Para espanto de quem transforma o skate no segundo esporte mais praticado no estado de São Paulo – e dos mais de três milhões de adeptos no País, segundo dados do IBGE – foi aprovado, no início de agosto, um projeto de lei municipal que pretende proibir a prática do esporte em espaços públicos na capital. A nova lei tem suscitado muitas polêmicas, mas ainda tramita na Assembleia Legislativa. Depende de nova votação e sanção do Prefeito Gilberto Kassab, para que passe a vigorar.
Em tempos de bicicletas e skates defendidos por muitos como alternativas de locomoção ecologicamente corretas nas grandes urbes, a tresloucada lei nos remete ao longínquo ano de 1988, quando o então prefeito, Jânio Quadros, baniu o skate da cidade e delegou a tarefa de monitorar o cumprimento da lei a Polícia Militar.
Naquele final de década, a áurea de marginalidade que rondava a prática do esporte era senso comum. Skate era “coisa de bandido” e, não raro, nas cercanias da Praça Roosevelt, da avenida Paulista e do Parque do Ibirapuera, era comum flagrar viaturas policiais repletas de “carrinhos” dentro dos famigerados camburões.
Sucessora de Jânio na cadeira municipal, a prefeita Luiza Erundina vetou a lei já nos primeiros dias de seu mandato. Veículos de imprensa da época, como o extinto Jornal da Tarde, exibiram fotos hilárias de uma descontraída Erundina equilibrada em um skate, seguida de manchetes alinhadas com o espírito do esporte, como “Prefeita radical”.
O skate vivia, então, seu segundo auge de popularidade entre os jovens brasileiros, e esboçava uma árdua guinada para o profissionalismo, com uma geração irreverente e abusada, que respondeu à lei de Jânio com a campanha, proliferada em adesivos e estampas de camisetas, Skate: Direito do Cidadão. Dever do Estado (veja imagem da época).
Esporte urbano ou mero vandalismo? Delinquência juvenil ou profissão milionária? Passadas quase quatro décadas desde o surgimento do skate no País, essas questões seguem nebulosas para muitos cidadãos alheios ao esporte.
Convém admitir que, para estes, o grande “vilão” da pranchinha sob quatro rodas é o street-style, modalidade de maior visibilidade, que aglomera o maior número de praticantes ao redor do mundo e se apropria de espaços públicos para, em meio a pedestres e automóveis, transformar muros, escadas e corrimões em obstáculos.
O contraponto a essa “invasão marginal”, de enorme impacto visual, é o skate vertical. Lado “bom moço” e espetacular do esporte, vez ou outra, ele invade a grade dominical de grandes emissoras, como a Rede Globo, em eventos como o X Games e Mega Rampa, que contam sempre com a apresentação de pratas da casa, como Bob Burnquist e Sandro Dias, o “Mineirinho”.
Detentores de sete títulos mundiais e protagonistas de carreiras milionárias nos Estados Unidos, Burnquist e Dias tornaram-se ícones máximos de um novo tempo para o esporte. São a confirmação de que os supostos “marginais” brasileiros dos anos 1970 e 80 não estavam errados na insistência em levar adiante um projeto de consolidação do esporte no País.
Se a falta de informação é um dos grandes fatores para a intolerância sofrida pelo skate, essa lacuna acaba de ser parcialmente preenchida com a chegada aos cinemas do documentário Vida Sobre Rodas, dirigido por Daniel Baccaro, skatista local da extinta Ultra Skate Park. Laboratório dessa nova geração, a pista construída em São Paulo por Nelson Mateus, a pedido do filho, Cristiano, foi berço de nomes que despontariam mundialmente no começo dos anos 1990.
Ao jogar luz sobre a trajetória de atletas de projeção internacional, como o pioneiro Lincoln Ueda, o “Japonês Voador”, Cristiano Mateus e os superastros Bob Burnquist e Sandro Dias, Vida Sobre Rodas procura remontar os grandes êxitos e percalços da história do skate no País.
Longe de ser de interesse restrito aos praticantes do esporte “maldito”, o filme acerta a mão em traçar paralelos históricos – como a citada cruzada contra o skate deflagrada por Jânio e o impacto devastador do Plano Collor sobre nossas incipientes empresas e equipes de competição.
Com roteiro dinâmico e bem estruturado, que dispensa o recurso de narração em off , o longa dá voz aos próprios personagens, como os lendários Thronn, Fábio Bolota, Márcio Tanabe, Formiga, o marrento Glauco, e presta justo tributo a essa geração de desbravadores.
Pioneiros, que se opuseram à indisposição pública e à arbitrariedade de Jânio – como o próprio Tanabe, que chegou a ser preso por desacato à lei -, eles criaram espaços públicos, estruturas de competição, produção de equipamentos e até uma imprensa especializada, com o surgimento das extintas revistas Yeah!, Overall e Skatin‘, e o programa semanal de TV Grito da Rua!.
Com produção requintada, o filme cativa até mesmo os desavisados. Infiltrado no meio, Baccaro corrobora as evidências incontestáveis dessa “revolução à brasileira”, ao também colher depoimentos entusiasmados de gigantes mundiais, como os americanos Tony Magnusson, Christian Hosoi, Lance Mountain e Tony Hawk.
Os três últimos se apresentaram no Brasil, no segundo quinquênio dos anos 1980, e desembarcaram no País, pasmados com a pirataria indiscriminada de produtos americanos – especialmente das marcas Alva, Powell-Peralta, Santa Cruz e Vision.
De tênis especiais para a prática do esporte a rodas, shapes e eixos, quase nada se criava. Muito se copiava. A reação negativa ao oportunismo desses primeiros empresários brasileiros ficaria explícita em situações pontuais, como no Campeonato Mundial de Skate Vertical de 1989, quando uma tímida delegação brasileira foi a Münster, na Alemanha, e teve imposto o pior horário de treinos para a competição.
O veterano Sérgio Negão e o então adolescente Lincoln Ueda – que impressionou a todos com seus aéreos na casa dos 3m, e emplacou um heroico quarto lugar naquele mundial – mal puderam treinar para a competição. Relatam, no filme, que chegavam na pista às 23h30 e encerravam o treino à meia-noite.
Nos nefastos dias da era Collor, Ueda foi um dos que viu estancado o sonho de profissionalização no exterior. No ano seguinte a histórica conquista no mundial, teve de abandonar a carreira e retribuir o apoio do pai, Jorge Ueda, espécie de treinador e cinegrafista onipresente do garoto, tendo de meter as mãos na graxa, literalmente, para ajudar o pai a manter a oficina mecânica automotiva de portas abertas.
Como bem explicita o documentário, essa relação de apoio familiar – também experimentada por Cristiano, Mineirinho e Burnquist – evidencia uma importante transição de mentalidade. Muito além de recreação irresponsável e um reduto de delinquência, a partir da década de 1990, o skate passaria a ser encarado com o potencial de uma rentável carreira profissional.
Já em 1995, Rodrigo Menezes, o “Digo”, sagrar-se-ia o primeiro brasileiro campeão mundial de skate vertical. Somados aos títulos de Burnquist e Mineirinho, temos hoje oito mundiais. Se o esporte mais amado e odiado do País ainda carece muito de documentação histórica, Vida Sobre Rodas pode ser considerado um eficiente marco inicial. Um drop perfeito.
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Veja o trailer oficial de Vida Sobre Rodas
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