As origens de “A Bela e a Fera”

Ilustração de Walter Crane (1875)
Ilustração de Walter Crane (1875) presente na publicação

Hipertricose é uma doença hereditária, bem rara, que se manifesta pelo crescimento excessivo de pelos no rosto e no corpo. É também conhecida como doença do lobisomem. Em 1537, nasceu nas ilhas Canárias um sujeito todo recoberto de pelos avermelhados. Os traços do espanhol Pedro González, no entanto, eram harmoniosos, seu porte esguio e o físico avantajado. Criança, foi vendido pelos pais ao imperador Carlos V. Tornou-se uma relíquia exótica. Depois de mil desventuras, o rapaz, agora com 22 anos e uma educação principesca, viu-se sob a guarda de Catarina de Médici, a viúva rainha de França. Apegada a ele, ela resolveu dar-lhe uma noiva e escolheu para tanto aquela que era a mais bela do reino. Dizem o registros da época, que o casamento, passado o susto inicial, foi bem sucedido e feliz. González teria inspirado o personagem da famosa fera.

Assim conta o escritor, tradutor e editor Rodrigo Lacerda, na excelente introdução às duas histórias que fizeram a fama de A Bela e a Fera, lançadas em um novo volume da coleção de Clássicos da Zahar.  Escrita por Madame de Beaumont, a primeira versão é a mais conhecida, mais afeita ao formato conto de fadas. Foi lançada em 1756, no Magasin des Enfants, revista criada pela autora com base em preceitos pedagógicos modernos para a época, ainda que tingidos por forte moralidade cristã. Aparentemente, Beaumont era uma mulher de costumes livres, com uma vida amorosa agitada, amiga de Voltaire, com quem se correspondia, e Daniel Defoe, que apoiava seus projetos, como o Le Nouveau Magasin Français, um sucesso estrondoso. Um de seus netos tornou-se escritor ainda mais famoso: Prosper Mérimée, autor de Carmen, eternizada pela ópera de Bizet.

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Ilustração de Walter Crane (1875) presente na publicação

Madame de Villeneuve, por sua vez, escreveu a história original, em formato bem mais longo, quase um  romance, 16 anos antes de Beaumont. Essa versão, com mais personagens e subtramas, é mais parecida com a célebre animação da Disney de 1991, agora refeita com atores, entre os quais a Hermione de Harry Potter (Emma Watson), e que estreia nessa quinta, dia 16. É considerada também mais “feminista”, menos conformista, ou menos próxima do que se poderia diagnosticar como o mais conhecido caso de Síndrome de Estocolmo da história. Aqui, a virginal Belle é quem toma as rédeas da situação. É a partir de sua inteligência, bondade e graciosidade que a asquerosa Fera se humaniza. A novela seria uma crítica ao sistema matrimonial então vigente, que obrigava jovens donzelas a se casarem com homens bem mais velhos. A própria Villeneuve, mulher corajosa e decidida, que tampouco se preocupava com a opinião mesquinha dos outros no que concerne sua vida sexual,  passou por essa provação, o que reforça a tese.

Mas, claro, como todo conto de fadas, A Bela e a Fera, que já teve uma belíssima versão cinematográfica dirigida por Jean Cocteau, inspirou uma peça de Ravel e uma ópera de Philip Glass, se presta a inúmeras interpretações, para todos os gostos. Pode-se pensar mesmo numa aversão de Belle à Fera por identificação inconsciente com seu pai, a quem é muito apegada. O obstáculo a vencer seria, então, a monstruosidade do incesto. Tendo a achar que o magnetismo animal/sexual, implícito nas investidas amorosas da tímida, porém bruta, Fera, é um aspecto bem importante, que não se deve desconsiderar. Descontada a óbvia moral da história (que no Shrek ganha uma versão invertida e mais divertida, já que é a Bela que se transforma numa ogra) de que a aparência física importa muito menos do que a bondade e o amor (e, num degrau abaixo, a inteligência e a cultura), há um forte componente erótico na crescente atração entre os personagens. Que parece ainda mais forte quando a Fera se transforma, afinal, num príncipe de beleza um tanto anódina, sem o charme selvagem de sua encarnação anterior.


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