Uma artista do corpo

Dois momentos do espetáculo "Rêverie". Foto: Vitor Vieira
Dois momentos do espetáculo “Rêverie”. Foto: Vitor Vieira

Num primeiro momento, Morena Nascimento parece uma imagem de camafeu, ou a reencarnação de uma artista vienense dos anos 1920. Sua postura é ereta, mas graciosa. Saia, meias e sapatos pretos, blusa de renda branca fechada no pescoço; o figurino reafirma a impressão. No entanto, assim que começa a falar, a dançarina e coreógrafa afasta a poeira do tempo e ganha uma vivacidade única, expressa também no gestual ondulante das mãos e dos braços e no brilho cigano dos olhos. Conhecida por ter feito parte da companhia de Pina Bausch (da qual ainda participa, como convidada, todos os anos, principalmente com o espetáculo Co­mo el Musguito, último criado com a grande coreógrafa antes de sua morte, em 2009), Morena pode ser vista no documentário Pina, de Wim Wenders. Tem também uma sólida carreira solo como dançarina, coreógrafa e professora.Com tudo isso, ela quer mesmo é ser cantora. Ou DJ. “A voz sempre foi para mim um canal seguro de expressão. Canto é corpo, sai do mesmo lugar do movimento. Cantei por dois anos no Coral da Unicamp. E na Alemanha eu cantava música brasileira com algumas bandas para ganhar um troquinho – ia superbem. Agora mesmo, na última Virada Cultural, cantei três músicas do David Bowie.”

O entusiasmo algo juvenil com o canto destoa um pouco da seriedade com que trata a dança, o que, por outro lado, parece combinar com sua inquietude criativa. “Me considero meio careta, do meu jeito. Gosto de coisas velhas. Isso tem a ver com o tempo que passei em Wuppertal; a Pina é uma artista bem tradicional, amante da técnica, do ofício do bailarino. Acho que ela nem chamava de dança contemporânea o que fazia, ela privilegiava o virtuosismo, por mais que nas suas obras se retrate o lado humano com muita força – quando saímos  das peças da Pina, a sensação é que estivemos muito próximos do que aconteceu no palco. Mas, para fazer tudo aquilo, as pessoas que dançam com ela são muito exigidas. Acho que na pós-modernidade, ou na con­temporaneidade, a linguagem se per­­­­­­­­deu um pouco. Você não precisa ser um dançarino exímio e ter o domínio total do seu corpo para ser dançarino. E eu acho que o artista é meio um pedreiro, um obreiro, um cavalo a serviço de alguma coisa. Por isso é essencial a labuta diária, o treino, o ensaio.”

Quem, no entanto, vê a pedreira Morena em ação dificilmente pensa em caretice ou em simples trabalho braçal. Seus espetáculos buscam sempre uma perspectiva diferente, que surpreenda o espectador. Como, por exemplo, Claraboia, que foi apresentado em 2012 no Centro de Cultura Judaica e na Galeria Olido, ambos em São Paulo, no qual ela dança em cima de um vidro para um público que a vê de baixo, deitado em almofadas. São vários figurinos e elementos como pedras, penas, água e tinta com os quais ela interage, desenhando imagens não apenas coreográficas, mas também plásticas. “Meu trabalho sempre teve essa preocupação com a imagem. No Claraboia, esse é o aspecto mais óbvio, que mais seduz. Tem outras nuances, mas o aspecto estético foi o que acabou chamando um público de vários tipos (as apresentações lotaram, ficando de 100 a 200 pessoas de fora). É realmente mágico, porque as noções de gravidade ficam confusas na cabeça do espectador. A forma como a gente vê o peso incidindo sobre o vidro – e às vezes a gente até esquece que ali tem um vidro – acaba incitando um universo onírico; as pessoas pensam: nossa, parece que ela está voando, flutuando. Eu gosto dessa ideia de trazer o público para um lugar que não é o usual, do dia a dia. E é uma dramaturgia de cores, tem mais de dez momentos de troca de figurinos, a transição é seca, já que o vidro não pode ficar muito tempo vazio. É um trabalho bem desafiador. Às vezes eu via as pessoas, deitadas ali embaixo, uma perna de um em cima do outro, se beijando, ou até cochilando, misturando os sonhos pessoais com os sonhos propostos pela dança, era muito legal.”

Morena em "Como el Musguito. Foto: Divulgação
Morena em “Como el Musguito. Foto: Divulgação

Estamos no Instituto Butan­tã, local escolhido por ela para a entrevista. Por um instante imagino as cobras e serpentes se enroscando, realizando uma coreografia encantatória, com o roçar lento das escamas e a ameaça de um salto súbito e terrível, esticando os corpos num limite e velocidade impossíveis. Pergunto a Morena como ela se interessou pela dança. “Minha mãe e meu padrasto eram bailarinos, mas eles sempre me deixaram livre para fazer o que eu quisesse. Meu padrasto foi o primeiro doutor em dança no Brasil. Negro, baiano, capoeirista, foi discípulo do mestre Bimba, nos anos 1970. O nome dele é Eusébio Lobo da Silva. Ele passou um tempo em Nova York onde dançou por seis anos com a Katherine Dunham (1909-2006), que é a mãe da dança negra contemporânea. Voltou para o Brasil a convite de algumas companhias de dança de Belo Horizonte, como Camaleão, Primeiro Ato, Compasso e Transforma, que era um grupo bem emblemático na época, anos 1980. Quando eu tinha 7 anos, ele foi convidado para ser chefe do departamento de dança da Unicamp, então nos mudamos para Campinas. E minha mãe integrou o Grupo Corpo nos primórdios, quando ainda não era nem famoso. Depois dançou no Primeiro Ato, grupo em que também dancei mais tarde, muito louco. Cresci nesse ambiente. Ficava nos colchonetes vendo os ensaios, meio dormindo, meio entediada. Foi só mesmo na faculdade que a dança me pegou. Eu esquecia que estava dentro de um ambiente acadêmico. Tinha professores maravilhosos, como a Holly Cravell, que dançou com a Martha Graham;, tinha aula de fotografia e figurino para dança, era um banquete. Tinha até circo, aula de estética, de improvisação. Quando descobri que podia criar minhas próprias coreografias, foi um êxtase. Eu passava o dia inteiro na faculdade, desde as oito da manhã, improvisando, vendo vídeos, sempre sozinha.”

Foi vendo um desses vídeos que sua vida mudou radicalmente. “Tinha visto o Café Müller (famosa obra de Pina Bausch, já apresentada no Brasil) na faculdade e quis muito chegar perto daquilo. Então me inscrevi na escola em Essen (a Folkwang University of Arts), que é do lado de Wuppertal, onde fica a companhia dela. Passei na prova e de repente eu estava morando na Alemanha. Não sabia nada de alemão. Levei mala para alguns meses só e acabei ficando cinco anos. Logo fiz a audição para a Sagração da Primavera, que é a peça mais em­ble­mática da Pina, e fui uma das duas escolhidas. Depois eu fiz um solo na escola, com a versão de Smells Like Teen Spirit, do Nirvana, tocada pelo Bad Plus (banda de jazz), a Pina viu e me chamou para integrar a companhia. O engraçado é que eu já estava querendo voltar para o Brasil, queria falar minha língua, ver o sol, não aguentava mais aquele inverno duro. Recebi o convite e chorei, pois eu sabia que tinha de aceitar.”

Mesmo para quem já tinha vencido um prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) bem jovem, com a obra Sexo, Amor e Outros Acidentes, e trabalhado com coreógrafos de prestígio, como Dudude Hermann, Tuca Pinheiro e Alex Dias, o começo na Tanztheater Wuppertal Pina Bausch não foi fácil. “Parece que não, mas é um universo bem competitivo. Senti isso, quando cheguei. Eu era a mais nova do grupo, tinha 27 anos. A gente demora para conquistar espaço. Você fica num lugar de aprendiz, me sentia muito tímida, retraída. Mas ela gostava de pessoas com uma certa fragilidade, até porque ela era uma artista muito intuitiva, de poucas palavras, simples. Ela queria muito tocar a essência das coisas, tanto que não gostava muito que a gente usasse brinco ou tivesse o cabelo moderninho. Tinha uma coisa pura, espiritual, meio monástica.”

Morena Nascimento durante espetáculo. Foto: Vitor Vieira
Morena Nascimento durante espetáculo. Foto: Vitor Vieira

Essa coisa pura, de fusão completa com o trabalho, faz pensar no belo verso de W.B.Yeats, “how can we know the dancer from the dance?” (como distinguir o dançarino da dança, em tradução literal). E na crítica de Morena a uma boa parte da produção atual em dança. “Acho que agora tudo é ruído, tudo tem de quebrar, fragmentar. Até a música nunca é tocada inteira, tem de ser uma intervenção, um barulho esquisito. Mesmo a dança nunca é fluida no espaço, ela é conflituosa. Talvez eu sinta que vou por outro caminho, e por isso meu trabalho é considerado careta por algumas pessoas do meio. Parece que estou fazendo uma dança de outro tempo, mas é desse tempo mesmo. É que muitas vezes tenho a necessidade de deixar a dança ser dança, a música ser música. Gosto de melodia, de uma música foda, linda, que faz a gente viajar. Eu quero emocionar as pessoas, dar muitas coisas para o púbico que vem me assistir. E não no sentido de ser aceita, mas sim de me comunicar. A Elisabeth Finger, que é uma coreógrafa que trabalha aqui em São Paulo, fala uma coisa muito engraçada: se você der um frango inteiro com um garfo e uma faca para um bailarino contemporâneo, a última coisa que ele vai fazer é comer o frango.” Curiosamente, ela também reserva críticas à dança mais clássica: “O balé meio que engessa o corpo, parece que a gente engoliu um toco de madeira. Mas ele me instrumentalizou muito tecnicamente.”

Alguns de seus trabalhos, como Rêverie, de 2014, são mais sofisticados (no caso, a obra criada juntamente com a atriz e dramaturga Carolina Bianchi se baseia em fotografias surreais da alemã Grete Stern), mas sempre dialogam com as pulsões. “Sou um bicho muito livre, não sigo tendências. Trabalho bastante nesse lugar do inconsciente. Tanto que minhas soluções surgem muito quando estou acordando. O corpo guarda memórias de muitas vidas, consegue acessar histórias que a gente não tem condições de acessar no plano normal. Sempre faço menções sutis a danças mais antigas, como a cigana, que tem a ver com meus antepassados, mouros, portugueses, italianos. Quando escuto uma música cigana, um flamenco, ou uma música árabe, eu me conecto imediatamente, sinto meus pés na terra.”

Antonia, apresentado este ano, é talvez seu espetáculo mais solto e, ao mesmo tempo, investigativo. “Esse trabalho tem um pouco o caráter de mergulhar em saberes escondidos, culturas emergentes, de índio, negro, árabe, imigrante em geral. Eu ousei montar a trilha sozinha, num recorte mais étnico. O próprio grupo é bem colorido – metade negro. Fiquei muito feliz com isso, sinto falta da classe negra representando a dança contemporânea, porque acho que a arte em geral ainda é muito branca, de elite, sabe? Parece que os negros ficam sempre no hip-hop, nas danças tradicionais de rua. Só que tem tanta gente talentosa! A cultura africana, indígena, fica sempre nesse lugar do exótico e eu quis de algum jeito tocar nisso. Tenho uma relação com a Bahia muito forte. Conheci lá o maestro Letieres Leite, da Orquestra Rumpilezz. Ele me ensinou muito, teve muita troca, nessa coisa de colocar luz na cultura africana de uma forma respeitável, tirando desse lugar do exótico, do naïf. Com Antonia eu toquei um pouco esse lugar. Mas ainda preciso de mais pesquisa, mais estudo.” Para isso ela pensa em montar, em breve um lugar que sirva de residência artística, nos moldes europeus, provavelmente no interior de São Paulo. Wuppertal também se­rá aqui. Tomara.


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