Um escritor, três malandros e um saxofonista

Thiago França em São Paulo. Foto: Luiza Sigulem
Thiago França em São Paulo. Foto: Luiza Sigulem

Noite cerrada e três malandros perambulam atrás de um joguinho de sinuca apostado. Cada um a seu estilo, os mancomunados estão à cata de otários que possam engabelar na trama de uma partida arranjada. Eles são Malagueta, Perus e Bacanaço, personagens que emprestam nome ao conto e livro de estreia de João Antônio, de 1963. Os malandros arrumam sociedade, ganham e perdem dinheiro em volta das mesas de vários bairros paulistanos – Lapa, Água Branca, Barra Funda, Pinheiros.

Depois de 50 anos dessa história, o saxofonista Thiago França joga novo olhar sobre ela em disco homônimo. O músico se apropriou de passagens e personagens, reconstruindo o texto musicalmente. “Encarei esse processo mais como um tributo a João Antônio do que como um disco de carreira. A ideia, que adoro, é ter um disco que conte uma história.”

Em 1960, os contos de João Antônio, que morreu em 1996, estavam quase concluídos, quando um incêndio destruiu a casa em que vivia com a família. Em meio aos escombros, os originais. O escritor tinha cópias da maioria dos textos, mas de Malagueta, Perus e Bacanaço só restavam poucos trechos. Foram três anos de reescrita até a publicação, que lhe rendeu dois prêmios Jabuti: Melhor Autor Estreante e Melhor Livro de Contos. Coincidentemente, entre a música-tema do disco e o lançamento do álbum, também foram necessários três anos de trabalho. “Era meados de 2010 quando fui apresentado ao livro. Comprei um exemplar em um domingo. No dia seguinte, já estava com a música pronta. Depois, a ideia do disco ficou meio esquecida e só no ano passado resolvi retomá-la.”

França nasceu em Belo Horizonte, mas passou a maior parte da vida em São Paulo e se encantou pela atmosfera descrita no conto. Assim, criou três vinhetas – uma para cada personagem – e são elas que dão o tom do disco.

Bacanaço, malandro considerado, de unhas manicuradas, sapato branco e humor que varia entre debochado e soturno, foi retratado com Picardia. A faixa é, nas palavras de França, um sambão. O menino Perus, dos melhores “tacos”, é um sentimental e se perde em sonhos e fantasias. Sua vinheta chama-se Nostalgia. Malagueta, um velho meio mendigo, meio malandro, entra nos jogos para ter o que comer. Sua faixa é Fome, explosão de sons.

Outro destaque é Caso do Bacalau, que conta a história de um malandro que trapaceou e acabou morto por isso. Com letra do rapper Rodrigo Ogi, também admirador de João Antônio, a música se apropria das palavras usadas pelo escritor e faz referência a um caso que Bacanaço conta para Perus.

A lógica das vinhetas organiza o disco e o que fica no final é o retrato de uma São Paulo em que a vida estava nas ruas. “Tenho encontrado muitas pessoas interessadas em João Antônio. Hoje, existe um movimento de voltar para as ruas, de encontrar uma identidade para a cidade e o livro tem isso de sobra”, afirma França.

Uma passagem do livro narra que, à certa altura da noite, Malagueta, Perus e Bacanaço dão com o mestre de sinuca Carne Frita, no viaduto da Santa Ifigênia, no centro da cidade – o mestre é uma mistura de Pelé e Garrincha. Ele também está no disco – Tema de Carne Frita. Os malandros, respeitosos, cumprimentam o “taco” com deferência especial. O encontro de quatro almas boêmias, unidas pelo jogo e pela noite, traduzem a identidade da São Paulo que João Antônio retratou e, hoje, França, acompanhado de outros músicos, revive em seu álbum.


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