Negativos “negativos”

All photographs © LI Zhensheng (Contact Press Images) Li Zhensheng tira um autorretrato com uma Rolleiflex em 17 July 1967.

Publicado em 2003, pela editora britânica Phaidon Press, Red-Color News Soldier (inédito no Brasil, em tradução livre Soldado Vermelho da Imprensa) revelou ao ocidente a face obscura da Revolução Cultural Proletária liderada por Mao Tsé-Tung, fundador do Partido Comunista e proclamador da República Popular da China, em 1949.

Mas o livro, de autoria do fotógrafo chinês Li Zhensheng, também trouxe à tona um fascinante personagem que, a despeito de ser considerado, hoje, um dos mais importantes fotojornalistas do século 20, por quase duas décadas manteve-se anônimo como mero colaborador ordinário da imprensa maoista. Em segredo, Zhensheng guardou no assoalho de seu diminuto apartamento, mais de 30 mil negativos, envelopados e identificados por ele, que continham imagens de louvação ao regime, mas também de inquestionáveis excessos cometidos pela revolução. Segundo estimativas, somando execuções, suicídios e mortes por motivos torpes como a fome, mais de 2 milhões de chineses sucumbiram durante os dez anos de Revolução Cultural (que teve fim em 1976, com a morte de Mao, em 9 de setembro daquele ano). Zhensheng não documentou todas essas tragédias, lógico, mas ficou atormentado com o “pouco” que testemunhou. Sentiu-se no dever ético e humanitário de registrar aquilo que fosse possível.

Para quem assistiu ao clássico A Chinesa, de Jean-Luc Godard (1967), é patente o fascínio que a Revolução Cultural Proletária despertou na juventude do Ocidente, naqueles primeiros dias de implantação do regime, e às vésperas das insurreições que assolariam o mundo a partir de maio de 1968. Tal fascínio é tratado de maneira irreverente e provocativa por Godard que, mais maduro, enxergava além da juventude retratada por ele em A Chinesa e antecipou equívocos e excessos cometidos pela revolução.
Mas, convenhamos, a sagacidade de Godard era exceção naquele contexto turbulento.

No “olho do furacão”, tal percepção premonitória de que a revolução não era assim tão louvável, era mesmo difícil de ser absorvida pelo senso comum, pois, como em todo regime totalitário, seja ele de direita ou de esquerda, a estratégia de poder defendida pelo Grande Timoneiro (como também era chamado Mao Tsé-Tung) tinha como principal artifício de legitimidade e de comprovação da eficácia de suas políticas sociais um forte aparato de propaganda. A orientação expressa de exaltação à figura de Mao, e às políticas da Revolução Cultural Proletária, impregnava ambientes oficiais e domésticos. Imprensa e população deveriam não apenas enaltecer o comando de Mao, como também delatar eventuais traidores da revolução. Foi nesse cenário que Zhensheng, recém-formado em cinema, na Escola de Cinema de Changchun, mas sem a menor perspectiva de trabalhar na área, por limitações financeiras, começou a atuar como fotojornalista do Diário de Heilongjiang, em 1963, aos 23 anos. O jornal era sediado em Harbin, capital da província que dá nome ao periódico, e um dos mais importantes veículos de imprensa do extremo noroeste chinês, à época, com uma tiragem de 270 mil exemplares.

Mesmo integrando um veículo oficial do Partido Comunista, por não ter origem militar, operária ou camponesa, Zhensheng, filho único de um pai que ensinou a ele a paixão pelo cinema (sua mãe morreu quando ele tinha apenas três anos), teve de integrar programa do Movimento de Educação Socialista, onde foi submetido a dois anos de reeducação no campo, além de ser obrigado a ler diariamente o Pequeno Livro Vermelho (artefato de propaganda maoista, fortemente utilizado – e ironizado – no filme de Godard, que trazia ensinamentos e frases de exaltação ao Grande Timoneiro). Somente em março de 1966, dois meses antes do início da Revolução Cultural, é que o fotógrafo retornou a redação do Diário de Heilongjiang e começou a ir a campo, em princípio tocado pelos nobres ideais de ajudar a reconstruir e tornar mais igualitária a sociedade de seu país.

Mas o encantamento de Zhensheng com as intenções revolucionárias de Mao, como o de muitos compatriotas seus, durou pouco. O estopim para a percepção de que o regime cometia excessos injustificáveis deu-se, primeiro, em seio familiar. O fotógrafo namorava moça de uma província distante e mesmo tendo com ela encontros esporádicos nutriam verdadeira e recíproca paixão. Pretendia se casar com ela, mas um dia recebeu visita da moça, que chegou decidida a romper a relação. Acusada de trair a revolução por ter sido descoberta proprietária de um pequeno pedaço de terra, a mãe da moça, que até então era tida como professora exemplar, decidiu se matar, antes de ser exposta à humilhação pública e do próprio Estado dar cabo de sua vida. Na primeira tentativa de suicídio, um enforcamento mau sucedido resultou em um desmaio repentino. Consciente, horas depois, a mulher deu fim a própria vida, esmagando a cabeça em uma pedra oculta em seu banheiro. Como, consequentemente, sua futura noiva tornar-se-ia também proprietária e, portanto, passiva de ser condenada pelo regime, a moça preferiu romper com ele e abrir mão do amor que nutriam um pelo outro, para não atrapalhar o futuro profissional do recém declarado fotógrafo.

All photographs © LI Zhensheng (Contact Press Images) Acusado de ter o cabelo parecido com o de MAO, Li Fanwu’s, governador da província de Heilongjiang, teve seu cabelo brutamente raspado e teve de curvar-se por horas diante da Guarda Vermelha. Harbin, 12 September 1966 Setembro de 1966.

Pouco depois, outro incidente trágico, narrado por Zhensheng em palestra realizada por ele na última segunda-feira, 16 de setembro, no Cine Livraria Cultura, em São Paulo, o fez tomar a decisão radical de secretamente registrar os excessos do regime, colocando em risco a própria vida, caso fosse descoberto: “Me casei com outra moça e antes de ir até a cidade dela, para conhecer meus sogros, o irmão dela nos mandou uma carta dizendo que seu pai também havia se matado. Ele era médico, cuidava da população carente da região rural, mas foi considerado antirrevolucionário por seu perfil intelectual. Ele não resistiu ao sofrimento a que foi submetido. Era levado para um forno e, depois, os vermelhinhos (como eram chamados os soldados maoistas) o jogavam na neve, nu. Iam e voltavam, várias vezes, fazendo com que ele sofresse vários choques térmicos. Não bastasse todo esse tratamento desumano, devo acrescentar o seguinte: depois que ele se matou, todos os familiares ainda tiveram de declarar publicamente que não eram da mesma linhagem ideológica do falecido, caso não quisessem ser também perseguidos e condenados. Aliás, entre os intelectuais chineses havia a frase: ‘Quando a revolução abre a boca e devora nossos familiares, será que devemos continuar amando essa revolução?’. Um mês após o falecimento do meu sogro, também fomos considerados antirrevolucionários, levados, eu e minha esposa, a um campo de concentração. Esse foi o momento decisivo, para mim, a gota d’água.”

Meses antes de partir com a mulher para essa nova estadia de dois anos de árduos trabalhos no campo, Zhensheng testemunhou outros três momentos divisores para sua decisão de, privilegiadamente infiltrado, também registrar excessos do regime: o flagrante fotográfico da destruição injustificável de um milenar templo budista e a humilhação pública dos monges; cômico, não fosse trágico, a condenação a 18 anos de prisão, de um editor do jornal, por ter sido delatado pela própria mulher de ter ofendido a honra de Mao – o homem utilizou, como era comum, um jornal como fralda, mas teve o descuido de não perceber que as fezes da criança impregnaram um retrato do Grande Timoneiro; e a execução de sete homens e de uma mulher, que foram mortos, de mãos atadas e de joelhos, com tiros fulminantes na nuca.

Em 1982, Zhensheng mudou-se com a mulher e o filho único para a capital chinesa e assumiu o cargo de professor de Fotografia do Departamento de Jornalismo da Universidade de Pequim. Manteve seu segredo por mais seis anos. Em 1988, convidado a integrar uma exposição coletiva, trouxe à tona cerca de 20 imagens das coberturas que fez para a Revolução Cultural, muito embora, naturalmente, nenhuma delas com conteúdo negativo. A exposição foi vista pelo editor britânico Robert Pledege, da Phaidon Press, que ganhou a confiança do fotógrafo e foi o primeiro a descobrir seu segredo. Do total de 30 mil negativos, cerca de 3 a 5 mil deles, estimava Zhensheng, traziam imagens com maior conteúdo de denúncia. Pledege acatou as orientações do fotógrafo, que exigiu que todas as fotos de Red-Color News Soldier tivessem seus personagens devidamente identificados. Trabalho que demandou 25 anos de pesquisas até que, em 2003, o livro pudesse ser, enfim, publicado e revelado ao mundo.

 

A mediadora Dorrit Harazim, croata e li Zhensheng, na palestra realizada na livraria Cultura, em São Paulo.

Mediadora da palestra realizada em São Paulo, a jornalista e documentarista Dorrit Harazim, croata, radicada no Brasil, defende um papel singular para o importante legado histórico deixado por Zhensheng: “A obra dele acabou sendo a única narrativa visual completa da Revolução Cultural Proletária. Há 50 anos temos um relato do que nós acreditávamos que era a revolução, mas esse relato era apenas um recorte positivo. Talvez ele seja o único repórter fotográfico que foi ao front sem ter opção. Se pegarmos a história da fotografia de guerra, desde a Guerra Civil Americana, a primeira com registro fotográfico, os grandes nomes da fotografia de conflitos armados, e de tensões sociais, sempre tiveram a opção de sair de campo. Li não podia sair da China, tampouco abandonar a Revolução Cultural.”

Mas a importância de Li Zhensheng vai além dessa faceta de revelar um lado sombrio da história recente chinesa. Ele foi, sobretudo, um fotógrafo visionário e perspicaz. Acumulou os 30 mil negativos, guardando dois a três deles – comumente reservados por precaução para cobrir alguma eventualidade no trajeto – a cada novo retorno de campo para a redação. Adaptando os limitados conhecimentos fotográficos que teve cursando cinema, Zhensheng obteve resultados inimagináveis para os parcos recursos técnicos que dispunha – uma câmera Rolleiflex, com lente fixa de 80 mm, e uma Leica M3. “Fotógrafos do mundo todo passaram a descobrir não apenas o historiador, mas o verdadeiro absurdo que é a técnica e o conhecimento fotográfico de Li Zhensheng. Os resultados que ele obteve com o pouco que dispunha são impressionantes. Basta dizer que ele não tinha fotômetro, não tinha lentes zoom e dispunha de parcos recursos de flash”, explica Dorrit.  

No site red-colornewssoldier.com é possível conhecer maiores detalhes de Red-Color News Soldier, que continua proibido na China e sem previsão de lançamento no Brasil. No próximo sábado, 21 de setembro, das 19 horas às 20h30, a série Encontros/Entrevistas do festival anual de fotografia Paraty em Foco, na cidade litorânea do Rio de Janeiro, promoverá a palestra O Guardião da História, com a presença de Zhensheng. Confira aqui a programação do festival. 
O fotógrafo veio ao Brasil a convite do festival, do Instituto Moreira Salles (IMS) e da revista Zum, veículo semestral de fotografia, publicado pelo IMS.  


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