“Em Estado de Choque” – O jornalismo resiste na Faixa de Gaza

 

À edição em português ainda foram incluídos um prefácio produzido por Omer e um ensaio fotográfico em Gaza realizado pelo brasileiro João Laet, que captura imagens para o jornal carioca O Dia desde 2005.
À edição em português ainda foram incluídos um prefácio produzido por Omer e um ensaio fotográfico em Gaza realizado pelo brasileiro João Laet, que captura imagens para o jornal carioca O Dia desde 2005.

Em uma tarde abafada de julho de 2014, Holanda e Argentina protagonizavam, no Brasil, a semi-final do torneio mais importante de futebol no mundo. A trilha sonora era composta pelos tradicionais rojões, acompanhados pelas bombas de gás lacrimogêneo lançadas nos manifestantes que não concordavam com a realização da Copa do Mundo. Os que não protestavam, ávidos pelo esporte, se amontoavam nas filas de Itaquera, enquanto o mundo se posicionava para assistir à partida.

Não foi diferente com um grupo de jovens palestinos que assistia, de longe, na tv de um pequeno café de Khan Younis, cidade ao sul da Faixa de Gaza. As bombas lançadas sobre as cabeças dos dez árabes, no entanto, nada tinham a ver com os rojões ou as bombas de gás. Eram mísseis, lançados pelo Exército de Israel, num dos primeiros dias do massacre batizado de Operação Margem Protetora – o último, e mais violento de todos, ataque das forças de Israel que resultou na morte de mais de 2.200 palestinos.

A narrativa do pequeno café bombardeado é uma das histórias contadas pelo jornalista palestino Mohammed Omer, que viveu in loco o rastro de destruição deixado pelas sete semanas de bombardeios. Numa obra que transita entre o diário e o livro-reportagem, Em Estado de Choque – Sobrevivendo em Gaza Sob Ataque Israelense, já lançado nos Estados Unidos com grande repercussão em 2015 – o livro recebeu elogios de nomes de peso como o linguista Noam Chomsky e o veterano repórter John Pilger – chega às livrarias brasileiras patenteado pela editora Autonomia Literária. À edição em português ainda foram incluídos um prefácio produzido por Omer e um ensaio fotográfico em Gaza realizado pelo brasileiro João Laet, que captura imagens para o jornal carioca O Dia desde 2005.

O livro recebeu elogios de nomes de peso como o linguista Noam Chomsky e o veterano repórter John Pilger - chega às livrarias brasileiras pela editora Autonomia Literária
O livro recebeu elogios de nomes de peso como o linguista Noam Chomsky e o veterano repórter John Pilger – chega às livrarias brasileiras pela editora Autonomia Literária. Foto: João Laet



 Como  um lastro concreto e consistente em informações, o livro traz datas, fatos e uma exaustiva apuração com centenas de entrevistas, imagens e mapas. Ainda que, em termos teóricos, o conflito Israel-Palestina seja abordado de forma recorrente por aqui, a perspectiva de quem viveu na pele os ataques do Estado de Israel dificilmente é publicada em profundidade. Omer, sendo assim, abre as portas para uma série de atrocidades e crimes de guerra que, por muitas vezes, não são considerados pela mídia hegemônica, acostumada a repercutir os grandes veículos estrangeiros.

Omer, sendo assim, abre as portas para uma série de atrocidades e crimes de guerra que, por muitas vezes, não são considerados pela mídia hegemônica, acostumada a repercutir os grandes veículos estrangeiros.
Omer, sendo assim, abre as portas para uma série de atrocidades e crimes de guerra que, por muitas vezes, não são considerados pela mídia hegemônica, acostumada a repercutir os grandes veículos estrangeiros. Foto: João Laet

Ao leitor, Mohammed Omer, detalha as diferentes – e nada ortodoxas – estratégias utilizadas pelo premiê Benjamin Netanyahu para sufocar os palestinos. Os jornalistas que, em um espaço como Gaza, se transformam em bastiões da informação contra as distorções da mídia ocidental, são os primeiros a ser atacados. E é difícil caracterizar esses ataques como mera coincidência ou “erro”. Em outro relato de Omer, Hamed Shehab, jornalista do canal Media 24, um dos poucos a operar em Gaza, foi atingido por um míssil israelense enquanto voltava para casa, em um carro com as iniciais “TV” inscritas em adesivos grandes e vermelhos na parte superior do veículo – inútil precaução – para evitar ataques. 

A operação militar de Israel migra seus aparatos para a destruição da infraestrutura da Faixa de Gaza – centros de saneamento básico, sistemas de água, poços artesianos, centros de geração de energia elétrica, etc. “Aviões de guerra israelenses alvejaram também cinco aquedutos essenciais para um grande número de habitantes de Gaza. Cada duto fornecia água para 20 mil pessoas, e outras 100 mil podem ser afetadas”, escreve Omer, no que caracteriza uma violação das Convenções de Genebra. 

Hospitais, inclusive alguns financiados pela Organização das Nações Unidas (ONU), também foram bombardeados. À época, a rede árabe de televisão Al Jazeera relatou que o hospital Al-Wafa teve suas estruturas seriamente danificadas por mísseis israelenses, e que cerca de duas dezenas de pacientes em estado grave tiveram de ser transferidos em função do receio de outros ataques. Não só isso: o exército de Israel, que controla a fronteira entre Gaza e o Egito, na cidade de Rafah, impede que remédios, ataduras e outros produtos médicos cheguem aos palestinos.

Omer narra a saga dos estudantes palestinos que aguardam, os resultados de suas provas finais para a conclusão do ensino médio - conhecidos como tawhiji.
Omer narra a saga dos estudantes palestinos que aguardam, os resultados de suas provas finais para a conclusão do ensino médio – conhecidos como tawhiji. Foto: João Laet

Em outro triste capítulo, Omer narra a saga dos estudantes palestinos que aguardam, os resultados de suas provas finais para a conclusão do ensino médio – conhecidos como tawhiji.  O jornalista conta que, mesmo com os bombardeios iminentes, a população de Gaza tenta tornar esse dia minimamente especial para os jovens, mas que a missão é, ao mesmo tempo, árdua e angustiante, já que vinte dos estudantes que iriam receber suas notas foram mortos nos ataques.

Em Estado de Choque exprime, com detalhes, como o massacre da Operação Margem Protetora foi o mais violento do atual século na guerra entre Israel e Palestina, com cicatrizes abertas até hoje – em 50 dias de conflito, 536 crianças, quase um quarto do total de mortos, foram assassinadas, e outras 1.800 ficaram órfãs. Resta saber quando será a próxima “operação”, num conflito que dura mais de seis décadas e onde tudo leva a crer que só um lado ataca e o outro se defende como pode.

 

Serviço – “Em Estado de Choque – Sobrevivendo em Gaza Sob Ataque Israelense”
Editora: Autonomia LiteráriaAutor: Mohammed Omer
Tradução: Vinícius Gomes Melo
Páginas: 334
Disponível em http://bit.ly/2p89if9


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