Por que a guerra contra a obesidade está enganando muita gente magra

A mensagem está por todas as partes. Jornais, revistas, televisão, publicidade e mesmo nos comunicados do governo, em todos eles o alerta é claro: “A obesidade é uma ameaça à saúde e, por isso, deve ser combatida”.

Como sociedade, nunca fomos tão obesos, nos mostram pesquisas feitas com a população de diferentes países do mundo. Reino Unido, Estados Unidos, México e Paraguai são apenas algumas das nações em que mais de 60% da população está acima do peso: Três a cada cinco de seus habitantes têm quilos a mais.

Coletivos lutam para desconstruir argumentos que sustentam a gordofobia. Foto: Reprodução da página  Negahamburguer.
Nas redes, coletivos lutam contra gordofobia. Foto: Reprodução da página Negahamburguer no Facebook.

No Brasil, os últimos dados do Ministério da Saúde mostram mais da metade dos brasileiros (52,5%) com índice de massa corpórea acima de 25, limite considerado adequado pela Organização Mundial da Saúde. Quilos a mais, anos a menos de vida, é o que dizem. E a saída, argumenta-se, é apenas uma: perseguir o emagrecimento.

Mas será mesmo essa a única saída? Será o índice de massa corpórea (IMC) “normal” um indicador sine qua non de saúde? Um passaporte garantido para uma vida longa e saudável? E mais: Será a cobrança pelo emagrecimento a melhor ferramenta possível para gerar hábitos saudáveis entre aquelas pessoas que levam a vida de maneira não saudável?

Afinal, como nos lembra a cientista Angela Meadows, que estuda o impacto do estigma sobre as pessoas consideradas acima do peso (Leia a entrevista completa aqui) “há cinquenta anos estamos investindo tempo em dinheiro para sermos mais magros e nunca estivemos tão gordos”.

A posição de Angela, no entanto, é polêmica e não é sustentada pelas associações e sociedades de obesidade e endocrinologia no Brasil e no mundo. “Essa discussão sempre foi levantada, mas a obesidade possui vários parâmetros que a enquadram, sim, como doença”, explica o endocrinologista Walmir Coutinho. 

“Temos genes associados à obesidade e ao câncer”, diz. “Todo o quadro clínico é bem marcante. Vemos isso no consultório. Mesmo que a distribuição seja benéfica, existe risco aumentado para várias doenças.” 

“É verdade que temos de buscar outros parâmetros para avaliar a saúde, mas não estou de acordo com essa posição [a de questionar a obesidade como doença]”. 


O problema é o IMC?

Enquanto especialistas debatem sobre o status de doença da obesidade, os argumentos de ambos apontam que há concordância em pelo menos um aspecto: a definição da obesidade e de saúde exclusivamente pelo IMC. 

“Temos que pensar em outros parâmetros para avaliar a saúde. Há inclusive um questionamento vigente sobre se o IMC deve ser usado para indicação de cirurgia bariátrica”, diz Coutinho. 

Novas pesquisas têm colocado um ponto de interrogação sobre dados até hoje considerados verdades incontestes. Um deles, é o que associa o IMC à baixa expectativa de vida.

Durante muitos anos, essa relação foi dada como certa. Em 2013, porém, uma revisão de 97 estudos, cobrindo mais de 2,88 milhões de pessoas, foi publicada no Journal of Medical American Association, um prestigioso periódico científico internacional, desconstruindo essa ideia.

A revisão encontrou diminuição na expectativa de vida apenas naquelas pessoas com IMC acima de 35. Para uma parcela considerável dos obesos, aqueles cujo o IMC está entre 30 e 35, o peso a mais não interferiu nos anos de vida. E não só: a pesquisa ainda captou uma inesperada redução da mortalidade entre as pessoas com sobrepeso (IMC entre 25 e 30) quando comparados àqueles com peso normal.

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“Fiquei um pouco surpresa com os achados relacionados à obesidade”, contou à Saúde!Brasileiros a epidemiologista Katherine Flegal, líder do grupo responsável pela revisão. Apesar de haver três diferentes faixas de IMC relacionados à obesidade, os estudos científicos, como explica Flegal, não costumam manter os dados em separado. Acredita-se que isso possa estar gerando uma superestimativa dos riscos de ter um IMC superior a 25.

Reprodução da página Representativid'arte no Facebook.
Reprodução da página Representativid’arte no Facebook.

 


De onde vem o consenso do IMC

Sobrepeso, obesidade, peso normal ou abaixo do adequado, todas essas métricas são determinadas pelo IMC. Essas três letrinhas, acrônimo para índice de massa corporal, nada mais são que uma fração entre kg/m², ou seja: o peso de uma pessoa dividido pela sua altura elevada ao quadrado (Ver quadro). O índice passou a ser usado para calcular riscos de saúde na década de 50.

Àquela época, um estudo estabeleceu a relação entre peso e altura de usuários americanos e canadenses de 26 seguros de vida. A ideia era determinar quais eram as faixas em que se morria menos.

A metodologia usada, porém, incluía várias limitações: Uma a cada cinco pessoas havia autodeclarado o peso, a faixa de idade contemplada não era muito alargada (dos 29 aos 59 anos), os dados usados foram coletados apenas uma vez (no dia da assinatura do seguro de saúde), não houve diferenciação entre fumantes e não fumantes e, finalmente, o escopo de indivíduos era bem limitado (só entraram para o estudo pessoas que haviam adquirido seguros de vida).

Mesmo assim, o cálculo tornou-se referência e, de lá para cá, várias versões e interpretações para essa conta foram criadas. Por exemplo: Em 1985, alguém tinha sobrepeso quando seu IMC era igual ou superior a 27,8, no caso dos homens, e 27,3, no caso das mulheres. Em 1998, porém, a linha de corte para o sobrepeso foi reduzida pela International Obesity Task Force para 25, referência mantida até os dias de hoje.

Reprodução de post da página Coletivo Anti Gordofobia no Facebook.
Reprodução de post da página Coletivo Anti Gordofobia no Facebook.

O que pode parecer apenas uma pequena correção de metodologia, resultou em uma revolução nas estatísticas. Após a mudança, os americanos viram surgir, repentinamente, mais 35,4 milhões de adultos com peso “inadequado”. Em relação ao percentual de pessoas obesas e com sobrepeso, ele passou de 33,3% entre os homens e 36,4% entre as mulheres para 59,4% entre eles e 50,7% entre elas.

De um dia para o outro, mais da metade da população americana passou a estar acima do peso adequado. Não porque saíram da dieta, mas porque a métrica mudou.

“Não havia forte evidência científica para a mudança. Acredito que foi uma maneira de aumentar o problema o máximo o possível, assim as farmacêuticas teriam um mercado consumidor potencial muito maior para a compra de drogas para o emagrecimento”, opina Steve Blair, renomado investigador americano da área da ciência dos exercícios e um dos fundadores da GEBN.


O peso corporal é mesmo perigoso?

Para tentar desfazer mitos associados à gordura corporal, as pesquisadoras Linda Bacon e Lucy Aphramor, ambas da linha HAES, lançaram no ano passado o livro Body Respect (Respeito ao Corpo, em tradução livre). Compilando estudos de outros autores, elas buscaram desconstruir ideias tradicionalmente associadas à obesidade.

Gordura leva a uma diminuição dos anos de vida? Mito, apontam as autoras citando o estudo de Flegal. A gordura tem um importante papel para o surgimento de doenças? Outro mito. Bacon e Aphramor explicam que os estudos apontam a ocorrência da obesidade em concomitância com outras doenças, como a diabetes, mas sem estabelecer uma relação clara de causa-efeito entre as duas coisas. Dieta melhora a saúde? Mais um mito, especialmente porque a maior parte das pessoas não consegue manter o peso após o fim da dieta e o efeito sanfona resultante aumentaria a inflamação no organismo, fazendo crescer as chances de doenças cardiovasculares e de diabetes do tipo 2.

Em síntese, para as autoras, o melhor mesmo é esquecer a balança, e focar na promoção de hábitos saudáveis – não apenas individualmente, mas coletivamente e para gente de todos os tamanhos. “Não estou dizendo que todas as pessoas em todos os pesos estão saudáveis, mas sim que pessoas de todos os pesos podem ser saudáveis”, esclarece Linda Bacon. Essa mudança de paradigma, acredita Bacon, é importante.

Muitas pessoas não irão emagrecer ainda que façam atividades físicas e comam bem. Entretanto, mesmo que esses hábitos não se reflitam em quilos a menos, beneficiarão a saúde. Da mesma maneira, muitas pessoas são magras apesar de comerem mal e serem sedentárias – e a magreza, por si só, não lhes dá o título de saudáveis.

“Sobretudo em idades mais avançadas, nas quais é mais difícil emagrecer, as pessoas costumam se sentir muito frustradas. Isso ocorre porque estão buscando o objetivo estético, o que é compreensível, mas sem dúvida as coisas são mais fáceis quando se tem como objetivo final a saúde”, opina a médica e pesquisadora Marianella Herrera, da Universidade Central da Venezuela.

Diferentemente de Bacon e Aphramor, Herrera avaliza a definição dada pela Organização Mundial de Saúde da obesidade como uma doença. Entretanto, a especialista reconhece que o enfoque excessivo no peso pode levar a distorções, nas quais a preocupação com a quantidade de quilos perdida torna-se mais importante do que a preocupação com a saúde.  

Angela: "Eu não vou perder peso só para caber na sua cabeça estreita."
Angela: “Eu não vou perder peso só para caber na sua cabeça estreita.” Foto: Arquivo Pessoal.

 


Mas como então mensurar saúde?

Para o americano Steve Blair, a resposta está em medir os níveis de atividade física. Para ele, a automatização da sociedade nas últimas décadas levou-nos a um estado constante de economia de energia: Meios de transporte nos levam direto da casa para o trabalho, a comida normalmente chega semipronta ou mesmo pronta às nossas mesas e nem para trocar o canal da televisão nos levantamos mais.

Em energia, todas essas atividades que deixamos de fazer ao longo das últimas décadas seriam o equivalente a cerca de 1.800 calorias por semana que nosso corpo não irá consumir. Um dos efeitos desse excesso seria o aumento dos níveis de obesidade. Entretanto, Blair defende que é a inércia, muito mais que a balança, o inimigo da saúde nos dias de hoje.  

“Pessoas acima do peso podem ser ‘fit’ e não ter um número elevado de problemas de saúde, da mesma maneira como alguém com o peso normal e não ‘fit’ pode não ser saudável”, defende o pesquisador. Em estudos, Blair encontrou que cerca de 50% dos obesos da classe I eram ‘fit’, o que desmonta a ideia de que apenas uma parcela ínfima de quem está acima do peso tem bons níveis e atividade física.


O estigma do peso

Ao mesmo tempo em que pairam dúvidas sobre os malefícios da obesidade, sobram certezas sobre o potencial tóxico de encará-la como um inimigo a ser combatido. O clamor constante por emagrecer tem alimentado na sociedade o preconceito contra quem está fora do padrão. Quem é obeso sente na pele o peso dos olhares e, constantemente, precisa lidar com a acusação de que a gordura é resultado de desleixo, gulodice ou preguiça.  

Essa repulsa, como explicou ainda nos anos 60 a antropóloga Mary Douglas, no livro “Pureza e perigo”, tem suas raízes na compreensão da gordura como uma “sujeira” ou “impureza”. Em sociedades organizadas sob a dicotomia da pureza versus a poluição, a sujeira é entendida como algo mal vindo e que precisa ser eliminado.

Um estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que, entre as mulheres, a discriminação por peso já atinge níveis semelhantes à discriminação por raça. O modo como o preconceito opera, nas duas situações, é semelhante: Vai desde xingamentos na rua a situações em que a pessoa deixa de ser escolhida para um trabalho por causa do peso. Tudo isso, gera estigma que, como resume Meadows, está longe de ter o efeito motivacional para mudar o comportamento de alguém.

 


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