A lenta batalha do Brasil contra o sal e a gordura

Nos últimos anos, a comida vendida nos supermercados brasileiros passou por uma transformação silenciosa. De 2008 até hoje, foram retirados mais de 7.600 toneladas de sódio e 250.000 de gordura trans dos alimentos industrializados do País. 

Como isso não alterou o sabor, a alteração passou despercebida para a maior parte da população. Mas seu corpo — e seu coração — provavelmente sentiram a diferença. As duas substâncias estão entre as principais causadoras de problemas cardiovasculares, entre eles a pressão alta, o infarto e o acidente vascular cerebral (AVC). 

As mudanças nos alimentos industrializados são fruto de um pacto entre o governo e a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), entidade que reúne cerca de 73% das empresas do setor. Como se trata de um acordo, as metas são estipuladas em conjunto pelas duas entidades, sem a participação da sociedade civil, e os cortes são voluntários. 

Embora o resultado seja positivo, a iniciativa recebe críticas de nutricionistas, médicos e ONGs justamente pelas metas pouco ambiciosas, falta de transparência nos acordos e ausência de mecanismos para cobrar as empresas que não atingem os limites estipulados. 

“Qualquer redução no teor de sal e gordura é importante e tem impacto na saúde da população”, diz o cardiologista Carlos Alberto Machado, membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). “Mas acredito que o corte poderia ser feito numa velocidade maior”.

Redução do sal levaria a 15% menos de óbitos por AVC no país. Foto: Joana Burne/Creative Commons
Redução do sal levaria a 15% menos de óbitos por AVC no país. Foto: Joana Burne/Creative Commons

A gordura trans, por exemplo, é conhecida por elevar os níveis de colesterol ruim no sangue, contribuindo para o entupimento das artérias e para o aumento da incidência de infartos e AVCs. Obtida a partir de um processo que transforma óleos vegetais em gordura sólida, é usada para dar sabor e consistência a alimentos processados como margarinas, salgadinhos, lasanhas e pizzas congeladas.

 

Em 2008, quando o acordo foi firmado, a meta era reduzir a gordura trans a menos de 5% do total de gorduras nos alimentos processados e 2% do total em óleos e margarinas. Em 2010, na primeira avaliação do processo, o governo verificou que 93,4% dos produtos tinham atingido a meta do período. Passados cinco anos, nenhuma nova meta foi estipulada. 

O problema é que, para realmente funcionar como uma proibição à indústria, o veto à gordura trans não poderia vir de um acordo, mas sim de um projeto de lei. “O banimento da gordura trans exige uma legislação por trás. O Ministério da Saúde se posiciona a favor dessas iniciativas”, diz Eduardo Nilson, coordenador interino de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde. O Ministério analisa, por exemplo, um projeto de lei protocolado pela senadora Marta Suplicy, em julho, com esse objetivo.


A passos de tartaruga

Recentemente, a redução da gordura trans voltou a ser discutida com um pouco mais ênfase pelo Ministério da Saúde. O motivo foi a decisão do governo americano, anunciada em junho, de banir completamente o ingrediente dos alimentos. As indústrias terão um prazo de três anos para cumprir a nova regra. 

As maiores críticas ao processo brasileiro, porém, são dirigidas aos acordos que estabeleceram limites à quantidade de sódio presente nos alimentos industrializados. A substância é um dos principais componentes do sal de cozinha e é amplamente usada pela indústria para salgar e conservar a comida. O consumo excessivo de sódio é um importante fator de risco para a hipertensão, doença que atinge 25% dos brasileiros e aumenta os riscos de infarto, insuficiência renal e AVC.  

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Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares, de 2008, o consumo médio de sódio do brasileiro é de 12 gramas por dia, mais de duas vezes o limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde, que é de cinco gramas.

Embora o sal de cozinha seja responsável por 74,$% do consumo de sódio da população brasileira, segundo estudo da Universidade de São Paulo divulgado em 2008, a fatia fornecida pelos produtos industrializados não parava de crescer. Ela havia subido de 15,8% em 2003 para 18,9% em 2008. Os grandes agentes dessa evolução foram os pães, temperos industrializados, macarrão instantâneo, bolachas, laticínios e comidas congeladas. 

De olho nessa taxa alarmante, o Ministério da Saúde e a Abia fizeram, em 2010, um acordo para reduzir o consumo de sódio no Brasil aos níveis recomendados pela Organização Mundial de Saúde até 2020. Segundo o Ministério, isso causaria uma redução de 10% nos óbitos por infarto no país e 15% nos óbitos por AVC. Para isso, o governo dividiu os alimentos em categorias, e estipulou metas bianuais de diminuição de sódio.

Na primeira fase, em 2011, foram abarcados o macarrão instantâneo, o pão de forma e a bisnaguinha. Na segunda, que começou em 2013, seria a vez dos bolos, salgadinhos, maioneses e biscoitos. Esses produtos tiveram, em média, uma redução de apenas 10% na concentração da substância. Isso acontece porque o cálculo das metas é feito a partir do teor de sódio médio encontrado nos alimentos que já estão no mercado. “Ou seja, boa parte das empresas não precisou fazer nada para estar dentro da meta”, diz a nutricionista Ana Paula Bortoletto, do Idec. “Assim, a redução ainda não provocou uma mudança significativa na saúde da população.”

Para as entidades do setor, a falta de ambição nas metas estipuladas entre o governo e a indústria representa um sério entrave. O cardiologista Carlos Alberto Machado, por exemplo, era representante do Comitê do Sal da Sociedade Brasileira de Cardiologia quando os acordos começaram a ser discutidos. “Nós e várias outras entidades, como o Idec, fomos convidados a discutir o tema. Mas, na hora de pactuar os cortes, as discussões aconteceram a portas fechadas”, diz. “Ao não envolver todos os atores, isso acarretou metas baixas e pouco transparentes.”


Lei ou acordo

Outra consequência desses acordos pactuados é ausência de qualquer penalidade para as empresas que não atingirem as metas. Um estudo divulgado pelo Idec em 2014 apontou que, apesar das metas baixas, 11% dos produtos analisados tinham falhado em atingi-las. “Mas não vai acontecer nada com essas empresas, porque não há nenhum tipo de punição”, diz a nutricionista Ana Paula. “E isso é pior ainda para as indústrias que não são afiliadas à Abia. Essa nem sequer podem ser cobradas, pois não assinaram nenhum tipo de acordo.”

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Ao redor do mundo, as iniciativas de maior sucesso na redução do sódio são fruto de leis ou pactos onde há participação da sociedade. “No Reino Unido, houve uma estruturação para cobranças das empresas e controle social que fizeram com que os acordos, mesmo voluntários, funcionassem melhor”, analisa Ana Paula.

O governo brasileiro não descarta apoiar uma legislação mais rigorosa, mas considera, por hora, que os acordos sejam a melhor estratégia. “O monitoramento é claro em mostrar que existe uma adesão muito grande da indústria”, diz Eduardo Nilson, do Ministério da Saúde. “O fato de as metas aumentarem gradativamente até 2020 permite à indústria e ao paladar dos brasileiros se adaptarem ao longo do tempo. Em algum momento pode ser necessário adotar uma regra mais restritiva, mas achamos que, hoje, a estratégia atual deve ser fortalecida.”

A próxima etapa da parceria entre o Ministério da Saúde e a Abia é estabelecer um novo pacto referente à redução do açúcar nos alimentos industrializados. O governo já discute o assunto e está se preparando para começar as negociações com a indústria alimentícia. Seria interessante prestar atenção às críticas, para que, desta vez, a redução aconteça num ritmo mais rápido. O que está em jogo é a saúde da população brasileira.


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