Reinvenção do engenho

Arte na Usina
Alguns dos colaboradores do Festival Arte na Usina: da esquerda para a direita, José Rufino, Marcio Almeida, Leda Catunda, Fábio Delduque, Luiz Braga, Ronaldo Fraga e Laura Vinci. Foto: Divulgação / Festival Arte na Usina

A menos de duas horas do Recife, na zona da mata sul, divisa de Pernambuco com Alagoas, a pequena cidade de Água Preta, com cerca de seis mil moradores, é palco de um projeto cultural transformador, o festival Arte na Usina. Sediado nas instalações daquela que foi uma das mais importantes usinas de açúcar do País no século XX, a Santa Terezinha, que fechou as portas em 1998, o evento teve sua segunda edição – ou melhor, sua “segunda safra”, como preferem seus idealizadores – encerrada no começo de dezembro, com balanço mais que positivo.

Entre shows, projeções cinematográficas, oficinas culturais e atividades paralelas, como ciclos de debates e um curso de fotografia, o festival reuniu colaboradores de diversas áreas, como os artistas plásticos Hugo França, Laura  Vinci, Leda Catunda, Marcelo Coutinho e Marcio Almeida, os curadores Bitu Cassundé e Diógenes Moura, o escritor José Luiz Passos, os músicos Adiel Luna, Benjamin Taubkin, Helder Vasconcelos, Siba e Silvério Pessoa, os fotógrafos Camila Leão e Luiz Braga, a coreógrafa Luciana Brites, o poeta, ilustrador e artista plástico João Lin e o estilista Ronaldo Fraga.    

Criado em 2015, por iniciativa dos proprietários da extinta usina, os empresários Ricardo Pessoa de Queiroz e Bruna Simões Pessoa de Queiroz, sua mulher, o Arte na Usina tem como curadores convidados o artista plástico paraibano José Rufino e o artista plástico e cenógrafo paulistano Fábio Delduque, que há 15 anos realiza em uma fazenda localizada na cidade de Bragança Paulista, em São Paulo, o Festival Arte Serrinha.

Instituído oficialmente em dezembro de 2015, com a fundação da Associação Sociocultural e Ambiental Jacuípe e a realização da primeira edição, o Arte na Usina tem reunido, para além das atividades anuais, iniciativas regulares, a principal delas, uma escola de música.

Instalado em um imóvel que servia de residência para os químicos da Usina Santa Terezinha, o núcleo de formação musical atende hoje mais de 50 alunos que, aos poucos, desvendam os meandros de instrumentos de sopro e de cordas. O novo mundo aberto com o acesso à escola faz com que a maioria deles sonhe com uma carreira profissional na música clássica e, por que não?, com o ingresso em grandes orquestras, dentro e fora do País. Nada mal para quem, havia menos de três anos, se sentia ilhado em um vilarejo que, para muitos, tem a função de cidade-dormitório, uma vez que as oportunidades de trabalho em Água Preta são para lá de escassas.

Renascimento
Triste realidade para quem sempre viveu em função de seus engenhos e moendas, o encerramento das atividades da Usina Santa Terezinha foi motivado, entre outros fatores, pela incapacidade topológica de competir com os produtores do Sudeste do País – sobretudo os do estado de São Paulo –, uma vez que eles têm maior capacidade de cultivo e extração da cana de açúcar, graças aos terrenos planos que favorecem a utilização de colheitadeiras industriais.

Com o encerramento das plantações de cana nos morros de Água Preta e de seu entorno, a vegetação natural da cidade foi, aos poucos, brotando naturalmente da terra. Fato que despertou em Ricardo e Bruna o desejo de reflorestar o perímetro da usina. Depois de uma viagem ao Instituto Inhotim, em Minas Gerais, o casal decidiu também criar um jardim botânico no entorno da Santa Terezinha e das edificações pertencentes à família, entre elas a casa-grande construída por José Pessoa de Queiroz, bisavô de Ricardo e ex-dono do império que outrora foi a usina (inaugurada em 1929, com todos os componentes trazidos dos Estados Unidos, a empresa chegou a possuir 21 locomotivas para escoar a produção junto à Rede Ferroviária Federal; já nos anos 1940 tinha também um monomotor que regularmente vinha do Recife para trazer, em espécie, o pagamento dos funcionários).                      

Com os primeiros avanços do jardim botânico, Ricardo e Bruna decidiram convidar o artista plástico Hugo França, conhecido por seu trabalho com suportes de madeira, para construir bancos/estruturas a partir de árvores nobres caídas na enorme extensão de terreno pertencente à família. Foi o primeiro passo para também pensar em instalações artísticas que culminaram no convite de artistas como Marcio Almeida, que desenvolve uma obra chamada Eremitério Tropical #1, e Paulo Meira, que constrói, no topo de uma montanha vizinha à usina, uma emissora de rádio, instalação batizada de Rádio Catimbó, que em breve realizará transmissões locais em tempo real.

A aproximação de Rufino com o projeto veio por meio de um convite de Hugo França. Afeito com aquele universo, uma vez que também vem de uma família de usineiros da Paraíba, o artista plástico encontrou no festival um terreno fértil para suas proposições criativas, e fez do extinto hangar da Santa Terezinha seu núcleo de produção.

Para fazer um balanço desta segunda safra do Festival Arte na Usina, reunimos a seguir depoimentos de diversos personagens que atuaram no evento ou foram beneficiados por ele.  

José Rufinocurador do Festival Arte na Usina
“Como sempre vinculei meu trabalho ao desejo de transformação, minha primeira vinda para cá, em 2015, foi um tanto chocante. Foi como voltar a um Brasil remoto, dos anos 1970. Cruzar cidades miseráveis até chegar à usina foi um sintoma de que as coisas não seriam fáceis. Fiquei noites e noites matutando, achando que não haveria muito o que fazer, mas Ricardo e Bruna logo entenderam que somente apinhar os jardins de esculturas poderia ser um contrassenso total para a realidade de quem vive aqui. Essa compreensão foi tão imediata que no dia seguinte nós já estávamos fazendo reuniões com os diretores das  escolas do entorno, com a intenção de desenvolver os primeiros passos desse projeto cultural.  Água Preta têm um índice de desenvolvimento humano baixíssimo. Logo que cheguei aqui as pessoas me chamavam de canto e diziam: ‘Doutor, você sabe dizer se Ricardinho vai botar a usina para moer de novo?’. Isso foi me dando um desespero, uma agonia, porque eu não queria ser cúmplice de mais uma sequência de decepções na vida dessas pessoas, mas fez crescer meu compromisso com o projeto.”

Luiz Bragafotógrafo e oficineiro
“Foi um privilégio testemunhar o nascimento do festival. Comparando a primeira edição do Arte na Usina com a deste ano, percebo que a quantidade de ações realizadas já modificou a paisagem local. Uma pena que existam tão poucas iniciativas dessa natureza espalhadas pelo Brasil. Se a gente tivesse um festival desse em cada estado do País nosso panorama cultural e social seria muito diferente. O que a gente vê por aqui é que existe potencial de sobra, tanto do lado de quem pode transferir conhecimento quanto de quem está pronto para receber – e, mais do que isso, trocar.” 

 

 

João Linresponsável pela oficina de haicai  
“O processo de ensino e aprendizagem desenvolvido aqui toca profundamente os dois lados. Faço muitas oficinas nas cidades do interior de Pernambuco e percebo que o desejo comum do fazer e não só do elucubrar é muito grande entre os participantes. Eles são muito focados. Ontem, por exemplo, deu a hora de terminar a oficina, às 17h, e o pessoal não quis ir embora. Saímos daqui depois de escurecer. Hoje cedo, mesmo não tendo oficina, eles vieram antecipar coisas que precisavam ser concluídas para a exposição do fim de semana. Antes de escrever a gente costuma fazer passeios, que chamo de ‘colheita de inspirações’, e não é preciso dizer nada mais do que: ‘Vamos colher?’. Eles se jogam sem medo e a linguagem viaja.”

Helder Vasconcelosresponsável pela oficina de dança e música regional 
“Criei regras muito simples e abertas, como, por exemplo, permitir que qualquer um deixasse a oficina e fosse para fora do ginásio a hora que bem entendesse. Se você não deixar a pessoa encontrar a magia das coisas intuitivamente ela jamais se entregará. Os poucos meninos e meninas que arriscavam sair viam que nada de interessante estava acontecendo lá fora e voltavam correndo. Esse jeito, de fazer tudo com calma e permitir que eles contemplem o aprendizado, é algo que os leva para o campo das possibilidades. Não combina com um projeto como esse exigir resultados imediatos, mas sim mostrar aos poucos que eles são capazes de tudo. Ninguém passa impune por uma iniciativa assim. Porque acredito nisso, não deixo de ser otimista.” 

Adiel Lunavioleiro e cantador
“Sempre fico emocionado quando sou convidado para voltar aqui, porque tenho a chance de participar de algo realmente transformador. Estamos falando de um lugar onde as pessoas mais velhas sempre olhavam para os destroços dessa usina sonhando que algum dia ela voltasse a moer. A usina tem hoje a oportunidade de girar outros engenhos e fazer movimentar valores sublimes e transformadores para o povo de Água Preta. A Zona da Mata é um manancial de cultura. Participar deste momento de redescoberta para eles é também transformador para mim.”

Bruna Simões Pessoa de Queirozidealizadora do Festival Arte na Usina
“Avalio muito positivamente a safra 2016 do nosso projeto. Aumentamos o número de vagas nas oficinas e ampliamos as áreas abordadas. Economicamente falando, introduzimos as hospedagens domiciliares e incentivamos o comércio local. A troca de experiências entre moradores e visitantes foi muito rica para todos. O encerramento do Festival foi lindo! O desfile do Boi Marinho de Helder Vasconcelos, a performance dos alunos de Luciana Brites, o show de Silvério Pessoa, as exposições com o resultado das oficinas… Acredito que as pessoas se identificaram como protagonistas do processo criativo. Deixar de ser mero espectador é algo poderoso, que mexe com a autoestima de cada um. A semente plantada em 2015 brotou. Realizar a segunda edição mostra que nosso sonho é bem mais do que um delírio – e pretendemos continuá-lo. A Usina de Arte é um instrumento multiplicador – de ideias, cultura, educação, oportunidades – e isso só é possível numa ação continuada.”

Ricardo Pessoa de Queirozidealizador do Festival Arte na Usina
“Com a intenção de influir ainda mais no desenvolvimento de nossa comunidade, estamos nos aproximando do Porto Digital do Recife, a quem propusemos a instalação de uma unidade de pequeno porte para  proporcionar maior contato da população com as novas tecnologias. Também estamos desenvolvendo uma parceria com o Sebrae-PE para ações de qualificação e estimulo ao empreendedorismo.”

Fábio Delduquecurador do Arte na Usina
“Foi um imenso prazer voltar à Usina um ano depois da primeira safra e ver as transformações positivas que esse contato com a arte e a cultura promoveu na comunidade de Água Preta. Eu, como curador convidado, me baseio principalmente na experiência de 15 anos do Festival de Arte Serrinha em promover a multidisciplinaridade e a inclusão por meio dos processos criativos gerados a partir da participação tanto de grandes nomes da arte brasileira como também das pessoas das comunidades onde os projetos são realizados. Penso que a usina pode ser uma referência nacional ao aliar a arte pernambucana à do mundo, além da possibilidade de se tornar também um importante memorial da história da cana-de-açúcar no Brasil. Isso transformará e já está transformando a comunidade local, abrindo possibilidades de uma nova economia baseada no turismo e na cultura.”

Givanete Oliveira, 47 anos, aluna da oficina de pintura
“Sempre gostei de desenhar, mas nunca estudei. Os desenhos vêm tudo da minha cabeça. Desenho esses bichos, porque vejo eles no curral, vejo eles no mato, vejo um bocado de boi… De vez em quando coloco palavras nos desenhos, porque tudo na vida tem um nome, né? O que é bom e o que é ruim. Existe Jesus, existe Deus e o Diabo. Até o papel que eu desenho tem nome. Quando eu tinha oito anos desenhava até no meu chinelo, porque ‘painho’ não comprava caderno para mim. Vim para Água Preta em 1980, quando eu tinha 15 anos. Ainda peguei a moenda funcionando. Meu pai trabalhou na usina até o fim. Quando a usina ia começar a moer, no comecinho de setembro, tinha uma festa enorme. Tô gostando do que eles tão fazendo.”

Everson Soares, 17, aluno da oficina de haikai 
“O festival foi uma inovação na minha vida. Num lugar onde você não tem a oportunidade de fazer muitas coisas, quando surge a chance de fazer uma coisa como essa a gente tem mais é que aproveitar. Sempre gostei de escrever meus versinhos, mas não sabia que existia esse negócio de haikai. Achava que estava tudo perfeito, mas quando comecei a estudar com o professor João Lin me aprofundei nas coisas e descobri a importância da forma. Foi aí que percebi que nem tudo encaixava perfeitamente porque eu não estava mexendo com a forma. Fiz um haicai imaginando que eu estava dentro da destilaria da usina, um lugar enorme e vazio. É assim ‘Prédio abandonado / Uma vaga tristeza no peito / Saída entreaberta’. Fiz outro hoje, que fala sobre como a morte é o reinício da vida. ‘Sombras no cemitério / Crianças brincam livres / suspiro de vida’.”


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