Em suas Memórias, Lorenzo da Ponte destilou o seu ódio a uma cantora, Madame Banti. Isso foi no período em que ele viveu na Inglaterra. Entre os vícios daquela mulher, o nosso autor citava o do licor de Baco, ou seja, o vinho.
Da Ponte mantinha a chave de uma adega em seu poder e “aquela bacante”, conta-nos o memorialista, mais de uma vez pedira para encher umas garrafas.
Assim que foi demitido do cargo de poeta de um teatro em Londres, ele vendeu dois tonéis de vinho para se tornar livreiro. Quando Madame Banti tomou-lhe as chaves da adega, gritou com fúria porque sobravam “apenas” 88 galões de vinho. Quanto tempo duraram? Vinte e nove dias. Os cantores e bailarinos do teatro chegaram ao 30º dia encomendando mais 36 garrafas numa loja londrina…
Nada demais. Pierre, o herói de Guerra e Paz, de Tolstoi, não passava um dia sem ao menos uma garrafa de vinho. Mas na obra de Tolstoi é Napoleão Bonaparte quem diz: “Le vin est tiré, il faut le boire”. Uma vez que o vinho foi aberto, é preciso bebê-lo… Enquanto assistia às suas batalhas, bebia um bom vinho. Naquele caso não foi o vinho da vitória como em Austerlitz ou Tilsit, mas o da consolação depois da retirada da Rússia.
Tanta fama dos vinhos franceses só poderia ser um convite às falsificações. Durante a monarquia de Luís Filipe (1830-1848), quando os burgueses finalmente se locupletaram no poder, o vinho francês tornou-se mundialmente reconhecido por suas adulterações.
Depois da Revolução de 1848, Caussidière saiu das barricadas para assumir a Préfecture de Police de Paris. Ficou poucos meses até ser destituído e expulso da França quando a direita apossou-se do poder. Mas enquanto esteve em Paris uma de suas primeiras medidas foi a inspeção do vinho. Só um socialista para certificar um bom vinho diante da concorrência entre empresários cobiçosos!
Naquele mesmo momento um jovem Friedrich Engels atravessava a região de Bordeaux entre namoros e degustações e escrevia: “Um momento de felicidade: Château Margaux, 1848”. Decerto nunca houve outra safra como aquela… Não é sempre que se bebe o vinho de uma revolução.
O ano de outra Revolução (1917) terminou numa bebedeira. Segundo o historiador Orlando Figes, ao tomar o Palácio de Inverno, os bolcheviques encontraram uma das maiores e melhores adegas já vistas. Beberam dezenas de garrafas de Château d’Yquem (1847), última safra endossada pelo czar. Talvez ali já tenha aparecido o primeiro traço de burocratização do novo regime. Enquanto sorviam aquele vinho, os bolcheviques desprezavam as garrafas de vodca que eram distribuídas para a massa que ficara do lado de fora.
Portanto, nenhuma safra é tão boa quanto a dos anos rebeldes. Numa quinta-feira de junho de 2013 eu acompanhava dois amigos ao fim de uma melancólica manifestação em São Paulo. Quando tudo parecia uma pequena revolução nas nossas vidas, eis que a cidade foi invadida por rancorosos fascistas. Atacavam símbolos não da esquerda, mas da civilização. E não poupavam os livros. A literatura mais inocente (e será que há alguma?) era a “prova” de um crime.
Eu lia naquele dia outras memórias: as belíssimas Lembranças de 1848, de Alexis de Tocqueville. Ele descrevia exatamente as Jornadas de Junho de 1848. Temi, e com razão, que a obra de um liberal um tanto cético fosse confundida com um livro comunista.
Só nos restava esvaziar umas garrafas num Bom Retiro. O vinho chileno que tomamos, confesso, não era para degustadores. Contudo, jamais esqueceríamos um vinho sorvido em junho de 2013. Para nós foi a melhor safra.
Deixe um comentário