Rodas da história

Cristiano Mateus em ação (foto: divulgação)
Cristiano Mateus em ação. Foto: Divulgação

Para espanto de quem transforma o skate no segundo esporte mais praticado no estado de São Paulo – e dos mais de três milhões de adeptos no País, segundo dados do IBGE – foi aprovado, no início de agosto, um projeto de lei municipal que pretende proibir a prática do esporte em espaços públicos na capital. A nova lei tem suscitado muitas polêmicas, mas ainda tramita na Assembleia Legislativa. Depende de nova votação e sanção do Prefeito Gilberto Kassab, para que passe a vigorar.

Em tempos de bicicletas e skates defendidos por muitos como alternativas de locomoção ecologicamente corretas nas grandes urbes, a tresloucada lei nos remete ao longínquo ano de 1988, quando o então prefeito, Jânio Quadros, baniu o skate da cidade e delegou a tarefa de monitorar o cumprimento da lei a Polícia Militar.

Naquele final de década, a áurea de marginalidade que rondava a prática do esporte era senso comum. Skate era “coisa de bandido” e, não raro, nas cercanias da Praça Roosevelt, da avenida Paulista e do Parque do Ibirapuera, era comum flagrar viaturas policiais repletas de “carrinhos” dentro dos famigerados camburões.

Sucessora de Jânio na cadeira municipal, a prefeita Luiza Erundina vetou a lei já nos primeiros dias de seu mandato. Veículos de imprensa da época, como o extinto Jornal da Tarde, exibiram fotos hilárias de uma descontraída Erundina equilibrada em um skate, seguida de manchetes alinhadas com o espírito do esporte, como “Prefeita radical”.

A então prefeita Luiza Erundina, em foto de 1990, ao lado do free-styler Paulo Anshowinhas, na ocasião em que ela vetou a lei de Jânio Quadros que proibia a prática do skate em espaços públicos da capital paulista. Foto: Reprodução / Jornal da Tarde
A então prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, em foto de 1990, ao lado do free-styler Paulo Anshowinhas, na ocasião em que ela vetou a lei de Jânio Quadros que proibia a prática do skate em espaços públicos da capital paulista. Foto: Reprodução / Jornal da Tarde

O skate vivia, então, seu segundo auge de popularidade entre os jovens brasileiros, e esboçava uma árdua guinada para o profissionalismo, com uma geração irreverente e abusada, que respondeu à lei de Jânio com a campanha, proliferada em adesivos e estampas de camisetas, Skate: Direito do Cidadão. Dever do Estado (veja imagem da época).

Esporte urbano ou mero vandalismo? Delinquência juvenil ou profissão milionária? Passadas quase quatro décadas desde o surgimento do skate no País, essas questões seguem nebulosas para muitos cidadãos alheios ao esporte.

Convém admitir que, para estes, o grande “vilão” da pranchinha sob quatro rodas é o street-style, modalidade de maior visibilidade, que aglomera o maior número de praticantes ao redor do mundo e se apropria de espaços públicos para, em meio a pedestres e automóveis, transformar muros, escadas e corrimões em obstáculos.

O contraponto a essa “invasão marginal”, de enorme impacto visual, é o skate vertical. Lado “bom moço” e espetacular do esporte, vez ou outra, ele invade a grade dominical de grandes emissoras, como a Rede Globo, em eventos como o X Games e Mega Rampa, que contam sempre com a apresentação de pratas da casa, como Bob Burnquist e Sandro Dias, o “Mineirinho”.

Os “Ultra Boys”, nos anos 1990. Adolescente, Bob Burnquist está em pé, de camiseta azul.
Os Ultra Boys, nos anos 1990. Adolescente, Bob Burnquist está em pé, de camiseta azul.

Detentores de sete títulos mundiais e protagonistas de carreiras milionárias nos Estados Unidos, Burnquist e Dias tornaram-se ícones máximos de um novo tempo para o esporte. São a confirmação de que os supostos “marginais” brasileiros dos anos 1970 e 80 não estavam errados na insistência em levar adiante um projeto de consolidação do esporte no País. 

Se a falta de informação é um dos grandes fatores para a intolerância sofrida pelo skate, essa lacuna acaba de ser parcialmente preenchida com a chegada aos cinemas do documentário Vida Sobre Rodas, dirigido por Daniel Baccaro, skatista local da extinta Ultra Skate Park. Laboratório dessa nova geração, a pista construída em São Paulo por Nelson Mateus, a pedido do filho, Cristiano, foi berço de nomes que despontariam mundialmente no começo dos anos 1990.

Ao jogar luz sobre a trajetória de atletas de projeção internacional, como o pioneiro Lincoln Ueda, o “Japonês Voador”, Cristiano Mateus e os superastros Bob Burnquist e Sandro Dias, Vida Sobre Rodas procura remontar os grandes êxitos e percalços da história do skate no País.

Longe de ser de interesse restrito aos praticantes do esporte “maldito”, o filme acerta a mão em traçar paralelos históricos – como a citada cruzada contra o skate deflagrada por Jânio e o impacto devastador do Plano Collor sobre nossas incipientes empresas e equipes de competição. 

Com roteiro dinâmico e bem estruturado, que dispensa o recurso de narração em off , o longa dá voz aos próprios personagens, como os lendários Thronn, Fábio Bolota, Márcio Tanabe, Formiga, o marrento Glauco, e presta justo tributo a essa geração de desbravadores.

Pioneiros, que se opuseram à indisposição pública e à arbitrariedade de Jânio – como o próprio Tanabe, que chegou a ser preso por desacato à lei -, eles criaram espaços públicos, estruturas de competição, produção de equipamentos e até uma imprensa especializada, com o surgimento das extintas revistas Yeah!, Overall e Skatin‘, e o programa semanal de TV Grito da Rua!.

VOO SE M LIM ITES O pentacampeão mundial Sandro Dias. Pioneiro do giro de 900°
VOO SEM LIM ITES O pentacampeão mundial Sandro Dias, pioneiro do giro de 900°

Com produção requintada, o filme cativa até mesmo os desavisados. Infiltrado no meio, Baccaro corrobora as evidências incontestáveis dessa “revolução à brasileira”, ao também colher depoimentos entusiasmados de gigantes mundiais, como os americanos Tony Magnusson, Christian Hosoi, Lance Mountain e Tony Hawk.

Os três últimos se apresentaram no Brasil, no segundo quinquênio dos anos 1980, e desembarcaram no País, pasmados com a pirataria indiscriminada de produtos americanos – especialmente das marcas Alva, Powell-Peralta, Santa Cruz e Vision.

De tênis especiais para a prática do esporte a rodas, shapes e eixos, quase nada se criava. Muito se copiava. A reação negativa ao oportunismo desses primeiros empresários brasileiros ficaria explícita em situações pontuais, como no Campeonato Mundial de Skate Vertical de 1989, quando uma tímida delegação brasileira foi a Münster, na Alemanha, e teve imposto o pior horário de treinos para a competição.

O veterano Sérgio Negão e o então adolescente Lincoln Ueda – que impressionou a todos com seus aéreos na casa dos 3m, e emplacou um heroico quarto lugar naquele mundial – mal puderam treinar para a competição. Relatam, no filme, que chegavam na pista às 23h30 e encerravam o treino à meia-noite.

Nos nefastos dias da era Collor, Ueda foi um dos que viu estancado o sonho de profissionalização no exterior. No ano seguinte a histórica conquista no mundial, teve de abandonar a carreira e retribuir o apoio do pai, Jorge Ueda, espécie de treinador e cinegrafista onipresente do garoto, tendo de meter as mãos na graxa, literalmente, para ajudar o pai a manter a oficina mecânica automotiva de portas abertas. 

Como bem explicita o documentário, essa relação de apoio familiar – também experimentada por Cristiano, Mineirinho e Burnquist – evidencia uma importante transição de mentalidade. Muito além de recreação irresponsável e um reduto de delinquência, a partir da década de 1990, o skate passaria a ser encarado com o potencial de uma rentável carreira profissional.

Já em 1995, Rodrigo Menezes, o “Digo”, sagrar-se-ia o primeiro brasileiro campeão mundial de skate vertical. Somados aos títulos de Burnquist e Mineirinho, temos hoje oito mundiais. Se o esporte mais amado e odiado do País ainda carece muito de documentação histórica, Vida Sobre Rodas pode ser considerado um eficiente marco inicial. Um drop perfeito.

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Veja o trailer oficial de Vida Sobre Rodas

Sebá, fotógrafo no limite


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