A luz dos blues subterrâneos

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Dylan é um artista caudaloso, que mal pode conter a própria criatividade. Foto: Warning Abbot

Num gesto típico, Bob Dylan demorou seis meses para receber o Nobel de Literatura na Academia Sueca. Coincidentemente, esse foi o tempo para que duas editoras brasileiras lançassem parte de sua obra escrita. Letras (1961-1974), da Companhia das Letras, compreende todos os versos que o pai do folk-rock mu­­sicou nesse período, inclusive de canções que não saíram em seus álbuns oficiais. A tradução do excelente Caetano W. Galindo, no entanto, apresenta alguns problemas. Provavelmente por conta do tempo escasso que teve, considerando-se o tamanho monumental da empreitada.

Como o próprio Galindo explica no prefácio, ele optou por uma tradução literal. Isso para escapar da idiossincrasia dos versos. Ao cantar, Dylan enfatiza tônicas “erradas” e alonga ou encurta frases para não perder o ritmo. Não tinha e não tem a preocupação formal de quem escreve para o papel e não para o violão. Seria interessante, talvez, preocupar-se menos estritamente com o conteúdo, “garantido” pela edição bilíngue, e buscar maior proximidade com a dinâmica e as rimas criadas pelo bardo que hoje prefere o repertório de Sinatra às próprias canções. Talento para isso Galindo tem de sobra. 

Dylan é um artista caudaloso, que mal pode conter a própria criatividade. Quase todas as suas letras são de alto nível, mas há também muita bobagem no meio. Poucas são as que de fato se sustentam no papel como poemas. Uma exceção é Visons of Johanna, e, quem sabe, Desolation Row. O que não significa que as demais sejam “piores”. São, simplesmente, outra coisa. Precisam de acompanhamento. Não discuto o mérito do Nobel. Acho merecido. Ele é provavelmente o poeta/letrista mais influente do mundo. Mas o fato é que essas letras, com seu blend especial de surrealismo, crítica social, sátira política e textura beatnik, se tornam brilhantes quando vêm carregadas por sua voz. Roufenha, nasalada, de dicção confusa, desagradável, às vezes, é uma voz, porém, única. Nela, pode-se ouvir o canto negro dos blues, a entoação matter-of-fact do folk de protesto e o descaso rebelde e hedonista do rock. Das versões que fizeram de suas músicas, só mesmo Jimi Hendrix esteve à altura, até superando o mestre. Basta ouvir All Along the Watchtower.

Mas é de saudar a iniciativa, de qualquer modo. Como escreve Galindo, o volumoso livro é mesmo um ótimo companheiro para a audição dos discos. E que discos! Essa é possivelmente a melhor fase de Dylan. E ele tinha apenas 20 e poucos anos, o que é impressionante. Temos aqui as letras de algumas de suas obras-primas, compostas e gravadas entre 1965 e 1966 (!):  Subterranean Homesick Blues, Mr. Tambourine Man (Bringing Al Back Home), Like a Rolling Stone, Desolation Row, Ballad of a Thin Man (Highway 61 Revisited), Visions of Johanna, Stuck Inside of Mobile with the Memphis Blues Again, Just Like a Woman (Blonde on Blonde).

Tarântula

Da mesma fase – mais propriamente de 1965 – é o primeiro livro em prosa do jovem trovador de cabelos enrolados e nariz adunco. Ele já vinha flertando com o romance, mas só dessa vez considerou finalizado um livro em que os versos não estão ausentes, mas misturados a uma prosa anárquica, cheia de neologismos, referências culturais e imagens surpreendentes, quando não francamente engraçadas. O livro foi escrito sob a égide de Rimbaud e Lautréamont, poetas franceses apresentados a Dylan pelo amigo Allen Ginsberg (o maior dos poetas beats), como conta Valter Hugo Mãe em seu ótimo prefácio.  O delirante simbolismo do escritor de Uma Temporada no Inferno e as estrofes fantásticas do criador dos Contos de Maldoror informam cada página de Tarântula, editado apenas em 1971, depois de muitas especulações, um acidente quase fatídico de moto e cópias piratas vendidas a rodo. Outras claras influências são o mencionado Ginsberg, seus pares de movimento, Ferlinghetti e Burroughs, quando não Joyce. A verdade, no entanto, é que ler este livro curto, que frustrou consideravelmente seus editores da rica Macmillan, revela-se um exercício um tanto enfadonho. Há trechos deliciosos, inspiradores, mas o conjunto sugere um hermetismo sem direção. Melhor seria, se, como as letras, o livro, nesta boa edição da Planeta, tivesse um álbum para acompanhar, com Dylan emprestando suas cordas vocais a cada linha.

 


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