O nosso Macunaíma em Veneza

“Eu sou Macunaíma”, afirma Ismael Ivo, 55 anos, em uma referência ao personagem de Mário de Andrade, capaz de absorver o que existe de melhor do estrangeiro e devolver tudo a sua maneira. Metade da vida profissional deste paulistano do bairro periférico da Vila Prudente foi passada entre os Estados Unidos e a Europa. Atualmente, ele vive em Berlim. Mas comanda a Bienal de Dança de Veneza.

O bailarino e coreógrafo é nome de ponta da dança moderna. Mas jamais esquece o primeiro palco: a bacia de lata, no quintal de casa. Ali, sua mãe fazia movimentos circulares na cabeça de Ismael para lavar os cabelos do menino. Depois, veio a vontade de girar sobre si mesmo até perder o equilíbrio, cair no chão e completar o que chamava de “viagem”. Filho de classe média baixa, Ismael fez o destino dançar no compasso de uma veia artística admirável. Católico de formação, mas praticante de rituais afro-brasileiros por opção – com os quais afiou os sentidos para a magia e a intuição -, Ismael Ivo abraçou a dança com fé, como tábua de salvação e de expressão corporal e espiritual. Ganhou concursos de melhor bailarino em 1979, 1981 e 1982, em São Paulo. No ano seguinte, o grande salto. De passagem pelo Brasil, o coreógrafo americano Alvin Ayle encantou-se com um solo de Ismael e convidou-o para integrar sua companhia, em Nova York. Lá, por acaso, o bailarino brasileiro posaria nu para as lentes do fotógrafo Robert Mapplethorpe, de quem se tornaria amigo.
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Mas foi na Europa que sua carreira deslancharia. Em 1985, Ismael aceitou o convite para viver na Alemanha. Em Berlim, dirigiu o Setor Dança do Teatro Nacional Alemão Weimar, em 1996/97, e colaborou com outras instituições. Em Viena, na Áustria em parceria com Karl Regensburger, fundou o The International Tanzwochen Wien, embrião do ImpulsTanz Vienna International Dance Festival, do qual seria diretor por 15 anos.

Dali para a Itália bastou atravessar os Alpes com a apresentação de uma homenagem a Mapplethorpe, em 2002. O sucesso lhe valeu o convite para assumir o cargo de diretor da Bienal de Dança de Veneza.

Das ruas do bairro paulistano do Bexiga – onde dançava na calçada – à cidade do explorador Marco Polo, Ismael Ivo segue experimentando novas linguagens. Ele nadou no céu de Roma, na festa de abertura do Mundial de Natação. Exibiu-se em uma pedreira abandonada no norte da Itália. E até dançou Bolero, de Ravel, por 15 minutos e para um único espectador. Era o prêmio para o melhor lance de um leilão em Veneza. Na ocasião, Ismael protestava contra o mercado do corpo por conta do projeto Corpo e Eros, da Bienal de 2007. Agora, ele se prepara para Capturar Emoções, o tema deste ano do Festival de Dança de Veneza, que se inicia em 26 de maio.

Brasileiros – Ismael Ivo abraça o mundo?
Ismael Ivo –
Os programas do Festival deste ano têm um contraponto. A ideia é dar uma olhada na dança contemporânea por meio de dois polos geográficos muito distantes. De um lado está o Canadá, com a real expressão da América do Norte, porque depois temos apenas o gelo do Ártico. Do outro, a Austrália e a Nova Zelândia. Haverá outros espetáculos na Bienal, claro, de coreógrafos italianos, de americanos – como Bill T. Jones. Mas o foco central é observar o trabalho nessas extremidades geográficas, entender como o coreógrafo canadense e o neozelandês estão respondendo à questão global, existencial, à crise econômica. A arte, enfim, sobrevivendo a uma mudança em várias direções, incluindo a climática.

Brasileiros – De onde chegam as ideias para criar e selecionar os espetáculos?
I.I. –
Intuitivamente… Porque tem essa coisa de ser brasileiro. Vemos o mundo de forma especial. Somos filhos do realismo mágico, que vai de Jorge Amado a Jorge Luis Borges, chega a Gabriel García Márquez e retorna a Nelson Rodrigues. Temos uma visão múltipla. Sabemos que existem várias verdades. Na área artística, isso é muito importante porque nos dá um campo de visão muito aberto que nos ensina a como interpretar, como reinterpretar.

Brasileiros – O que diferencia o artista brasileiro?
I.I. –
O que mais me fascina, e não tem comparação com outros que possuem todas as técnicas do mundo, é a capacidade da fantasia, de criar, de descobrir, de reinventar… A gente vive em um país de metamorfoses diárias. Quando você transfere tudo isso para o artístico, ganha uma abertura grande para criar.

Brasileiros – E como você se move dentro de uma mudança constante?
I.I. –
No espetáculo Body in Attack, eu usava o corpo como um documento do tempo, um espelho da época. Eu vejo o mundo a partir desse parâmetro. É a minha intuição, um pouco “animalesca”, de sentir e farejar as coisas. Intuição é uma das palavras mais importantes no nosso vocabulário. Para nós, brasileiros, é quase real. Mas nas raízes de outros lugares por onde tenho passado, isso soa místico. Como poderíamos viver sem intuição? Morreríamos. Daríamos dois passos e morreríamos…

Brasileiros – O que é a Bienal de Dança de Veneza?
I.I. –
Um templo progressista da cultura. Nasceu a partir do Festival de Cinema. Nessas últimas quatro edições, eu consegui não apenas duplicar o público, mas também transformá-lo no festival internacional de dança com mais espectadores. Você tem de estar preparado para quando as oportunidades aparecem.

Brasileiros – Como você renova o foco da Bienal?
I.I. –
Uma coisa que surpreende tanto as pessoas aqui na Bienal, fundada em 1998, é que agora eu sou o diretor do setor dança que mais tempo ficou no cargo. Iremos para oito anos. Como faço toda a metamorfose? Eu respiro, sou um animal nessa selva global. Isso significa você não se anular, mas amplificar seus talentos naturais. É isso que me dá a força de descobrir coisas novas, de ter continuidade.

Brasileiros – Como vai ser a sua apresentação?
I.I. –
Estou preparando um espetáculo chamado Aria. Ora, aria em italiano significa ar, mas também é uma canção dentro de uma ópera. Aria é ar, exercício de respiração. Estou começando a falar sobre o sonho, a capacidade de voar. Então, você tem de tentar, pelo menos tentar, se transformar em um Ícaro. Se você cair, tem de cantar: “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima…”. Tem de arriscar. Arte é renovação, é risco, e isso é o que me leva adiante… Arte é movimento.

Brasileiros – Já era assim quando você começou a carreira?
I.I. –
Ainda em São Paulo, eu tentava fazer coisas que as pessoas nem sabiam definir. “O que ele está tentando fazer?”, perguntavam. Dancei várias vezes nas ruas do Bexiga, na Rua 13 de Maio, na rua mesmo. As pessoas aqui acham engraçado quando digo que venho da rua, que dancei na calçada. Uma coisa é importante: você não se acomodar com a sua bagagem cultural. É preciso ser muito curioso, olhar em todas as direções e absorver e entender todo o tipo de informação. Nós somos filhos da Antropofagia, eu sou Macunaíma. Você vai pegando, vai digerindo, vai transformando. Somos filhos de Macunaíma, é esse o nosso legado, nossa forma de revitalização.

Brasileiros – Que papel teve a vanguarda paulista dos anos 1980 na sua carreira?
I.I. –
Fiz um espetáculo no teatro do SESC, Clara Crocodilo, eu e o Arrigo Barnabé. Esse espetáculo me levou pela primeira vez para fora do Brasil. Fomos nos apresentar no Festival de Jazz de Berlim. Gente, o nosso presidente é o Lula, que vendia laranjas. Essa é a nossa história que transforma a vida. Transformar a vida: isso para mim é a arte.

Brasileiros – Seus alunos te renovam, transformam?
I.I. –
Claro. Já parto com um tipo de preceito: “Decifra-me ou te devoro”. Foi o que a Esfinge falou para Édipo, na porta da Pirâmide. Se você quer criar alguma coisa no mundo, tem de pensar na era pós-Barack Obama, que representa uma revolução política, social e existencial. A gente nem sabe bem o que é, mas é algo que deu uma virada de mesa, e estava mais do que na hora. Você tem, como artista e pessoa, de se relocalizar.

Brasileiros – Qual é a missão do artista em uma sociedade tecnológica?
I.I. –
O artista tem de saber a que veio ao mundo e porque está exercitando esse tipo de arte. O avanço tecnológico ocorreu com muita velocidade e provocou uma perda muito grande de noção existencial, de contato humano. Nós, artistas, temos uma voz para alertar e acredito que a arte tenha essa função. Não é uma doutrina, você não está pregando regras, mas está servindo, o artista tem as antenas, você tem de ter coragem para ser também um para-raios e criar argumento e movimento. A arte tem a função de instigar.

Brasileiros – Como e por quem você foi influenciado na sua arte de bailarino e coreógrafo?
I.I. –
Não posso reclamar. Trabalhei com o recém-falecido George Tabori, com o Yoshi Oida, que é o assistente do Peter Brook. Fizemos um espetáculo, As Criadas, de Jean Genet, com o qual, três anos atrás, ganhamos o prêmio de Londres de melhor espetáculo do ano. No Japão, trabalhei com Ushio Amagatsu, ícone da dança butô, dono de uma estética refinada ao máximo. Também aprendi com a grande bailarina e diva Márcia Haydée, que é brasileira, mas fez toda a história da carreira fora do Brasil. A Márcia é a mãe de todo o desenvolvimento recente mais importante da dança cultural europeia. Nesse percurso, passei pelos grandes da dança alemã do teatro, como o austríaco Johann Kresnik. Encontrei o Baryshnikov, com quem passei toda uma noite falando sobre dança, uma experiência inacreditável. Também trabalhei com o grande autor de teatro Heiner Müller, alemão, o inventor do teatro contemporâneo de vanguarda. Eu o encontrei em Berlim. O Müller escreveu um texto colhendo as minhas ideias, que acabou chamando de Um Estranho no Próprio Corpo. Era sobre essa busca de renovação constante em si mesmo. Todas essas pessoas que me escolheram e me passaram algum tipo de conhecimento e experiência foram fundamentais.

Brasileiros – Quanto é difícil transformar uma ideia, um livro, uma imagem em uma coreografia?
I.I. –
Existe um trabalho de transferir ideias e usar muito o tipo de imaginação simbólica do que você está querendo fazer, dizer. Acredito que os brasileiros, filhos do realismo mágico, já nascem com a capacidade de ver uma outra textura, dar uma outra profundidade em uma realidade que, para o europeu, é sobrenatural e para nós é arroz com feijão. Isso retorna no teu trabalho artístico com uma dimensão extra. Pessoas intuitivas, muitas vezes por um dom natural e mesmo que tenham experiências diversas em culturas diversas, chegam a um resultado concreto. “Eu não sou interessada somente em como as pessoas se movem, mas o que move as pessoas”, me disse a coreógrafa Pina Bausch, pouco antes de morrer. E isso é uma regra de vida.

Brasileiros – Como você trata seus alunos?
I.I. –
Não dá para plantar uma bananeira e esperar que caia um coco. O que você faz é uma resposta ao que a vida lhe proporciona. Tem toda uma forma de risco, você precisa fazer uma coisa nova, acreditar em si até o fundo. No ano passado, eu fiz o Terra Perdida, música do Igor Stravinsky. Primeiro, levei todos os bailarinos ao cemitério, onde estão os túmulos do Stravinsky e do Serguei Diaghilev, o fundador do Ballets Russes. Eu disse: “Vamos lá, bater a cabeça para esses gênios”. Alguns alunos estavam meio assustados. Colocamos rosas brancas nos dois túmulos, depois fizemos três minutos de silêncio. Em seguida, uma salva de palmas e o pedido de permissão para tocar a genialidade. Sim, um ritual. É a minha cultura. No ensaio, você tem duas possibilidades: ou você vai até a última força da tua energia ou você morre.

Brasileiros – E qual é a resposta no palco?
I.I. –
Eles dizem que eu crio monstros, porque vem uma energia primária, uma força, uma fome de dizer algo que todo o artista precisa ter em todos os momentos. Senão, não é verdade. Na arte, tem de ter essa ebulição interna, essa lava vulcânica.

Brasileiros – Você ensina os alunos a lidarem com as quedas?
I.I. –
Quando eu trabalhava com o Tabori, fiz uma ópera do Schoenberg na Alemanha. Era Moisés e Aaron, com 60 pessoas no coro. O Tabori, que era um gênio do teatro, me disse: “Ivo, todos dias você improvisa algo novo”, o coro ficou ‘pê’ da vida”, e fez greve. Eu disse: “George, parou tudo, eles querem que você explique o conceito do espetáculo”. Ele disse: “O conceito do espetáculo é falir. Você tem de procurar falir uma primeira vez, uma segunda, terceira e quarta vezes, porque se você sente que não faliu, não tem arte, não tem criatividade”. Eles ficaram de boca aberta. Mas era inquestionável. A partir deste problema não havia mais problema, inventava-se, criava-se, recriava-se. Ao final, o espetáculo ganhou o prêmio de melhor ópera do ano porque tinha uma energia vital.

Brasileiros – Você encanta as plateias, mas quanto o público te encanta?
I.I. –
O jogo de sedução é recíproco. Por isso, o título do meu espetáculo deste ano é Capturar Emoções, no qual o público é o protagonista. Por que existe teatro? Por que a sociedade inventou o teatro? Você chega, compra o bilhete, vive uma comunhão de pessoas, uma expectativa, as luzes se apagam, inicia-se uma atividade no palco, as pessoas prendem a respiração, as pupilas dilatam-se e começa a sonhar. Vive-se a capacidade e a necessidade humanas de um momento de sonho. Você abre a sua existência, porque o homem sem sonhar não existe.

Brasileiros – Quantos idiomas você fala?
I.I. –
Seis línguas. O espanhol, aprendi em Nova York. Também falo inglês, francês, alemão e italiano. Entre estes, o idioma alemão é o mais complicado, mas tem uma poesia… Aprendi nos quatro anos como diretor estrangeiro, negro e brasileiro do Setor Dança do Teatro Nacional Alemão Weimar. Quem diria? Sair dos subdistritos de Vila Prudente, em São Paulo, para chegar ao Teatro Nacional Alemão.

Brasileiros – Você sente o racismo na pele?
I.I. –
Ah, tem sempre, a questão racial continua… Essas pessoas devem se perguntar: “O que este Barack Obama está fazendo na Casa Branca, a White House?” (pronuncia o nome enchendo a boca).

Brasileiros – Deveria chamar-se Black House?
I.I. –
Isso! Tem de mudar para Black House (risos).


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