O palco através das lentes

Raoni Carneiro (ao fundo) e Raul Cortez em Rei Lear (2000). Foto: Lenise Pinheiro
Raoni Carneiro (ao fundo) e Raul Cortez em Rei Lear (2000). Foto: Lenise Pinheiro

Cerca de sete anos atrás, quando me designaram para cobrir teatro no jornal em que trabalhava, fiquei apavorado. Era meu primeiro emprego como repórter e eu estava totalmente desatualizado do que acontecia na cena teatral brasileira. Corri para perguntar para colegas mais experientes da redação o que eu deveria fazer, como poderia me preparar, e a resposta era sempre a mesma, com pequenas variações: “Fala com a Lenise”; “não se preocupe, a Lenise vai te ajudar”; “quem conhece tudo é a Lenise”. De fato, a fotógrafa Lenise Pinheiro, 56 anos, é uma figura onipresente no teatro do País desde os anos 1980. Conhece, como poucos, o universo que vai do teatro experimental ao comercial, do infantil ao teatro de rua, do musical ao teatro de grupo. “Fiz as contas, eu fotografo mais ou menos 300 peças por ano”, conta ela, que lança agora o livro Fotografia de Palco II (Edições Sesc), oito anos após colocar no mundo o primeiro volume. Colaboradora regular da Folha de S.Paulo, onde tem a maior vitrine de seu trabalho, Lenise registra espetáculos também para o Sesc e para as próprias companhias, além de reservar algum tempo para fotografar as peças que escolhe por conta própria. “Nesse ritmo, acho que daqui uns cinco anos quero lançar o terceiro volume.”

“Acho que tenho uma vocação para o teatro. Consigo me entender com as pessoas, dirigir a foto para onde eu preciso, e tenho total identificação com este universo, com a questão do lirismo, da fantasia…”, diz Lenise à CULTURA!Brasileiros. Se a vocação não a levou para os palcos como atriz – “sou tímida. Atuei uma vez, com o grupo Asdrubal Trouxe o Trombone e foi ótimo para eu ver que não servia para isso” –, a colocou como figura atuante na cena de outro modo. Mais do que uma fotógrafa que é pautada, que apenas atende aos pedidos do jornal ou de outros contratantes, Lenise é figura ativa, que procura as novidades, descobre montagens, incentiva grupos e, quando sente que há espaço, dá sua opinião. “Quando eu percebi que o teatro precisa desse tipo de trabalho que estou fazendo, perdi um pouco os escrúpulos. Claro que entendo a hora de ficar quieta, de ser silenciosa, mas também indico atores, sugiro temas, participo de leituras. Gosto de me doar, e isso me traz mais inspiração”, conta.

Lenise Pinheiro ao lado do cenógrafo de "Hell" (2010), Felipe Tassara. Foto: Lenise Pinheiro
Lenise Pinheiro ao lado do cenógrafo de “Hell” (2010), Felipe Tassara. Foto: Lenise Pinheiro

Assim como o primeiro volume, de 2008, o novo livro é dividido em seis partes: camarins, ensaios pessoais, figurinos, cenários, iluminação e cenas. “Acho que o teatro é uma arte multifacetada, e posso documentar todas essas facetas.” Registros mais artísticos e abstratos, que não costumam ser publicados em jornais e revistas, ganham espaço na edição, mesmo que o caráter documental dê a tônica do livro – e do trabalho de Lenise de modo geral. Ao todo, 602 pessoas, entre atores e diretores, ocupam as páginas de Fotografia de Palco II. Estão ali desde nomes consagrados, como Zé Celso, Walderez de Barros, Raul Cortez, Betty Faria, Paulo José, Denise Fraga e Cacá Carvalho, até jovens atores ainda desconhecidos. Pois o olhar atento de Lenise não trata novatos e consagrados com distinção: “Eu não quero lidar com fama pessoal. Todo mundo gosta de ser bem-sucedido, mas às vezes o sucesso mostra tanta coisa negativa que vem junto que não me atrai mesmo. Tenho a maior consideração pelos trabalhos, e noção da importância das pessoas, mas o deslumbre não cabe no meu trabalho”.

Do analógico ao digital

A trajetória de Lenise com a câmera na mão começou cedo. “Volto os olhos para dentro de mim e só vejo fotos. Aprendi a me comunicar por imagens.” Ainda menina, com a Flexaret do pai, decidiu registrar eventos familiares como Natal, Páscoa e aniversários. “Eu tinha uns 8 ou 9 anos e fazia uns álbuns para vender para os meus tios. Levava super a sério”, conta. A primeira peça fotografada veio em 1983, quando a então estudante de Comunicação e de Arquitetura já tinha prática com a máquina e se aproximava do universo teatral. “Fui fazer fotos de Laços, dirigida pelo Odavlas Petti, e quando mostrei o resultado ele me disse: ‘Menina, continue fazendo isso porque não tem nenhuma imagem ruim. E nós precisamos de fotógrafos’”. Considerando que eram dois filmes inteiros, 72 fotos ao todo, Lenise sentiu confiança para ir em frente. “A partir daí fui largando as faculdades e ficando firme no teatro.”

Marcello Antony em "Vestido de Noiva", 2009. Foto: Lenise Pinheiro
Marcello Antony em “Vestido de Noiva”, 2009. Foto: Lenise Pinheiro

Metódica com a organização do trabalho, ela tem tudo guardado e catalogado em seu acervo. No livro, fotos tiradas de 1983 (de Laços) até os dias de hoje se misturam nas quase 500 páginas da obra – a grande maioria das fotos é inédita. As imagens refletem não só a trajetória do teatro brasileiro e da própria fotógrafa, mas também mudanças na fotografia: “Passei por duas grandes reformas na profissionalização. A primeira foi trazer a cor, entre 1991 e 1993, e a segunda foi do analógico para o digital, por volta de 2005”. “E eu vou acompanhando, vendo as pessoas e companhias se transformando. Acho muito bonito isso, porque é uma vida meio circense. Companhias vão crescendo, filhos vão nascendo…” E Lenise está sempre lá, há 33 anos. Por isso se tornou, ela mesma, uma personagem única no mundo teatral brasileiro. “Eu sinto que tem gente que quer fazer o que eu faço, estar onde eu estou, mas não quer ter o trabalho que eu tenho nem ganhar tão pouco como eu ganho”, conclui, rindo.

Capa do livro
A capa do livro

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