Nascido no agreste pernambucano e criado entre aboios, violeiros, emboladores e cordelistas, o cantor e compositor Alceu Valença, 67, teve sua primeira formação musical estreitamente ligada ao baião, ao xote e ao xaxado. Mas, ainda cedo, aos 10 anos de idade, mudou-se para Recife e ali conheceu o carnaval, o frevo, o maracatu, a ciranda, e “foi pego” pelo colorido das ruas e festas de Olinda. Se mais para frente ainda seria influenciado pelo samba, pelo rock, pelo blues ou mesmo pela música erudita, já estavam ali – do sertão ou do mar de Pernambuco – as raízes mais fortes de sua formação.
Durante os mais de 40 anos de carreira que se seguiram, incentivado principalmente pelo amigo Carlos Fernando (Carlinhos) – que capitaneou a partir dos anos 1970 o projeto de valorização do frevo Asas da América –, o cantor escreveu e gravou suas próprias composições do gênero, e deu grande contribuição ao carnaval do Brasil. As músicas, porém, estavam registradas em diferentes discos, produzidos por diferentes gravadoras e, a certa altura, Alceu decidiu que queria reuni-las (ao menos em parte) em um disco inteiramente relacionado ao universo do carnaval pernambucano.
O resultado é Amigo da Arte, gravado há dez anos e lançado só agora, por motivos diversos. O álbum cumpre seu propósito e traça um roteiro da festa de seu Estado, com suas alegrias e melancolias. “Cada música tem relação com o que eu vi e vivi”, observa Alceu. E esse é apenas um dos projetos em que o cantor está envolvido, já que em março lança também o DVD Valencianas, gravado com a Orquestra Ouro Preto, e segue em shows pelo País com seis propostas diferentes, à escolha do freguês: um de São João, um de carnaval, um mais erudito, um acústico, outro mais rock, etc. Em 2013, segundo o músico, foram 89 apresentações.
Em passagem por São Paulo no fim de fevereiro, Alceu recebeu a reportagem da Brasileiros e falou sobre música, censura às biografias, melhora na vida dos brasileiros durante o governo Lula e eleições. Disse ser “um amigo da arte” e não poupou quem faz concessões aos caprichos do mercado em busca de sucesso: “Eu não sou negociante”.
Brasileiros – Amigo da Arte é um disco sobre o carnaval, que você conheceu em Recife e Olinda e vivenciou desde cedo. Depois de quase 30 discos e mais de 40 anos de carreira, você considera que o álbum é um tipo de retomada de temas antigos da sua vida?
Alceu Valença – Primeiro, o tempo não tem tempo pra mim. O tempo é presente, passado e futuro, tudo ao mesmo tempo. Então, não me preocupo com modismo, com querer achar o novo pelo novo ou o velho pelo velho. Estou aqui, agora, tenho um passado e um futuro. Essas coisas convivem comigo. Bom, esse disco eu gravei há dez anos, mas primeiro vou falar um pouco a minha história pra você entender. Quem é Alceu Valença?
Brasileiros – Pois é, quem é Alceu Valença?
A.V. – É natural de São Bento do Una, no interior de Pernambuco. Ali, havia a civilização do couro, com uma cultura ibérica. Meu pai tinha uma fazenda, e eu via aboios, violeiros, emboladores, cordelistas, cegos arautos de feira… Isso está dentro de mim. Então, isso formou uma parte minha como artista, que é a parte Gonzagão, baião, forró, xaxado. Pois bem, depois eu fui para Recife, com 10 anos. Lá, vi o mar, vi o casario de Olinda, me emocionei. E vi o frevo sendo tocado na rua. E isso ficou em mim. Em Recife, morando na Rua dos Palmares, eu via da frente de casa os blocos de maracatu, de xangô, bandas de frevo tocando metais e blocos de frevo com as pastoras. Então, minha primeira formação cultural, musical, está aí.
Brasileiros – E o frevo te marcou?
A.V. – Não só o frevo, mas todos esses estilos do Carnaval. Por isso, esse disco é misto, diverso. As coisas têm que bater dentro de mim. Nesse sentido, tem uma coisa que eu gosto muito no rock’n’roll. O fato de que o cantor do rock – o que presta –, o cara gosta daquilo, vivencia aquilo. Pode se cortar no palco, e cantar cortado, é uma loucura. Tem também o cara que faz só pose, mas aí, a coisa não é da alma.
Brasileiros – Por falar em música que vem da alma, você já disse que nunca fez concessões musicais para se adequar ao mercado, que continua a ser amigo da arte. Escolher essa música para intitular o disco tem a ver com isso?
A.V. – Sim. Se você quer pensar primeiro no dinheiro, depois na arte, então é melhor ir vender farinha, leite em pó. Monte uma concessionária de carro, o que você quiser. Entendeu? Eu não sou negociante. Arte, na minha cabeça, é cultura, é uma expressão que o ser humano tira de dentro da alma. E quando não é assim, para mim é entretenimento, que também tem sua validade, mas que não é do mesmo tamanho.
Brasileiros – Nessa linha, você já fez duras críticas à música brasileira atual, dizendo que ela estaria muito comercial e americanizada. Lançar agora um disco com vários gêneros tradicionais brasileiros é também uma atitude, digamos assim, política?
A.V – Não, acho que eu fiz o disco que eu quis fazer. Não tem uma postura assim de pensar que vou invadir o mercado, de que as rádios vão se redimir do pecado de destruir a música brasileira real.
Brasileiros – A música brasileira vive um momento fraco?
A.V. – Não, acho que vive um momento sem plataforma. As rádios seguem os interesses dos donos. No Nordeste, tem caras que são donos de rádios e donos de bandas. O cara tem uma rádio e cinco bandas, o outro tem outra rádio e mais cinco bandas. Aí, um toca as bandas do outro. Para quem está fora disso, não sobra nada. Porque eu vejo, sim, algumas pessoas com muito valor, mas que têm uma dificuldade profunda de entrar no comércio. Está quase tudo a serviço de alguma coisa. A música sendo tocada sempre para agradar tal e tal segmento.
Brasileiros – Recentemente, na polêmica em torno das biografias, você declarou ter posição muito diferente da de alguns de seus colegas músicos, que se reuniram no Procure Saber, por exemplo. Você disse que proibir biografias seria como tapear e mascarar a história…
A.V. – Vamos supor que surja um político ladrão. Ladrão comprovado. Aí, você vai fazer a biografia dele, e tem de pedir a autorização. Como é isso? Assim, a história fica prejudicada. Evidentemente, pode existir um biógrafo que seja safado também, e que ele comece a mentir a respeito da minha pessoa. Agora, se ele mentir, se disser que me viu no Japão, sei lá, quebrando um bar todo depois de comer um sushi, ele vai ser processado, e vai ter de se haver com a justiça.
Brasileiros – Qual parece ser o verdadeiro medo dos artistas contrários à livre publicação de biografias, deixar de ganhar dinheiro ou ter sua privacidade invadida?
A.V. – Acho que tem gente que gosta muito de ganhar dinheiro. Que acha que tudo é ganhar dinheiro. Tem outros que é por medo da invasão de privacidade. Eu até compreendo estes, mas às vezes, é porque o cara teve comportamentos que não quer assumir. Bom, aí tem que buscar também um equilíbrio com o biógrafo, né? Mas, olha, já li tantas biografias brasileiras maravilhosas… Eu não gosto de proibição. Sou contra censura, já briguei por causa da censura, já fui censurado. Eu fui em cana na ditadura, um dia, no Dops do Recife. Não suporto censura. Agora, tenho direito de criticar, e eles têm o direito de me criticar também. O bom é que eu coloque meus argumentos, eles os deles, você o seu. Aí fica a história completa, e o público para julgar. Pode ser que eu que esteja errado. Acredito que não, mas podem me provar o contrário.
Brasileiros – Ano de eleições, difícil fugir do assunto. Você declarou voto a Lula anteriormente, e a Dilma na última eleição. Pretende votar nela novamente?
A.V. – Rapaz, eu estou olhando a política brasileira de um modo um pouco distanciado. Vejo essas alianças que a gente pensava que eram grandes alianças e, de repente, se acabam. Um político esculhamba o outro, xinga e tal, e, depois, estão ali, dando a mão. O esquerdista com o direitista, e o direitista com o esquerdista. O que eu acredito é que eleição deveria ser financiada pelo Estado. Você acha que alguém vai doar R$ 10 milhões para qualquer partido e não vai cobrar um troquinho depois, ou, pelo menos, uma simpatia do poder? Eu mesmo já financiei uma candidatura, e depois me dei conta que, no fundo, tinha interesses com isso. Foi Sérgio Bezerra, o famoso Sergio Cricri de Olinda. Ele era de uma associação de moradores e lutava muito por um “ordenamento” em Olinda. Porque as festas duravam a noite toda e os moradores acabavam presos dentro de casa. Chegou ao ponto de um menino, que trabalhava lá em casa, chorar dizendo: “Eu não aguento mais maracatu! Nem carnaval!” (risos). Essa barulheira, o dia todo. Entendeu velho? Porra, para quem está na festa está bom, mas para o vizinho… o cara não dorme! E se não dorme, não trabalha. Aí, Sérgio Cricri queria ser vereador, organizar essas coisas, esses horários. E eu dei para ele R$ 2.500.
Brasileiros – Mas quem diria, Alceu contra as festas?
A.V. – Não! É que em Olinda você não pode construir garagem nas casas, por que é tombado pelo patrimônio histórico. Aí, diante daquela bagunça, como é que o morador consegue chegar com o carro dele? Nem eu, nem o vizinho, nem ninguém podia entrar. Então, meu interesse era por conta do horário que eu voltava da casa da minha mãe, em Boa Viagem (Recife), e tinha que fazer cera, esperar para entrar… (risos)
Brasileiros – E deu certo? Cricri foi eleito?
A.V. – Não, ele perdeu! (risos)
Brasileiros – Bom, mas voltando às eleições deste ano, você não deve declarar voto então? Tem a ver com o Eduardo Campos estar no páreo?
A.V. – Estou observando. Eu acho que Dilma vai bem. Não tem sido a pujança que teve no governo Lula, mas, também, igual ao governo dele, não teve nenhum igual. Eu votei em FHC também, mas não tem comparação. As pessoas criticam muito o Bolsa Família. Mas, repare, quase sempre é um rico que faz isso. Um dia desses encontrei um amigo meu rico, e a empresa dele estava fraquinha. Aí, ele foi pedir dinheiro no BNDES, disse que lá os juros são baixinhos… E um ano antes ele tinha me falado que o Estado não devia interferir em nada na economia e tal. Aí, eu falei pra ele: “Tá vendo! BNDES, às vezes, é o Bolsa Família do rico” (risos). Mas sobre Eduardo, que você perguntou, tenho uma relação diferente. Meu irmão é casado com a tia dele. E eu conheço ele de muito tempo. Sim, o cara é um puta administrador. Em Pernambuco, fez uma verdadeira revolução. Claro, apoiado pelo governo Lula. Mas teve muita gente em outros Estados que teve apoio do governo Lula e não fez o que ele fez.
Brasileiros – A vida no Nordeste, especialmente no sertão, mudou muito?
A.V. – Eu ando o Brasil todo. Em São Bento do Una, por exemplo, eu chegava lá de carro e vinham umas 40 crianças pedir dinheiro. E não porque era eu, faziam isso com qualquer carro. Agora, há uns cinco anos, voltei lá e ninguém pediu um tostão. Ou seja, aquele dinheiro que vai para lá, mesmo que pouco, os comerciantes me disseram, gerou uma circulação, e tudo ficou melhor. Tem uma dignidade mínima.
Brasileiros – Manifestações, black blocs… A política feita na rua, você tem acompanhado?
A.V. – Toda sociedade tem obrigação, dentro de uma democracia, de se expressar. Mas acho que a violência não é legal. Existem, nos protestos, pessoas que são anarquistas, e têm o direito de ser. Tem outros que não são políticos, que são pagos para ir ali e se infiltram em meio aos que têm uma ideologia. Aí, junta com a polícia, que é despreparada… É uma confusão. Mas acho que tem de se discutir muito política, falar de política, conversar sobre política e raciocinar. Acho que o raciocínio do brasileiro ainda tem uma coisa que é muito reticente no final, que vem do tempo da ditadura. Um papo assim: “Ah, pode ser, mas pode não ser… É, mas não é”. Por exemplo, uma pichação. Tem pichação que você olha e sabe que tem um artista ali. E outra tem só um traço, que é um cara demonstrando que existe. Mas aí não é arte!
Brasileiros – Parece que nisso você não é reticente. Quer dizer, na música também dá para definir o que é arte o que não é?
A.V. – Claro que dá! Senão vamos acabar com todos os conceitos. Tudo é tudo e nada é nada. Senão política seria tourada, e tourada seria filme. Acho que o Brasil perdeu a capacidade de conceito. Acho que a questão da propaganda o tempo todo, que você anda na rua e vê um outdoor atrás do outro, o cara acaba perdendo a capacidade de pensar, sendo manipulado o tempo todo. Tá entendendo?
Brasileiros – Que dica você dá para as cidades que estão promovendo cada vez mais o carnaval de rua pelo País afora?
A.V. – Façam como Olinda, sejam absolutamente genuínos, sem começar com essa coisa de patrocínio aqui e ali. Então, a dica é: cuidado para não virar um outdoor!
Deixe um comentário