Nestes dias em que milhões de brasileiros parecem ignorar os retrocessos que ajudam a fomentar, sobretudo graças à incompreensão dos antecedentes seculares que nos trouxeram até aqui, a chegada aos cinemas do documentário São Sebastião do Rio de Janeiro – A Formação de Uma Cidade é um alento. Ao narrar cronologicamente os 514 anos de história da Cidade Maravilhosa, o primeiro longa-metragem de Juliana de Carvalho, que entra em cartaz nesta quinta-feira (26), serve também de antídoto para aqueles que, desprovidos de conhecimento histórico, destilam ódio seletivo por acreditar, por exemplo, que a corrupção e a falência dos serviços públicos providos por nossos políticos são males criados nas últimas duas décadas.
Idealizado a partir do livro homônimo, lançado por Juliana e o jornalista Carlos Haag em 2015, com o embasamento de diversas personalidades do meio acadêmico, o filme explicita que a beleza exuberante da antiga capital federal (1763-1960), retratada em imagens aéreas de tirar o fôlego e em farta pesquisa iconográfica, foi também cenário do oportunismo crônico dos estrangeiros que cruzaram o Atlântico para saquear nossas riquezas naturais e impregnar nossas relações sociais de práticas escusas e violações aos direitos humanos que persistem até hoje.
Descoberta por uma esquadra portuguesa comandada pelo navegador Gaspar de Lemos em 1° de janeiro de 1502, a extensa baía ganhou, por essas características, o nome de Rio de Janeiro. No entanto, graças à topologia irregular do local, apinhado de montanhas, lagos e mangues que dificultavam sua exploração, a coroa portuguesa deu pouca atenção à descoberta. Assim, abriu caminho para que franceses se instalassem ali e explorassem a madeira do entorno da baía.
Em 1555, em meio à crescente chegada de portugueses, a França intensificou o envio de colonos para tomar de vez o Rio de Janeiro e criar o que pretendia chamar de França Antártica, sob o comando do marinheiro Nicolau Durand de Villegagnon. Fato que, graças à predominância de protestantes entre os franceses, advertiu os portugueses de que, além do domínio do território, os inimigos também tinham como meta dirimir a expansão do catolicismo no Brasil, um dos artifícios de conquista do País com a catequização dos índios – claro, além do quase extermínio de nossa população nativa.
No decorrer da década de 1560 teve início uma longa e sangrenta batalha que devolveu a Portugal, vitorioso no embate, o domínio territorial e permitiu que, em 1° de março de 1565, Estácio de Sá, sobrinho de Mem de Sá, o terceiro governador-geral do País, fundasse a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Logo o Rio se tornaria o principal polo de pesca, extração de madeira e produção de cana-de-açúcar, novidade que fez proliferar engenhos no novo município – daí o batismo de bairros que até hoje levam a palavra no nome, como Engenho de Dentro, Engenho Novo e Engenho da Rainha, situados na zona norte da cidade.
O crescimento deflagrado a partir daí impulsionou o mercado escravagista no Rio de Janeiro, responsável pela cassação do livre arbítrio de mais de meio milhão de africanos somente entre as décadas de 1810 e 1830, quando chegavam à cidade em navios negreiros que ancoravam no Cais do Valongo. Aterrado, devido a questões sanitárias, o local foi redescoberto, em 2011, durante as obras de revitalização da região portuária do Rio. Hoje o local é tombado como símbolo de nosso vergonhoso passado escravagista, fato relembrado no filme pela arqueóloga Tânia Andrade.
A influência africana sobre a identidade cultural do Rio de Janeiro também é tema do documentário. A origem do samba carioca no final do século XIX, por exemplo, é abordada pelo compositor Nei Lopes. Já as transformações da cidade em moderna urbe, “A Paris dos Trópicos”, como era chamado o Rio da década de 1920, são reveladas em depoimentos minuciosos de arquitetos e urbanistas, como José Pessoa, Margareth da Silva Pereira e Augusto Ivan de F. Pinheiro. A transição do Art-Déco, abordada pelo especialista Marcio A. Roiter, presidente do Instituto Art-Déco do Brasil, para a arquitetura moderna, marcada pela finalização das obras do icônico Edifício Gustavo Capanema, em 1937, prédio projetado por Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Affonso Eduardo Reidy, também é retratada com minúcia em São Sebastião do Rio de Janeiro.
Além de recuperar a gênese da Bossa Nova e de outros símbolos da cidade, como o Cristo Redentor, os bondinhos do Pão de Açúcar e de Santa Teresa, o filme também aborda a expansão da enorme desigualdade social que distancia a zona sul dos subúrbios cariocas, desenvolvidos a partir da construção de linhas férreas no final do século XIX, e das favelas que, no mesmo período, começaram a proliferar pelos morros a partir da destruição dos cortiços em um processo excludente de “higienização”. A propósito, o nome favela, o filme explica, foi dado por tropas do Exército que acabavam de voltar das batalhas em Canudos, na Bahia, e viam na invasão dos barracos semelhança com a planta de mesmo nome que se espalhava em encostas da mata baiana.
Em entrevista recente à Brasileiros, o ator Lázaro Ramos afirmou que, em sua maioria, nossos cidadãos precisam urgentemente de aulas de História para que entendam a complexidade do País e não sejam ludibriados por interpretações rasas e discursos reducionistas. Na falta de tempo para absorver informação com a bibliografia legada por nossos historiadores, antropólogos e sociólogos, São Sebastião do Rio de Janeiro –Formação de Uma Cidade é “resumo” imprescindível.
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