David Hare - Foto: Walter van Dyck
David Hare – Foto: Walter van Dyck

Nada é simples no universo ficcional de David Hare, um dos maiores dramaturgos britânicos da atualidade. Suas peças misturam drama, comédia e comentário político na mesma medida. Buscam, como ele mesmo diz, não apenas refletir a sociedade, mas representá-la. Hare acredita no aspecto essencialmente moral do teatro, considerando-se parte do que se convencionou chamar de State of the Nation, tradição britânica nascida com as peças históricas de Shakespeare, que passa pela crítica social de Bernard Shaw e a rebeldia de John Osborne.

Não há assunto importante para a vida pública e íntima das pessoas que não caiba em sua dramaturgia, marcada por diálogos afiados, relações complexas, fortes personagens femininas (Judi Dench e Meryl Streep são algumas das grandes atrizes que encarnaram suas personagens) e um peculiar misto de desencanto e esperança. O espectro é vasto: ele já tratou da privatização das ferrovias na Inglaterra (The Permanent Way, 2003), da revolução Chinesa (Fanshen, 1975), da confusão diplomática antes da Guerra no Iraque (Stuff Happens, 2004), da Igreja Anglicana (Racing Demon, 1990), do sistema carcerário (Murmuring Judges, 1991) e da crise financeira (The Power of Yes, 2009).

Com The Absense of War (1992), inovou, fazendo uma polêmica peça-documentário, baseada em sua experiência nos bastidores da campanha do trabalhista Neil Kinnock ao cargo de primeiro-ministro, quando teve livre acesso às reuniões de estrategistas e assessores. “Era esperado que ele ganhasse, mas ele perdeu em circunstâncias dolorosas. Sentiu que havia falhado porque milhões de pessoas olharam para ele e disseram: acho que não. Obviamente, como um dramaturgo que também já falhou diante de muitas pessoas, eu me identifiquei com ele. Achei nobre ele assumir o fracasso.” Mas ao ver o espetáculo, o socialista Kinnock, que era seu amigo, mandou uma carta a ele dizendo que tinha detestado, não porque fosse ruim, mas porque era tudo verdade! Outro que viu foi um jovem ambicioso chamado Tony Blair. Saiu do teatro disposto a não cometer os mesmos erros e criou o New Labour, aproximando-se da economia de mercado. Deu no que deu, e em 1998 Hare montou, no National Theatre de Londres, a peça Gethsemane, satirizando a arrecadação de fundos para o novo trabalhismo de Blair. Fechando o ciclo, The Absense of War foi encenado novamente este ano, antes das eleições na Grã-Bretanha. “Não é incomum na Inglaterra que muitas de minhas peças sejam comentadas não na seção cultural, que lá é relegada a último plano, mas nos editoriais de política, que ficam logo no começo do jornal. O que é muito estimulante para mim, essa ideia de que um produto cultural possa se tornar assunto de discussão em toda parte”, disse, na coletiva oferecida em Paraty, durante a Flip.

Nada disso, é claro, teria valor se Hare não conseguisse expressar suas opiniões sem apelar a maniqueísmos, sempre reservando espaço para as interações emocionais entre os personagens. Em A Map of the World (1982), por exemplo, que se passa em um encontro da Unesco para discutir a pobreza no mundo, um escritor reacionário (que lembra muito V.S. Naipaul), diz algo que Hare certamente diria: “A arte da escrita consiste em descobrir em que você acredita”. Na peça, o escritor famoso entra em duelo intelectual com um jovem correspondente idealista não apenas para fazer valer seus pontos de vista, mas também pela atenção de uma bela atriz norte-americana, que se dispõe a ficar com o melhor debatedor. A situação, envolta em aparente cinismo, acaba revelando sentimentos inesperados da parte dos três personagens.

Ainda que seu trabalho possa ser qualificado como realista, procura sempre criar uma metáfora universal, “como nas peças de Eugene O’Neill ou Harold Pinter”. Mas não gosta do teatro de Beckett: “Ele foi um homem extraordinário. Acho fascinante que tenha lutado na Resistência Francesa. E adoraria que ele tivesse escrito uma peça contando essa experiência. Críticos pretensiosos dizem que Esperando Godot é essa peça. Mas acho seu trabalho tão refinado que beira o abstrato, e de um modo que não me toca. E eu discordo dele quando disse que a quantidade de lágrimas no mundo é constante. Eu acredito no oposto. Acho que há muito sofrimento desnecessário e nas minhas peças há sempre gente lutando contra isso.”

Cinema
Filho de marinheiro, que preferia o mar ao lar, David Hare não se restringiu ao convés dos palcos, onde trabalhou como diretor, dramaturgo e ator (no monólogo Via Dolorosa, de 1998, sobre a tensão entre israelenses e palestinos). Também dirigiu e escreveu vários filmes, chegando a ser nomeado para o Oscar pelos roteiros de As Horas (2002) e O Leitor (2008). Adaptou com sucesso sua peça Plenty para o cinema em 1978, que justamente mostra uma heroína da Resistência Francesa, como Beckett. Recusou escrever o roteiro de a Dama de Ferro, para não glamourizar Margaret Thatcher, a quem, obviamente, não suporta. Quanto ao convite para roteirizar Guerra nas Estrelas 4, seu raciocínio foi o seguinte: “Será que eu terei de ver o 1, 2 e o 3?”. Em uma de suas mais recentes incursões no ramo, que declarou ter aprendido com Louis Malle, passou três anos tentando fazer uma versão de As Correções, romance de Jonathan Franzen: “Foram 23 rascunhos. Mas aí decidiram que era infilmável e resolveram transformar numa série para a HBO”, conta, frustrado. Mas nem a série, com roteiro do próprio Franzen e do diretor Noah Baumbach, vingou – o piloto foi considerado péssimo. Enquanto isso, Hare continua a reinar nos melhores teatros de Londres e da Broadway em Nova York.


Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.