Prêmio Governador do Estado da Comissão Estadual de Cinema de São Paulo, o Prêmio Saci, do jornal O Estado de S. Paulo, além de receber honrarias internacionais, como o Prêmio do Público da I Mostra Internacional do Novo Cinema de Pésano, na Itália, e o prêmio Cabeza de Palenque, do VIII Festival Internacional do Filme de Acapulco, no México.
Após o êxito de São Paulo S/A, Person envolve-se em projeto inusitado: um longa-metragem sobre a febre do iê-iê-iê intitulado SSS Contra Jovem Guarda. Escrito a seis mãos com Jean-Claude Bernardet e Jô Soares, o filme não sai do papel, mas permite que o cineasta inicie uma pesquisa rigorosa ao lado de Bernardet, para elaborarem o roteiro de O Caso dos Irmãos Naves. Naquele mesmo ano, 1966 – além de trabalhar na concepção de Panca de Valente (1968) –, acompanhado de Bernardet, Person deu início a uma série de viagens à Araguari, em Minas Gerais, a fim de registrar relatos de moradores sobre o episódio real que serviu de argumento para a criação do filme. Em entrevista à Brasileiros, a caçula Domingas comentou o segundo filme do pai: “Acho que há em O Caso dos Irmãos Naves o entusiasmo pelo discurso de uma carreira que ele abandonou e soube homenagear no filme”. Ela faz referência às sequências em que o ator John Herbert atua como advogado dos irmãos Naves. Depois, enfatiza a coragem do pai em denunciar os excessos da ditadura iniciada com o golpe civil-militar de 1964 ao relembrar episódio dos mais grotescos do Estado Novo de Getúlio Vargas: a tortura brutal e a condenação, por décadas, de dois inocentes, os irmãos Joaquim (Raul Cortez) e Sebastião (Juca de Oliveira), acusados da morte do sócio Benedito. “Ele soube contornar a censura e falar de diversas coisas. Do próprio caso dos irmãos Naves, mas de todo o resto que estava acontecendo”, diz Domingas. “O filme recebeu o certificado de censura, estreou nos cinemas de todo o País e foi muito bem recebido pelo público. Somente após a aclamação em cena aberta durante o Festival de Cinema de Brasília é que a cópia do filme foi apreendida. Mas já era tarde…”, relembra sua mãe, Regina, em entrevista por e-mail.
Assim como Marina, que teve de encarar a ausência do pai um mês antes de completar 7 anos, Domingas teve de, ao longo da vida, construir a imagem de Person a partir da narrativa da mãe e dos amigos da família. “As memórias ficam confundidas com as fotos, com aquilo que as pessoas contam. Acho que o intuito da Marina em fazer o documentário (em 2006, a cineasta, que acaba de lançar seu primeiro longa-metragem de ficção, Califórnia, dirigiu o filme Person) foi não só descobrir quem foi esse pai, mas também ver o que havia por trás desse homem. Encontramos um cara que deixou momentos marcantes na vida das pessoas.”
Em 1988, o Museu da Imagem e do Som de São Paulo realizou a Mostra Luiz Sérgio Person, primeira grande retrospectiva do cineasta. Além de São Paulo S/A e O Caso dos Irmãos Naves, foi possível ver ou rever Panca de Valente e Cassy Jones, o Magnífico Sedutor.
Nos últimos dias de vida, em parceria com o jornalista Ricardo Kotscho – colaborador de Brasileiros, desde o início da publicação –, Person atuava na carpintaria da peça Pegando Fogo. Ao longo de um ano Kotscho, sua mulher, Mara, e a primogênita, Mariana, tiveram encontros regulares com os Person aos sábados e domingos, no sítio da família, sediado em Itapecerica da Serra, município da região rural da Grande São Paulo. A aproximação entre cineasta e repórter deu-se por meio de Regina, que conheceu Kotscho quando ingressaram na primeira turma da Escola de Comunicação e Artes da USP. Ao ler uma reportagem de O Estado de S. Paulo sobre o Carnaval paulistano de 1975, assinada por Kotscho, Person comentou que aquele seria um bom parceiro para a criação de Pegando Fogo, espetáculo teatral que tinha o Carnaval como tema central. Regina aproximou-os e teve início a imersão criativa no sítio.
Em um hiato de produção cinematográfica iniciado em 1973, quando reativou com o amigo Glauco Mirko Laurelli espaço antes ocupado por um extinto cinema e deu ao novo polo cultural o nome de Auditório Augusta, Person envolvia-se, sobretudo, com espetáculos teatrais, como o inaugural El Grande de Coca-Cola, shows de jazz e atrações infantojuvenis. Com a distância entre o trabalho e o sítio, não raro, dormia no Auditório, até a fatídica noite de janeiro em que decidiu voltar para casa. No caminho, o cineasta parou em um bar e conheceu um cidadão que lhe ofereceu carona até o sítio. Ao lado do estranho, sofreu o acidente que ceifou sua vida.
“Ele tinha o péssimo hábito de andar sem documentos. Foi socorrido como indigente”, relembra Kotscho. “Quem descobriu que ele estava no Hospital das Clínicas foi Mara, minha mulher, que estava grávida da Carolina (filha caçula do casal). Foi uma tristeza enorme. Eu nunca havia feito dramaturgia e o que fazia com ele era coisa de jornalista. As ideias eram todas dele. Eu era uma espécie de redator do Person. Seu melhor personagem foi ele mesmo. O que mais me marcou em nosso convívio foi seu entusiasmo. Estávamos em 1975, um ano pesado, ano da morte do Vlado (o jornalista Vladimir Herzog, assassinado nos porões da ditadura), e mesmo assim ele pensava em fazer um novo filme. Do lado de fora do sítio o País pegava fogo. Do portão para dentro era outro mundo.”
Mesmo incapaz de tolher seu ímpeto criativo, para Regina os dias de chumbo atormentavam o ex-marido. “Ele sofreu muito ao ver grassar a perseguição política no meio artístico. Não era raro ouvir notícias de amigos e conhecidos exilados ou presos pela ditadura. Não era raro vê-lo cair em prantos por se sentir imobilizado diante das injustiças.” No relato da cineasta, autora de documentários como Bixiga Ano Zero (1971) e Guarani (1975), surge também a constatação de que por trás da erudição de Person havia um homem sensível ao lirismo popular. “Ele tinha profundas preocupações humanistas. Admirava filósofos como Jean-Paul Sartre, poetas como Dylan Thomas, escritores como Graciliano Ramos e John
Steinbeck, diretores de teatro como Antunes Filho e José Celso Martinez Corrêa, músicos como Chet Baker e Jorge Ben Jor, a quem convidou para ser padrinho de nossa filha Domingas. Escolheu o nome da Marina só pra poder cantar para ela a música do Caymmi. Era um artista irrequieto, existencialmente plugado em seu mundo. Pegando Fogo, a peça que escrevia com Kotscho quando morreu, era um desabafo sobre sua desesperança no futuro politico do País. O corolário da peça era: no Brasil os conflitos políticos acabam em carnaval. Espero que para 2016, ele tenha se enganado.”
Serviço – Ocupação Person
Itaú Cultural – Avenida Paulista, 149, São Paulo/SP
De 20 de fevereiro a 3 de abril
De terça-feira à sexta-feira, das 9h às 20h
Sábados, domingos e feriados, das 11h às 20h
Indicada para todas as idades
Entrada franca
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