A ação do tempo é um dos fatores decisivos para atestar grandiosidade e atribuir atemporalidade a artistas inventivos como a banda paulistana Os Mutantes, inicialmente um trio de rock nascido da cisão de um conjunto anterior, chamado O’Seis, e do encontro dos irmãos Arnaldo Baptista e Sergio Dias, dissidentes do grupo, com a cantora Rita Lee Jones, namorada de Arnaldo. Lá se vão quase 50 anos desde que a banda da Pompeia, bairro da zona oeste da capital paulista, colocou de pernas para o ar as convenções da MPB ao criar suas primeiras composições e ajudar a definir a sonoridade tropicalista ao lado de Gilberto Gil, na defesa de Domingo no Parque durante o histórico Festival da Record de 1967.
À prova do tempo, o legado anárquico e irreverente dos Mutantes despertou o culto apaixonado de sucessivas gerações de ouvintes espalhados ao redor do mundo e continua vivo. Com dois lançamentos de peso – um livro de fotografias exclusivas e uma caixa com sete álbuns em vinil –, o “eterno retorno” da banda acaba de ganhar novo capítulo. Mas antes de detalhar as boas-novas, ao leitor menos afeito à trajetória do grupo vale relembrar alguns episódios que ajudaram a construir a mítica em torno da banda.
Na primeira metade dos anos 1980, depois de mais de uma década fora de circulação, os cinco primeiros álbuns dos Mutantes (os LPs homônimos de 1968 e 1969, A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado, Jardim Elétrico e Mutantes e Seus Cometas no País dos Baurets) foram reeditados em vinil, por iniciativa de Luiz Calanca, dono da gravadora independente paulistana Baratos Afins e da loja de discos de mesmo nome. Com tiragens limitadas, os bolachões logo passaram a ser disputados por colecionadores.
Em 1989, a gravadora Eldorado colocou na praça o LP Sanguinho Novo… Arnaldo Baptista Revisitado, com repertório que incluía clássicos dos Mutantes e da carreira solo de Arnaldo, o principal compositor da banda, reinventados por artistas da cena independente daquele final de década, como Ratos de Porão, Sepultura, Akira S e As Garotas que Erraram, Sexo Explícito e Três Hombres.
Nos anos 1990, a idolatria aos Mutantes atravessou fronteiras e ganhou nova dimensão após a vinda do Nirvana para o Brasil em janeiro de 1993, ocasião em que o grupo norte-americano fez duas apresentações polêmicas, em São Paulo e no Rio de Janeiro, no festival Hollywood Rock. Assim que chegou à capital paulista uma das primeiras iniciativas de Kurt Cobain foi contatar a Baratos Afins. Ciente das reedições feitas pela gravadora, o carismático líder do Nirvana, que daria fim à própria vida no ano seguinte, pretendia assegurar cópias dos cinco álbuns. Os discos foram entregues por Calanca, que mantinha uma reserva de cópias, em um quarto do hotel Maksoud Plaza. Cobain ainda pediu a ele a gentileza de entregar um bilhete manuscrito ao ídolo Arnaldo, que até hoje reside em Juiz de Fora, Minas Gerais.
A paixão de Cobain pelos Mutantes teve início com a recomendação entusiasmada feita por seu amigo Bill Bartell, baixista da banda punk White Flag. Deslumbrado com o que ouviu, Cobain passou a difundir a grandiosidade da descoberta no boca a boca com os amigos e nas entrevistas que concedia em grandes veículos da imprensa musical estrangeira.
Movimento replicado por grupos como Belle & Sebastian, que incluiu em seu repertório uma versão de Minha Menina (canção de Jorge Ben Jor gravada com exclusividade pelos Mutantes), e o compositor Sean Lennon, filho de John Lennon e Yoko Ono, que assim como Cobain equipara os Mutantes às maiores bandas do psicodelismo sessentista, grupos que, apesar de extintos, também resistem ao passar das décadas, como Jefferson Airplane, Grateful Dead, The Jimi Hendrix Experience, Cream, Love, The Pretty Things, The Seeds e Chocolate Watchband.
Mitos e verdades
Para os fãs de primeira ou última hora que vivem à caça de novidades sobre Os Mutantes, o nome da fotógrafa Leila Lisboa tornou-se familiar no início deste ano quando foi replicada, em redes sociais como Facebook e Twitter, a informação de que ela procurava apoio de editoras para publicar em livro um tesouro documental que guardava a sete chaves: um sem-número de fotos clicadas entre 1970 e 1973, período em que a banda partiu da expansão de seu núcleo original (com a inclusão do baterista Dinho Leme e do baixista Arnolpho Lima, o Liminha) até chegar à exaustão criativa que culminou na saída de Rita Lee do grupo.
No final de 1969, Leila e Liminha foram apresentados por uma amiga comum, a guitarrista Lucinha Turnbull, que, após a saída de Rita dos Mutantes, formaria com ela a dupla Cilibrinas do Éden. Apaixonados, em um mês Leila e Liminha foram morar juntos. Tinham apenas 18 anos, mas o relacionamento durou quase quatro anos e fez de Leila espécie de sexto elemento na rotina da banda.
Como, desde os 15 anos, trabalhava em um estúdio fotográfico, onde aprendera inclusive a revelar as próprias imagens, Leila estava sempre com uma câmera profissional a tiracolo e passou a fazer registros despretensiosos do grupo. Clicava ensaios, shows, a rotina na estrada e a intimidade do convívio festivo entre os amigos da banda, naquele início de década em que o desbunde e as proposições libertárias da contracultura eram alentos de boa parte da juventude brasileira que buscava dispersar a sombra nefasta da ditadura e do AI-5.
Em entrevista à Brasileiros, no entanto, Leila relativizou a aura de porra-louca atribuída à banda: “Esse negócio de muita droga e muito amor livre é papo furado. Éramos bobinhos, muito jovens. Vivi tudo aquilo e posso afirmar que existem muitos mitos e exageros sobre os Mutantes”, diz.
A visão privilegiada de Leila sobre o período de glória da banda fica patente não só nas imagens de A Hora e A Vez – Imagens Inéditas dos Primeiros Anos dos Mutantes (Realejo Livros, 210 páginas), mas também nos breves relatos deixados por ela na abertura dos capítulos, que incluem os seguintes registros feitos em São Paulo: um encontro da banda e amigos na casa de Suely Chagas, ex-vocalista do O’Seis; uma apresentação no Clube Sírio; uma visita aos amigos hippies Gilberto e Paula Sri, donos de uma casa à margem da represa Guarapiranga, que, por alguns meses, serviu de espaço de ensaio para a banda; um show no Parque da Água Branca em que Leila utiliza, pela primeira vez, filmes coloridos; uma apresentação no Teatro Oficina, na estreia do projeto Revolisom; e ensaios da banda no sítio em que o grupo residiu na Serra da Cantareira.
Os dois capítulos que encerram A Hora e A Vez são emblemáticos em evidenciar o início da derrocada da banda, que, de forma trôpega, chegaria ao fim em 1976, liderada por Sergio após o voo solo de Arnaldo, iniciado com o clássico álbum Lóki? (1974), cuja capa e contracapa também foram fotografadas por Leila.
Em fevereiro de 1973, os quatro remanescentes fizeram em Cambé, no Paraná, o primeiro show após a saída de Rita, durante o Festival Colher de Chá. Três meses depois, Leila registrou parte das atrações do festival Phono 73, realizado ao longo de três dias em maio de 1973, em São Paulo, com a presença de estrelas da gravadora Phonogram, como Jorge Ben Jor, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Luiz Melodia, entre outros, e um aguardado show dos Mutantes em que a banda prometia oferecer ao público uma usina sonora de 3 mil watts. Na contramão dessa parafernália, municiadas apenas de violão e voz, Rita e Lucinha subiram ao palco horas antes para apresentar as primeiras composições da Cilibrinas do Éden. A reação negativa do público à nova fase da ex-mutante, diz Leila, fez desse episódio o único momento triste de suas aventuras de fotógrafa da trupe de amigos. “A apresentação das Cilibrinas foi linda, mas para os fãs era algo muito pobre em relação ao espetáculo que os Mutantes apresentariam depois. As fotos que fiz da Rita e da Lucinha deviam ter lágrimas, porque chorei do começo ao fim do show. A plateia vaiou a Rita o tempo todo.”
Com propriedade, Leila também discorre sobre os motivos da ruptura: “No dia do anúncio da separação, eu estava com eles. Para mim, algo que aconteceu de forma gradual, e que envolvia questões estéticas. Os meninos estavam pirando em bandas como Yes, Gentle Giant e Jethro Tull e foram aos poucos se encaminhando para esse rock progressivo, enquanto a Rita defendia um rock mais pop. Foi uma grande tristeza, porque todo mundo se amava, esse amor não havia acabado, mas a vida nos separou”, lamenta.
A materialização do sonho de Leila de compartilhar suas fotos com fãs da banda chancela a ideia de atemporalidade da música produzida pelos Mutantes. Depois de várias recusas de diversas editoras, o livro foi publicado, com tiragem de 1,5 mil cópias, por meio de financiamento coletivo. Realizada ao longo de dois meses na internet, a campanha possibilitou a arrecadação de R$ 70 mil e contou com a colaboração de 500 fãs da banda.
Outro exemplo do apelo atemporal da banda é o lançamento da caixa de LPs Os Mutantes lançada pela Polysom, a única fábrica de vinis em atividade no País. A edição de luxo inclui os cinco álbuns reeditados nos anos 1980 pela Baratos Afins e a primeira edição em vinil de Tecnicolor, registro ao vivo de uma apresentação feita em Paris em novembro de 1970, mas que somente veio à tona em 2000, após o pesquisador Marcelo Fróes descobrir a relíquia nos arquivos da gravadora Universal. Além dos seis álbuns, a caixa também reúne a coletânea inédita, Mande um Abraço Para a Velha, com registros raros, como gravações ao vivo com Caetano Veloso e Gilberto Gil, e faixas do álbum A Banda Tropicalista do Duprat, em que Rita, Arnaldo e Sergio retribuem as colaborações essenciais do maestro Rogério Duprat, autor de arranjos memoráveis dos quatro primeiros álbuns, em faixas antológicas como Panis Et Circenses, 2001, Não Vá se Perder Por Aí, Senhor F, Algo Mais, Qualquer Bobagem, Baby e Dia 36, canções que, à primeira audição, atestam a modernidade imperecível dos Mutantes.
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